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Belfast, em análise

Depois da aguarda estreia de Morte no Nilo, eis que já estrou Belfast, o segundo filme do ano realizado por Kenneth Branagh!

MEMÓRIAS PERDIDAS DOS TEMPOS DE CÓLERA!

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Ciarán Hinds Belfast óscares 2022
Ciarán Hinds, Jude Hill, e Jamie Dornan em “Belfast” (2021) |© 2021 Universal Studios. All Rights Reserved.

Em Portugal, depois da plastificada estreia da ficção “digital” DEATH ON THE NILE (MORTE NO NILO), cuja data oficial passou a ser 2022, apesar da produção ser de 2019, iremos ver o filme que Kenneth Branagh rodou a seguir mas que viu a estreia empurrada ou adiada, como quiserem, para além do período que seria mais lógico e compatível com o inicialmente previsto. Estamos a falar de BELFAST, 2021, projecto que o realizador dirigiu, escreveu e pensou como uma viagem ao passado e a um conjunto de memórias dispersas no colectivo de uma cidade, polarizando a nossa atenção para momentos muito peculiares das relações de um rapaz com a sua família, pai, mãe e avós, qualquer deles mergulhados num autêntico vulcão social que explodiu de forma violenta numa era particularmente difícil para os irlandeses do Ulster. Recordando os acontecimentos mais relevantes, podemos situar a acção de BELFAST, sem qualquer sombra de dúvida, no Verão de 1969, mais precisamente no início dos distúrbios de cariz sectário que ficaram conhecidos como os Troubles. Por outras palavras, a ultra agressiva ofensiva de activistas protestantes, favoráveis a manter os laços com o Reino Unido, contra a comunidade católica que defendia a integração da Irlanda do Norte na República da Irlanda. Estas divisões, que não eram apenas religiosas, revelavam-se na prática como feridas abertas de uma doença social que não parecia sarar no seio dos homens e mulheres que afinal viviam paredes meias uns com os outros, não obstante as suas actividades decorrerem nos bairros de maioria protestante do Norte de Belfast.

Belfast
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Kenneth Branagh nasceu na capital da Irlanda do Norte a 10 de Dezembro de 1960. No filme BELFAST, o realizador propõe uma versão ficcionada da sua juventude e de si mesmo e, para dar consistência a este investimento pessoal, decidiu ao fim de várias décadas de carreira desenterrar das suas memórias a vida simultaneamente simples e atribulada de um rapaz de nove anos, Buddy – personagem admiravelmente interpretada por Jude Hill – uma criança aparentemente feliz e contente com o micro-cosmos do bairro onde partilha com outras crianças diversos jogos e brincadeiras. Precisamente nas mesmas ruas onde um dia será confrontado com as convulsões da fortíssima agitação que veio acentuar as contradições sociais e políticas que sempre dividiram os moradores menos abastados daquele pedaço da Irlanda, os que não couberam na autonomia alcançada e conquistada após o brutal conflito entre irlandeses e britânicos, que deu lugar nos anos 20 ao Irish Free State e que depois de uma igualmente devastadora guerra civil passou a gozar de uma verdadeira independência. Mas com um senão, que ainda hoje persiste, o de ser uma situação conquistada e consolidada a Sul, mas não a Norte. De facto, os habitantes da Irlanda do Norte na época em que decorre a acção de BELFAST não eram apenas e só, como alguns falaciosamente ainda hoje querem fazer crer, vítimas das divergências de natureza religiosa. Digamos que ambas as partes, protestantes e católicos, foram protagonistas de sucessivos conflitos provocados por uma estratégia politicamente desenhada para reforçar o poder dos que estavam mais ao lado de Londres do que de Dublin. Houve sempre diferenças profundas que estiveram na origem de um assanhado racismo social associado a convulsões antigas que, por detrás das barricadas erguidas, marcaram as vítimas e os carrascos, uns numa perspectiva nacionalista e republicana e outros numa atitude dominada pelas idiossincrasias ideológicas e valores patrimoniais dos que estavam ou julgavam estar mais próximos da coroa britânica, os unionistas. Estas posições antagónicas serão expostas nas diversas sequências de BELFAST, por um lado sem grandes investimentos de carácter panfletário e por outro sem recurso a uma abordagem mais contundente do assunto em causa. Como se Kenneth Branagh nos quisesse dar conta apenas do modo de ser e estar do “working class people” numa área específica de Belfast. Uma espécie de “conta-me como foi”, sem ir mais longe na visão crítica ou estrutural de problemas que seguramente presenciou enquanto jovem. Fica bem patente esta opção, sobretudo no modo como define, num espaço fechado e cercado, as rotinas e a atitude dos proletários e pequeno-burgueses que até ali viviam juntos e não sentiam a pressão que outros queriam exercer, incentivados por ódios ancestrais e por razões exteriores ao convívio existencial e pacífico de classes sociais com nítidos e idênticos problemas de sobrevivência. Kenneth Branagh recusa assim um retrato colorido da sua Belfast natal, acentuando na Direcção de Fotografia e na bidimensionalidade subjectiva do preto e branco uma paleta monocromática sob a qual deixa finalmente adivinhar outras cores. No fundo, o que o autor faz ao descrever o percurso acidentado de Buddy passa muito pela polarização do retrato de uma família que se vê obrigada a lutar contra as adversidades económicas. Prova disso, o pai (Jamie Dornan) anda num permanente vai e vem entre Belfast e a Inglaterra para ganhar o chamado pão nosso de cada dia, que nunca sobra por ser escasso e por as despesas correntes serem um fardo pesado, só contornado por esquemas que deixam adivinhar situações mais ou menos manhosas. Por seu lado, a mãe (Caitríona Balfe) ao ver as contas por pagar procura soluções que geram outros problemas, nomeadamente conflitos domésticos com o marido. Neste contexto, os expedientes são muitos e o avô, de vaga confissão protestante, antigo operário das minas de carvão, numa das suas frequentes conversas com o neto dar-lhe-á a ele e a nós uma lição sobre como se fazia por aquelas bandas o pagamento das rendas, explicando o método pouco recomendável que passava basicamente por recorrer ao banditismo para as recuperar depois de pagas, ou seja, o dinheiro das rendas era roubado com a persuasão de uma pistola apontada aos que as cobravam para depois ser devolvido aos “honestos” cidadãos, menos a percentagem cobrada pelo gangster que a esse serviço se prestava. Trata-se de um episódio salpicado por um certo humor, fruto de uma visão cáustica dos que não hesitavam em usar o crime ao estilo Robin Hood que, neste caso, parecia compensar. Mas, vistas bem as coisas, não há motivos para sorrir. Na prática constitui uma das sequências mais amargas do filme, uma em que a realidade dos factos e a maneira credível como são relatados nos permite vislumbrar as verdadeiras correspondências com os verdadeiros rostos, as reais dificuldades e a verdadeira dimensão humana que o filme podia e devia valorizar noutros segmentos. Uma opção delineada aqui com o máximo de eficácia, muito graças ao grande actor Ciarán Hinds, mais um natural de Belfast. Infelizmente, noutras alturas não acontece isso. Seja na excessiva carga caricatural do sermão da figura religiosa protagonista daquela estafada lenga-lenga sobre o dilema de escolher o caminho entre o inferno e o céu, seja no modo como a mãe de Buddy insiste, no meio de uma manifestação particularmente violenta em que protestantes atacam e pilham um minimercado local, para que o filho devolva um pacote de detergente roubado, diga-se, mais por pressão de uma colega de escola do que por convicção. Na verdade, a ideia era roubar chocolates, mas a coisa não resultou. Fica a divertida deixa de Buddy que, ao ser interrogado pela mãe, justifica o roubo do produto, nem mais nem menos, por ele ser biológico. Divertidos são igualmente alguns dos diálogos que Buddy estabelece com os seus mais diversos interlocutores a propósito das diferenças entre os dogmas religiosos, nomeadamente o da confissão católica. Divertido é o modo como, na família protestante, o local da “confissão” parece ser a sanita exterior onde avô e neto se sentam cada vez que preferem abordar assuntos mais delicados ou controversos. Em resumo, a crónica dos anos de brasa e dos distúrbios iniciados em Agosto de 1969 não faz parte da matéria primordial de BELFAST, mas as suas consequências estão plasmadas no percurso de uma criança em busca de um ponto de equilíbrio nos pratos da balança social. Por fim, Kenneth Branagh recorda-nos que a família possui mais força do que a vontade declarada de um jovem em ficar na cidade que, para o melhor ou o pior, sente ser a sua. Este desejo não se concretiza ao esbarrar contra a realidade circundante, a instabilidade latente e concreta de lutas fratricidas. Para melhorar a sua vida, o núcleo duro da família de Buddy não encontra outra solução que não seja o abandono do bairro, da cidade e do pedaço de país onde nasceram. Fica claro que o pai, ameaçado por não aderir de corpo e alma a uma causa que não sente como sua e, sobretudo, por mostrar uma permanente ambiguidade quanto ao imposto exigido pelos mentores da “guerra santa” movida pelos protestantes, não deseja para o seu filho aquilo que pressente serem longos anos de conflitos, cada vez mais violentos. Esta decisão equivale a uma escolha existencial que rejeita a submissão a Deus ou ao Diabo. No caminho bifurcado entre o Céu e o Inferno, a família, no filme, e Kenneth Branagh, no argumento, escolhem a viagem, a que se faz com o olhar voltado para a frente, sem virar a cabeça, como diz a avó (Judie Dench), a que ficou em Belfast, assim como o avô que entretanto falecera. Na última sequência, será em grande medida aos pais, a TODOS OS QUE PARTIRAM, que Kenneth Branagh dedica este seu filme. Depois, amplia a dedicatória a TODOS OS QUE FICARAM. Por último, dedica BELFAST a TODOS OS QUE ANDARAM PERDIDOS.

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Cinemundo Belfast
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De um ponto de vista pessoal e cinematográfico, essas frases ficarão como o depoimento político, cultural e identitário de uma obra estruturada a partir da memória perdida e reencontrada de um passado e de uma inocência juvenil que o autor sentiu necessidade de incluir na sua filmografia enquanto adulto e cineasta de corpo inteiro.

Belfast, em análise
Belfast

Movie title: Belfast

Date published: 24 de February de 2022

Director(s): Kenneth Branagh

Actor(s): Jude Hill, Lewis McAskie, Caitriona Balfe, Jamie Dornan, , Judi Dench, Ciarán Hinds

Genre: Biografia, Drama, 2021, 98 min

  • João Garção Borges - 70
  • Maggie Silva - 80
  • Virgílio Jesus - 70
  • Rui Ribeiro - 80
  • Cláudio Alves - 45
69

Conclusão

PRÓS: Belfast, 1969. Memórias pessoais de uma época que podia ou devia ser de ouro, mas que foi arrancada aos planos existenciais da família do futuro actor, encenador e realizador Kenneth Branagh. Um guião recheado de episódios onde, por interposta personagem, admiravelmente interpretada por um novíssimo Jude Hill, o autor partilha as suas raízes sociais e culturais no património comum e controverso de uma Irlanda do Norte a ferro e fogo.
Para além do mais, a justiça ou não das muitas nomeações que recebeu, nomeadamente para os BAFTA e para os ÓSCARES, só pode ser medida se virmos o filme e, já agora, antes das respectivas cerimónias. E não deixem de apreciar a banda sonora musical de Van Morrison.

CONTRA: Por vezes, deixa-nos a sensação de querer acertar no alvo sem afinar a pontaria. Mas, onde a ficção podia ser mais acutilante e passa ao lado de matéria mais forte, não encontramos motivos que comprometam de forma pesada o fluir da principal linha narrativa, o da crónica familiar influenciada por um espaço afinal comum, apesar de dividido por preconceitos que nunca foram apenas de carácter religioso.

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