O Homem que Matou Dom Quixote, em análise
Após uma longa espera, “O Homem que Matou Dom Quixote” de Terry Gilliam está finalmente em Portugal e nós já temos a critica para ti!
NOVAS AVENTURAS DA VELHA TRISTE FIGURA!
Fazer o relato do histórico da atribulada produção do filme THE MAN WHO KILLED DON QUIXOTE (O HOMEM QUE MATOU DOM QUIXOTE), 2018, projecto defendido com unhas e dentes por Terry Gilliam ao longo de 25 anos, período durante o qual foi feito e desfeito como se afirma na legenda inscrita mesmo antes do genérico inicial, seria uma missão não digo impossível mas relativamente inútil face ao que mais importa aqui e agora, ou seja, não julgar as intenções mas sim os resultados que estão dentro das quatro linhas do enquadramento e o que sobressai da sua maior ou menor eficácia narrativa, em suma, o filme que de algum modo corresponde a uma nova abordagem e a uma nova versão cinematográfica inspirada no clássico da literatura mundial, EL INGENIOSO HIDALGO DON QUIXOTE DE LA MANCHA, há muito considerada a obra-prima de Miguel de Cervantes Saavedra, escritor, dramaturgo e poeta castelhano nascido em Alcalá de Henares a 29 de Setembro de 1547. Na saga que escreveu com humor e crítica sagaz aos meandros da sociedade ibérica e europeia da época – a primeira parte foi publicada em 1605 – encontramos como protagonista um homem já avançado na idade, obcecado pelos valores defendidos nos pretéritos romances de cavalaria a que foi buscar a exaltação existencial que muitos davam como ultrapassada. Neste contexto, e contra os moinhos de vento da realidade que irá confundir com extraordinários e ameaçadores gigantes, perde a noção das diferenças entre o real e o imaginário e decide ir por esse mundo fora no improvável corpo e no desalmado espírito de um cavaleiro andante, defensor das virtudes e da melhor condição humana, isto num mundo setecentista onde o anacronismo da sua atitude medieval surge como a fonte mais evidente dos inúmeros conflitos dramáticos e narrativos. Este romance adquiriu e manteve até hoje o estatuto de imortal, apesar das muitas vezes que foi assassinada em rotineiras adaptações e abusivas reinvenções propostas por um leque diversificado de autores com mais pretensões do que aptidões criativas. De facto, poucas foram as produções que a partir da matriz literária alcançaram um patamar capaz de as destacar com entusiasmo nas diversas frentes da actividade artística. Incidindo a atenção apenas no cinema, recordo com gosto o DON QUIXOTE, 1933, do austríaco Georg W. Pabst, filme produzido nas versões francesa, inglesa e alemã, qualquer uma protagonizada pelo mesmo actor, o cantor de ópera russo Feodor Chaliapin. Por causa de alguma amargura face ao que restou da versão sonhada e nunca concluída por Orson Welles, sublinho com algumas reticências o DON QUIJOTE com data de 1992, cuja rodagem realizada entre 1957 e 1969 foi interrompida com a morte do actor principal, Francisco Reiguera, e de que uma cópia montada pelo espanhol Jess Franco, aliás, Jesús Franco, cumpre os mínimos como hipótese “fantasma” da estrutura fílmica possível de reunir a partir de materiais filmados, e alguns pré-montados, sete anos após a morte do realizador de CITIZEN KANE. Recordo ainda uma das melhores abordagens no grande ecrã, o DON QUIXOTE, 1957, dirigido pelo cineasta soviético Grigori Kozintsev. Finalmente, não podemos nem devemos esquecer o ponto de vista muito pessoal patente em HONOR DE CAVALLERIA, 2006, do catalão Albert Serra.
Dito isto, a pergunta que podemos formular a seguir será aquela que provavelmente está na mente e na boca de qualquer um, ou seja, qual o lugar que podemos atribuir, nesta hierarquia e nesta escala de valores, ao agora estreado O HOMEM QUE MATOU DOM QUIXOTE, do americano Terry Gilliam? Esta nova aventura do Cavaleiro da Triste Figura não envergonha quem nela participou. Todavia, o que fica na memória do espectador é uma autêntica salada russa de sequências organizadas sob a forma de proto-sketches, onde a ideia de fazer prevalecer o humor fragiliza a harmonização do fluir narrativo que pudesse sustentar a dimensão ficcional mais séria, que não está nem precisa de estar necessariamente ausente do género comédia. Falta organização nas componentes das linhas de força capazes de reforçar o sentido crítico e exposição cáustica dos usos e costumes de um leque vasto de personagens e no modo como define as motivações de alguns grupos de poder – e nem parece difícil pensar em pessoas concretas – aqueles contra o qual um inesperado novo velho Don Quixote decidisse investir com inteira e plena razão.
Mas vamos aos factos. Na versão Terry Gilliam, esta aventura, comédia, fantasia, chamem-lhe o que quiserem, apresenta-nos um Don Quixote interpretado por Jonathan Pryce, não como um nobre em pleno delírio intelectual mas antes como um simples plebeu, mais precisamente um sapateiro, Javier, que um cineasta ainda jovem escolhera como a personificação da famosa figura literária. Mas, antes da nova Triste Figura entrar em acção, o filme apresenta-nos uma outra, a do realizador, Toby Grisoni, versão mais velha do jovem anteriormente citado, missão que Adam Driver assume com o devido rigor e competência. Inicialmente iremos encontrá-lo já com o estatuto de cineasta consagrado na rodagem que agora o ocupa, não a de uma longa-metragem de prestígio apoiada em orçamentos milionários, apesar das pretensões e do aparato cénico, mas sim na filmagem de um mercantilista anúncio pago por capitalistas oriundos do país onde se bebe vodka como se bebe aqui, pelas nossas bandas ocidentais, um singelo copo de água. Iremos igualmente perceber como foram as suas origens quando o acompanhamos numa breve visita ao passado, na prática uma fuga que sente necessidade de realizar para sacudir a pressão da rodagem e algumas controvérsias de alcova geradas em episódios colaterais. Neste regresso aos locais onde outrora, ainda estudante de cinema e numa aparentemente radiosa viagem pelo interior de Espanha, procurou concluir o seu filme de fim de curso intitulado, isso mesmo, THE MAN WHO KILLED DON QUIXOTE, o cineasta irá reencontrar Javier, o artesão que outrora fora o rosto perfeito para o seu Don Quixote. Mas em vez da dignidade do velho artesão, quem ele vai encontrar não passa agora de um desgraçado a quem a aldeia, onde sempre viveu, obriga a representar uma e outra vez, de forma falsa e abusiva, o papel que desempenhara no filme de curso. Para os devidos efeitos de exploração canalha, os seus pares reduziram-no a um autêntico freak de feira sub-desenvolvida, uma atração que rende uns cobres. Toby, para os que o rodeiam, é um génio em potência, aquele que voa mais alto. Mas o inesperado cruzamento entre passado e presente, mesmo que não queira, vai dar-lhe água pela barba, e pouco depois ficará reduzido ao papel de fiel escudeiro de um Don Quixote de pacotilha, no papel do não menos famoso Sancho Pança. E não devia queixar-se, porque directa ou indirectamente foi ele o responsável pelo que veio a suceder a Javier que, passados uns anos, já não aceita ser o actor desajeitado de um exercício académico, mas sim o dono do jogo, o que define as suas regras. Podemos dizer que Javier e Toby estão bem um para o outro. De facto, a aldeia deu um salto em frente graças ao pior do empreendedorismo egoísta, e o sapateiro, por sua vez, deu uma volta de 180 graus na sua vida e ainda outra maior na sua mente, acabando por se convencer ser ele o verdadeiro Don Quixote de La Mancha. Para mal dos seus pecados e dos que com ele se irão cruzar. Na prática, partindo deste expediente ficcional, qualquer situação que os argumentistas inventassem para as sequências futuras passaria a estar condicionada a este pressuposto. E o resto do filme comprova e cumpre este destino. Sobretudo a partir do encontro e subsequente relação dinâmica entre as personagens desempenhadas por Jonathan Pryce e Adam Driver. E nós seremos a seguir confrontados com os inúmeros plots e sub-plots, mais ziguezagues menos ziguezagues, mais personagens secundárias ou menos secundárias onde, entre outras, iremos redescobrir a presença de Angelica, a menina agora adulta que participara na rodagem do jovem estudante de cinema, personagem confiada a Joana Ribeiro. Nunca aceitei nacionalismos bacocos e, por isso mesmo, não me custa dizer que destaco a actriz portuguesa do vasto leque de secundários, por ela não se dar nada mal com a missão de credibilizar uma composição no meio de uma cascata de situações maioritariamente erráticas, onde nem sempre encontramos a razão de ser para algumas propostas inscritas no guião, nem o lugar que cada uma das peças desta arquitectura fílmica ocupa no desenvolvimento do conjunto ficcional.
De uma forma geral, o que sobressai do filme passa muito pela sensação do excesso onde se exigia moderação para desfrutar o pormenor, a vertigem, as curvas e contra-curvas em que sentimos que não há limites para a imaginação febril do realizador e argumentista. Sim, nada contra a exposição de uma saudável loucura no cinema. Mas sentimos que era preciso em certos momentos controlar um Terry Gilliam aqui e ali sem freio e sem o contraditório solidário, por exemplo, como sucedia nos míticos anos dos Monty Python, com quem o realizador partilhou muitos e bons momentos, que são hoje dificilmente replicáveis. Sente-se, sobretudo, a dificuldade de pensar num produtor que fosse capaz de acalmar, sem guerras e conflitos desnecessários, as delirantes incursões pela mais desbragada bizarria imagética, que se apresentam como principal modelo das suas propostas cinematográficas. Mesmo assim, muito mais contidas que em algumas obras precedentes.
Seja como for, como se disse no início deste artigo, quando se afirma no próprio corpo do filme que estamos perante um projecto feito e desfeito ao longo de muitos anos, depoimento que podemos ler como um desabafo da produção e realização que, sem revelar mais nada, parece querer partilhar com os espectadores a memória angustiada das frustrações que permanecem vivas relativamente a um projecto que sabemos ser fruto de uma polémica e longa gestação, não podemos deixar igualmente de saudar a racional capacidade e a persistente coragem de Terry Gilliam, assim como dos seus mais próximos colaboradores, de levar até ao fim um sonho quixotesco que, se fosse com outros, ficaria certamente pelo caminho.
O Homem que Matou Dom Quixote, em análise
Movie title: O Homem que Matou Dom Quixote
Date published: 16 de February de 2022
Director(s): Terry Gilliam
Actor(s): Jonathan Pryce, Adam Diver, Joana Ribeiro, José Luis Ferrer, Ismael Fritschi
Genre: Aventuras, Comédia, Drama, 2018, 132 min
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João Garção Borges - 55
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Emanuel Candeias - 72
Conclusão:
PRÓS: Devo confessar que esperava que os 25 anos de gestação de um filme mergulhado em polémicas e peripécias de produção, que quase parecem oriundas da mais desbragada ficção, acumulassem ideias sobre ideias que alimentassem os exageros de um certo barroco cinematográfico patente noutras obras do realizador. Felizmente, apesar da vontade de entrar pelos caminhos do excesso estar lá, Terry Gilliam não carregou nas cores mais fortes do seu estilo, nem em extremos em que fosse visível a falta sistemática de economia narrativa. Deste modo, mesmo com algumas reticências, O HOMEM QUE MATOU DOM QUIXOTE pode ser visto como aquilo que afinal sempre quis ser, uma divertida variação sobre um clássico da literatura que, apesar dos anacronismos comportamentais do protagonista, ainda se presta a um incisivo jogo de correspondências com a realidade dos nossos dias. Resta saber se ficamos com o desejo de repetir a dose.
CONTRA: Nada que não esteja dito no artigo. Seja como for, há que acrescentar o seguinte: percebo porque se assustaram os defensores do património histórico nacional, apesar de saber como se podem e devem controlar os danos de uma rodagem com efeitos especiais de alguma vulnerabilidade. E mais não digo. Vão ver o filme, pesem a razão de uns e outros na polémica então gerada e decidam se o resultado visível, realmente o lado mais espectacular das sequências finais, faz algum sentido ou alguma falta do ponto de vista ficcional.