LEFFEST’ 16 | Os Belos Dias de Aranjuez, em análise

Wim Wenders traz ao cinema Os Belos Dias de Aranjuez de Peter Handke em gloriosa cor, rasgos de surrealismo e um notável trabalho de fotografia 3D.

os belos dias de aranjuez leffest

Os Belos Dias de Aranjuez, o novo filme de Wim Wenders e o seu primeiro em francês, inicia-se com uma série de imagens de Paris capturadas em glorioso 3D, como já é hábito deste realizador germânico. Ao som de “Perfect Day” de Lou Reed, a audiência é inebriada pela espetacular fotografia de Benoît Debie que devia receber algum prémio humanitário pelo seu trabalho neste filme pois as suas pinturas de luz e cor são dos poucos elementos que atenuam a tortura de aborrecimento mortal que o cineasta de As Asas do Desejo e Pina decidiu impingir ao seu público. Se o seu último esforço em cinema de ficção Tudo Vai Ficar Bem já era uma potente arma de frustração, tédio, desespero e anestesia, então Os Belos Dias de Aranjuez são de uma potência que deverá certamente ir contra os ditames da Convenção de Genebra.

Lê Também: Tudo Vai Ficar Bem, em análise

Adaptado do texto homónimo do dramaturgo austríaco Peter Handke, que insolitamente escreveu a peça já a pensar na sua transferência ao grande ecrã, Os Belos Dias de Aranjuez focam-se principalmente num comprido diálogo entre um homem e uma mulher, cujos temas vão desde as primeiras experiências sexuais, ao desenvolvimento da flora à volta de Aranjuez em Espanha, à natureza da sexualidade feminina e inúmeros interlúdios por questões de banal existencialismo. Eles encontram-se num jardim idílico, fora do tempo e da história, como se fossem o resumo universal do Homem e da Mulher – na verdade, até têm uma maçã entre eles para delinear ainda mais esta ligação ao Éden.

os belos dias de aranjuez leffest

A esta básica premissa de raízes inexoravelmente presas a um teatro classicista, Wim Wenders acrescentou uma série de mecanismos cinematográficos e dramatúrgicos que exacerbam a metatextualidade do diálogo, ao mesmo tempo que conferem a toda esta obra uma necessária pulsação de energia. À la Pirandello, a conversa do casal é observada e escrita por um frustrado dramaturgo que fala alemão e escreve numa anacrónica máquina de escrever, ao mesmo tempo que tem um ipad na sua secretária. O já mencionado uso de fotografia 3D acrescenta aos procedimentos outra camada de experimentação formal, mas ainda temos a gloriosa presença de uma jukebox que, no segundo melhor momento do filme, conjura uma aparição espectral de Nick Cave que vem despertar quem da audiência tiver sucumbido à mercê piedosa do sono.

Pelo menos no sono, esse público seria poupado à anódina montanha de texto que Sophie Semin e Reda Kateb são forçados a vomitar ao longo de mais de 90 minutos. Pela sua parte os atores fazem o que podem com o material que lhes é dado. Kateb tem o papel mais reativo e interrogador pelo que a sua presença funciona mais como uma representação de Handke dentro da peça do que como o foco do texto ou sua âncora. Essa responsabilidade recai sobre os ombros de Semin que se mostra adepta deste tipo de ginásticas linguísticas e densa textualidade, conseguindo ir encontrando vitalidade e complexidade humana no seu desumano papel.

os belos dias de aranjuez leffest

No entanto, nem mesmo os melhores esforços da atriz conseguem atenuar as mais irritantes passagens do texto de Handke. Apesar da sua mestria, o dramaturgo austríaco raramente se mostrou adepto a escrever papéis femininos e aqui esse problema chega ao seu feio apogeu com uma figura representante de todo o seu sexo. É impossível esquecermo-nos que esta criatura num vestido que magicamente muda de cor ao longo do filme não é mais que um fragmento da imaginação masculina de um autor cuja ideologia por vezes tende a ser tristemente reacionária para com retóricas de género e argumentações feministas acerca da sexualidade.

Lê Ainda: Regresso a Ítaca, em análise

Apesar de tudo, mesmo um texto como este, cheio de lugares comuns tornados mais superficialmente complexos pela convoluta e floreada verbosidade de Handke, consegue ter alguns momentos de valor. De destacar estão duas passagens perto do final, quando uma piada sobre a insistência na inação e constante diálogo consegue despertar risos genuínos no público e uma repetida admissão que todo este exercício foi em vão e que Os Belos Dias de Aranjuez revelam, e são sobre, nada. Tal admissão de fracasso como possível inoculação contra ele é uma postura pós-moderna que, infelizmente, se tem vindo a tornar também ela um lugar-comum na dramaturgia teatral dos últimos tempos, roubando mesmo a este rasgo de sensatez de Handke qualquer tipo de surpresa ou originalidade. Enfim, pelo menos as imagens têm grande valor estético e os tableaux apocalípticos do final sempre imbuem toda a experiência de um peso e grandiosidade que, apesar de não merecer, lhe conferem uma memorável conclusão.

os belos dias de aranjuez leffest

O MELHOR: A miraculosa e piedosa fotografia de Benoît Debie.

O PIOR: Quase todo o diálogo entre Semin e Kateb, não obstante os heroicos esforços dos atores.



Título Original:
Les beaux jours d’Aranjuez
Realizador: Wim Wenders
Elenco:
 Reda Kateb, Sophie Semin, Jens Harzer, Nick cave, Peter Handke

Leopardo Filmes | Drama | 2016 | 97 min

os belos dias de aranjuez leffest

[starreviewmulti id=22 tpl=20 style=’oxygen_gif’ average_stars=’oxygen_gif’] 


CA

 

One thought on “LEFFEST’ 16 | Os Belos Dias de Aranjuez, em análise

  • Se eu tivesse lido essa crítica antes de ter ido ao cinema ontem, teria me poupado da frustração de ver esse filme. Gostaria de ser notificada de novos artigos por email.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *