"O Boneco Diabólico" | © NOS Audiovisuais

O Boneco Diabólico, em análise

Aubrey Plaza e Gabriel Bateman são as novas vítimas de Chucky em “O Boneco Diabólico”, um reboot realizado por Lars Klevberg que não tenta copiar o original à letra, mas também não tem intenções de subverter expetativas em demasia. Este é um slasher que entretém e diverte, mas raramente assusta. Estranhamente, isso é algo a louvar.

No panorama cinematográfico atual, o remake, o reboot e a sequela começam a parecer a norma e não a exceção. A reciclagem de ideias por parte dos grandes estúdios de Hollywood não é nenhuma novidade, é claro. Contudo, a sua hegemonia face a uma crescente razia de ideias originais e audiências sedentas por nostalgia descomplicada é, de facto, um desenvolvimento mais ou menos recente. O pior é que o público prova uma e outra vez aos mandatares da indústria que essa mesma reciclagem é extremamente lucrativa. De facto, quanto mais um filme passivamente oferecer ao espectador mais do mesmo, alterando pouco, só mudando cosmeticamente o original, mais bilhetes são vendidos e a reação dos fãs é esplendorosa.

Aqueles que arriscam revisitar o passado com um olho crítico ou com a intenção de mudar, normalmente metem-se em sarilhos com os espectadores e os fãs dos produtos originais. A Disney e seus infindáveis remakes de clássicos animados são a maior prova disso. Um remake feito plano por plano com efeitos digitais mais dispendiosos é aclamado e aplaudido pelas massas, enquanto outros que tentam oferecer novas perspetivas são imediatamente repudiados, mesmo quando ainda só haja trailers ou notícias de casting para avaliar. Com tais atitudes, começa a ser difícil encontrar boa arte popular, bom cinema, por entre a enchente de mediocridade que assola as grandes salas desde o início do ano até ao réveillon.

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É curioso, portanto, que seja no tão menosprezado género do terror que se encontram dois dos mais exímios exercícios em nostalgia cinematográfica do ano. Mais estranho ainda é que ambos os filmes se focam em bonequinhos endiabrados com intenções homicidas. “Annabelle 3: O Regresso a Casa” chegou primeiro e trouxe consigo uma boa dose de virtuosismo formal à benesse de uma história simples e modesta, um espetáculo nostálgico de sustos brincalhões ao gosto dos clássicos de terror da Hammer. Depois veio o filme que aqui nos propomos a analisar, “O Boneco Diabólico”. Trata-se de um remake, ou um reboot se preferirem, do franchise de horror que se centra em volta de Chucky, um brinquedo antropomorfo que tem vida e uma atitude vagamente psicopática.

Mais especificamente, uma história originalmente feita à imagem de uma década marcada por constantes notícias de crimes contra crianças e histerias satânicas nos EUA, é agora refeita para uma época onde a tecnologia, suas maravilhas e seus horrores, estão no centro da nossa sociedade. Não nos esqueçamos que “Black Mirror” é uma das séries mais populares da atualidade. Como tal, este Chucky já não é um boneco possuído pelo espírito de um serial killer, mas sim um gadget corrompido por um trabalhador descontente da Apple (o filme chama-lhe Kaslan, mas todos sabemos que é a Apple). Por outras palavras, passámos do conto de uma possessão demoníaca a atacar crianças para a história de uma versão da Siri se esta tivesse tendências homicidas e um total desrespeito pela vida humana.

Isto parece absurdo, mas resulta. Enquanto “Annabelle” é classicismo com os olhos sempre postos no passado do género, “O Boneco Diabólico” mira o presente e apenas vai buscar a sua premissa e iconografia básica ao franchise que começou nos anos 80. Na verdade, “O Boneco Diabólico” tem tão pouco que ver com as aventuras do Chucky original que os cineastas podiam muito bem ter-lhe mudado o nome e a aparência e proposto o filme como uma produção original. É aí que está o génio da coisa, há que se entender. Para vermos o Chucky assassino com a voz de Brad Douriff, já existem os outros filmes. Sem nos desafiar em demasia, esta nova permutação oferece-nos uma perspetiva nova, acrescenta algo e faz tudo isso sem trair o espírito do original.

Esse é mesmo o ingrediente central para o surpreendente sucesso de ambos estes filmes enquanto obras de entretenimento escapista de qualidade. Quando se faz terror com bonecos assassinos no modelo de um slasher, há que se entender que qualquer pretensão de seriedade é errónea. Enquanto tantos outros exemplos do género procuram prestígio ou choque, seriedade portentosa ou visceralidade assustadora, estas delícias cinematográficas não levam nada a sério. Não há abordagem mais apropriada para um slasher deste tipo. Afinal, estes são objetos de diversão, pequenos banhos de sangue onde o drama é só um pretexto para piadas negras e efeitos vistosos. Até o medo não interessa tanto como o prazer despreocupado e despretensioso.

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“O Boneco Diabólico”, em particular, é tão desprovido de seriedade que as suas mortes raramente têm o peso da perda de uma vida. Isto não é uma fragilidade, mas uma mais-valia, como se os cineastas estivessem a admitir que o espectador está num espetáculo de grand guinol e que mais vale divertir-se com as cores fortes, a música arrepiante e a carnificina criativa que procurar algo mais profundo. Temos aqui um slasher feito por pessoas que genuinamente amam e entendem slashers. E o melhor de tudo é que o filme não usa essa mesma atitude para se deixar cair em displicências formais, narrativas mal construídas ou personagens mal escritas, nada disso. Desde a nova história de origem de Chucky até à catarse do fim, esta endiabrada comédia de terror raramente dá um passo em falso. Não arrisca nada, mas também não falha.

O novo design do boneco é algo horrendo para quem estiver muito preso à expressividade plástica do original, mas faz todo o sentido para a variação tecnológica do Chucky do século XXI. Além disso, a escolha de Mark Hamill para dar voz a esta criatura robótica é inspirada e ele nem é o melhor ator em cena. Essa honra recai sobre Brian Tyree Henry como um polícia metido à força no pesadelo do bonequinho. Ele de algum modo consegue criar um ser humano multidimensional sem nunca trair as convenções do género. Aubrey Plaza e Gabriel Bateman como a dupla de mãe e filho à volta da qual a história se desenrola também não estão mal e trazem energia e charme ao projeto.

Igualmente meritosa é a fotografia cheia de cores saturadas e desavergonhado artificialismo de Brendan Uegama. Também aplaudimos a cenografia modesta, mas precisa, de Dan Hermansen e a banda-sonora monstruosamente infantilizada de Bear McCreary. “O Boneco Diabólico” não é terror elevado ao estatuto de cinema de autor, nem tem pretensões disso. Também não é um exercício em nostalgia vácua. É, pelo contrário, um agradável slasher que não se leva demasiado a sério, ao mesmo tempo que entende que entretenimento simples não deve vir à custa de primorosa execução estética ou perspetivas modernas. Oxalá todos os remakes e reboots fossem assim.

O Boneco Diabólico, em análise
O Boneco Diabólico

Movie title: Child's Play

Date published: 27 de July de 2019

Director(s): Lars Klevberg

Actor(s): Mark Hamill, Aubrey Plaza, Gabriel Bateman, Brian Tyree Henry, Tim Matheson, David Lewis, Beatrice Kitsos, Trent Redekop, Ty Consiglio, Carlease Burke, Marlon Kazadi

Genre: Terror, Comédia, 2019, 90 min

  • Cláudio Alves - 75
75

CONCLUSÃO:

Esta nova versão de “O Boneco Diabólico” representa uma agradável modernização da premissa narrativa original. Um bom elenco e uma equipa técnica surpreendentemente virtuosa ajudam muito o filme sem lhe dar uma pátina de indevido prestígio dramático. Um bom exemplo de um slasher num modelo clássico com ideias contemporâneas à mistura.

O MELHOR: A atitude bonacheirona de todo este exercício de medo e diversão.

O PIOR: A estrutura do guião é algo errática e o modo como o filme telegrafa todos os seus sustos deverão irritar aqueles que procuram surpresas constantes no cinema de terror. Não há nada de surpreendente neste confortável entretenimento de verão.

CA

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