Bono e Assange: Dois documentário e duas performances sobre verdade, dor e identidade | Festival de Cannes 2025
Nos dias mais intensos e simbólicos do Festival de Cannes 2025, houve ainda espaço para os importantes ‘guilty pleasures’ do crítico. Assistir a dois documentários aparentemente díspares que revelaram um elo inesperado: a necessidade urgente de dizer a verdade — seja com uma canção ou com uma fuga de informação: “Bono: Stories of Surrender”, de Andrew Dominik e “The Six Billion Dollar Man”, de Eugene Jarecki, estarão os dois em breve no streaming ou nas salas de cinema.
De um lado, “Bono: Stories of Surrender”, de Andrew Dominik (“Blonde”), que regista o monólogo musical do vocalista dos U2, que transforma memórias pessoais em arte confessional. Do outro, “The Six Billion Dollar Man”, de Eugene Jarecki (“The King”, sobre Elvis Presley), que projeta na tela a complexa figura de Julian Assange, num retrato incisivo sobre jornalismo, poder e liberdade. Ambos estrearam fora da competição oficial, mas ocupam o centro emocional e político desta 78ª edição do Festival de Cannes 2025.
“Bono: Stories of Surrender”: quando a fama se torna vulnerável
Baseado na digressão intimista e no livro autobiográfico “Surrender: 40 Canções, Uma História”, Andrew Dominik assina um documentário que vai muito além de um simples concerto filmado. Num palco minimalista e filmado maioritariamente a preto e branco, Bono expõe a alma: fala da mãe que perdeu cedo, da relação complicada com o pai, da fé cristã, de cirurgias que quase o derrubaram e do amor resiliente por Alison, a sua companheira de vida. O que poderia ser apenas mais um exercício de egotrip, torna-se um ato de entrega emocional. Dominik, habituado a filmar lendas em crise (de Marilyn Monroe a Nick Cave), adota uma estética entre o teatral e o documental, amplificando o poder da palavra e da música. Ao lado de uma pequena equipa de músicos, Bono revisita clássicos dos U2 com novos arranjos e uma nova carga emocional. Ainda que a ausência dos outros membros da banda pese, é justamente essa solidão em palco que o documentário transforma em força. Uma confissão pública com encenação, mas com verdade nos silêncios. (Estreia a 30 de maio na (Apple TV+)
“The Six Billion Dollar Man”: a verdade como ameaça
Se Bono se despe perante uma plateia em nome da empatia, Julian Assange regressa ao centro das atenções num gesto de alto risco. “The Six Billion Dollar Man”, o novo documentário de Eugene Jarecki, apresentado em Cannes após ter sido adiado em Sundance — diz-se por aí, que teve de cortar algumas sequências incómodas — acompanha os últimos anos de vida do fundador do WikiLeaks — desde a sua detenção até à libertação, em 2024, num acordo judicial com os EUA. Assange esteve presente em Cannes, na apresentação do filme de Jarencki. A sua presença marca um grito contra a erosão da liberdade de imprensa. Jarecki rejeita hagiografias fáceis e constrói um retrato em camadas: o visionário da transparência, o fugitivo perseguido, o homem destruído pelo sistema e, finalmente, o pai que regressa ao convívio da família após mais de uma década isolado. O documentário não é apenas sobre Assange, mas sobre o estado do jornalismo mundial. Jarecki acusa os grandes media de se renderem aos interesses económicos e políticos, abandonando os whistleblowers à sua sorte. Ao lado de Assange, nomes como Edward Snowden e Chelsea Manning, entre outros surgem como símbolos de um tempo em que dizer a verdade é um ato de resistência.
VÊ TRAILER DE “BONO: STORIES OF SURRENDER”
Verdade, performance e resistência
Apesar das diferenças formais e temáticas, “Bono: Stories of Surrender” e “The Six Billion Dollar Man” dialogam naquilo que têm de mais profundo: ambos são exercícios de exposição, de coragem e de vulnerabilidade. Um em nome da arte; outro em nome da democracia. Se Dominik nos lembra que mesmo as estrelas de rock têm cicatrizes que precisam de ser contadas, Jarecki alerta para o preço brutal de se querer contar a verdade no mundo real. Ambos os filmes provam que não há nada mais político do que a intimidade, nem nada mais íntimo do que a luta pela verdade.
JVM