"Depois da Tempestade" | © Bandai Visual Company

Cannes em Casa | Depois da Tempestade (2016)

Mais uma vez, a Magazine HD propõe um programa alternativo para os cinéfilos que não têm o privilégio de estar em Cannes para assistir aos filmes do festival. Ao longo dos dias de festa na Croisette, iremos revisitar alguns dos trabalhos passados dos realizadores em competição, a começar com Hirokazu Kore-eda. O cineasta japonês é nome habitual em Cannes, ora dentro da secção principal ou competições paralelas. Assim foi em 2016, quando apresentou “Depois da Tempestade” em Un Certain Regard. O filme viria a passar por muitos festivais, ganhando honras aqui e ali. No entanto, é justo dizer tratar-se de um dos esforços mais injustamente subvalorizados deste mestre do cinema que, uns anos mais tarde, viria a ganhar a Palme d’Or e uma nomeação ao Óscar por “Shoplifters.”

Hirokazu Kore-eda começou a carreira enquanto documentarista, trabalhando para televisão tanto quanto para cinema. A transição para o filme narrativo deu-se nos anos 90, mas o realizador que hoje conhecemos ainda não se havia consolidado em termos de estilos e temáticas. Não que os seus primeiros esforços sejam descartáveis. De facto, diríamos que algumas das suas maiores obras-primas se enquadram nesta fase do desenvolvimento artístico, como é o caso do metafísico “After Life,” onde o ethos de Kore-eda se manifesta por vias anti naturalistas, quase Brechtianas.

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© Bandai Visual Company

Seria na viragem do milénio que uma assinatura precisa haveria de aparecer, quando o realizador se virou para uma pesquisa realista sobre a sociedade japonesa atual. Nesse sentido, foi-se buscar um pouco do intuito documental, agora aliado à construção dramática. Ora examinando o rescaldo de um suicídio em massa ou os epítetos de pobreza no meio da metrópole, Kore-eda tornou-se num dos mais importantes retratistas do Japão no grande ecrã. É nesta etapa da evolução que nos deparamos com as duas grandes constantes que viriam a definir o restante trabalho do artista.

Referimo-nos, pois claro, a noções de família e infância, especialmente quando estas se mostram contradizentes com os ditames da sociedade nipónica tradicional. Tudo isto para dizer que “Depois da Tempestade” representa um ponto inevitável no percurso de Hirokazu Kore-eda e seus contos de domesticidade disfuncional, desfeita, desesperante mesmo quando serena. Estamos perante outra história de rescaldos, estando o conflito principal perdido algures num prólogo a que nunca temos acesso. Por outras palavras, a tempestade já passou.

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A tormenta, neste caso, foi um casamento terminado no divórcio e para trás deixou uma família presa num limbo agridoce. Hiroshi Abe é Shinoda Ryota, um detetive transtornado pela perda do pai e cujo matrimónio há muito desmoronou. Sozinho e solteiro, meio desamparado no luto, ele confronta-se ainda com o problema financeiro de sustentar o filho aos cuidados da ex-mulher. Terá o choque da morte provocado alguma epifania no homem? Talvez. Pelo menos, suscitou a crise interna e externa, uma oportunidade para se olhar ao espelho e articular o que nele vê.

Nesse sentido, “Depois da Tempestade” é um estudo de personagem. Contudo, como todo o filme de Kore-eda, o individualismo de tal proposta é sacrificado em prol de um foco mais disperso, uma atitude mais coletiva. Não nos restringimos à observação de Ryota, mas sim de toda a família em seu redor. De facto, uma das figuras mais queridas do filme é a mãe do protagonista, interpretada com sublime perfeição por Kirin Kiki num dos seus últimos papéis. Entre a ternura e a censura gentil, a preocupação materna e o júbilo de anciã, a atriz tem aqui aquele que é talvez o seu melhor desempenho no cinema de Kore-eda.

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© Bandai Visual Company

É evidente, pois claro, que todos os atores são estupendos, tal como é costume com este cineasta. Abe é uma base sólida sobre a qual se constrói o drama, capa de nos levar à afinidade sem ignorar os lados mais ásperos da personagem. Note-se o orgulho venenoso que atormenta este homem preso às memórias do passado, quer seja a glória profissional enquanto escritor ou sua identidade de marido. Ambas as realidades já sumiram, mas o seu fantasma perdura na interpretação do ator e ajuda-nos a perceber as angústias do texto, as escolhas complicadas e temerosas tentativas de remendar harmonias perdidas em caos.

A regra principal que orienta atores e realizador, montagem e fotografia, é sempre a empatia. Procura-se o entendimento entre espetador e sujeito, mas também entre as muitas figuras presas no purgatório do enredo. Esse último ponto é meio literal, sendo que a proximidade da família resulta de outra tempestade. Desta vez não é metafórica, mas sim um evento climático que os enclausura no apartamento, esperando que o pior passe para cada um seguir em frente na sua solitude. Este suspiro de união precária, efémera, remete para um episódio passado, uma memória entre pai e filho que Ryota tenta recriar. Só que o ontem jamais se repetirá no hoje e, ao fim do dia, tudo volta ao normal. Deixando-nos inebriar pela esperança, quiçá algo tenha mudado, mas convém assumir que não. A bonança pode ser mais uma mentira refletiva, uma ilusão causada pelo céu limpo e sol doirado. Essa maturidade, essa franqueza na face do sentimento é parte do que faz o cinema de Hirokazu Kore-eda tão mágico e torna “Depois da Tempestade” numa das suas façanhas mais preciosas.

“Depois da Tempestade” está disponível na plataforma FILMIN, juntamente com outras obras de Hirokazu Kore-eda. Não deixes também de acompanhar a cobertura MHD do Festival de Cannes, feita no local pelo crítico José Vieira Mendes.

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