©The Stone and the Plot

Mulheres da Noite, em análise

A carreira de Kinuyo Tanaka está em destaque, com a exibição de “Mulheres da Noite” no ciclo cinematográfico dedicado à cineasta!

MULHERES PARA QUEM A GUERRA NÃO ACABOU…!

Kinuyo Tanaka assinou em 1961 a quinta longa-metragem como realizadora, ONNO BAKARI NO YORU (MULHERES DA NOITE), produção da TOHO, fotografada no formato largo, TOHOSCOPE. Não foi a primeira vez que a cineasta penetrou nos meandros sombrios da História do seu país, sobretudo os que antecederam a Segunda Guerra Mundial, em que o Japão dominado por militaristas fascistas, com a cumplicidade do Imperador Hirohito, foi responsável por uma política expansionista que se manifestou numa fase primordial pela invasão da Manchúria (19 de Setembro de 1931), onde viria a instalar um estado-fantoche, o Manchukuo, destinado a servir de plataforma para a invasão da China. Estamos a falar do filme imediatamente anterior, RUTEN NO HI (A PRINCESA ERRANTE), 1960. Entretanto, no filme que agora nos ocupa a atenção, Kinuyo Tanaka não se afastou do olhar analítico de que se serviu para estabelecer as linhas de força e a atmosfera global de obras como KOIBUMI (CARTA DE AMOR), 1953, a sua primeira incursão na realização, investindo desta vez num quadro mais específico referente ao mundo das “mulheres perdidas”. Nem muito menos abandonou a visão crítica dos conflitos políticos, económicos e sociais gerados pela guerra, que em certos casos se prolongaram para o pós-guerra. Deste modo, MULHERES DA NOITE perfila-se como uma nova abordagem da História japonesa, mas orientada para os anos da reconstrução durante os quais as autoridades nipónicas procederam a uma recuperação da identidade nacional junto das mais diversas parcelas da população civil. No caso do presente filme, o argumento desenvolve uma estrutura ficcional que parte da fronteira entre o antes e o depois da entrada em vigor da lei que visava proteger as muitas mulheres que ficaram expostas a um nefasto comércio sexual, que não era novidade mas fora ampliado pela devassidão moral provocada em grande parte pela presença dos militares americanos que faziam parte da força de ocupação após a rendição do Japão. Esta situação era sobretudo visível e palpável nas áreas urbanas onde se ampliaram vícios antigos e práticas pouco recomendáveis, incentivando circuitos que rapidamente foram abocanhados e controlados pelos que sempre souberam movimentar-se nos eixos da corrupção moral e financeira e, naturalmente, os do crime organizado. De entre os malefícios que as forças militares estrangeiras nem sempre souberam combater, a prostituição constituiu um negócio florescente, não só para muitos marginais mas também para algumas mulheres oriundas de regiões devastadas ou filhas de famílias pobres que não viam alternativa para sobreviver senão vender o corpo por escassos dólares, incluindo a oferta de produtos de duvidosa necessidade que para o melhor e o pior simbolizavam uma ilusória mudança de paradigma existencial e a sensação de uma certa liberdade associada ao assimilar de modas e costumes ocidentais.

Mulheres da Noite
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Na sequência que serve de pré-genérico a MULHERES DA NOITE, vemos num estilo próximo do documentário o que se passou na época através da reconstituição dos dias que se seguiram ao anúncio oficial da interdição da prostituição. Referem-se ali os avisos feitos aos donos dos prostíbulos e a prisão de centenas de prostitutas no curto espaço de um mês. E o comentário sublinha ainda que algumas destas mulheres mantiveram a sua actividade, mas sob formas ocultas. Na verdade, muitas seriam empurradas por proxenetas para uma sempre arriscada semi-clandestinidade, leia-se, formas evasivas, mas por vezes bastante óbvias, de prostituição de rua. E a voz monocórdica do locutor na referida sequência continua: “(…) Em 1956, com a entrada em vigor da lei anti-prostituição, pouco a pouco os bairros vermelhos começaram a desaparecer. Mas eles foram substituídos pelas prostitutas de rua e seus acompanhantes. Recentemente a polícia levou a cabo várias detenções e continua a intensificar o seu raio de acção. As mulheres presas estão actualmente em sessenta e cinco centros de protecção (…)”. Pois bem, será precisamente num destes centros que Kinuyo Tanaka irá concentrar o seu olhar, polarizando a nossa atenção para um grupo de mulheres submetidas a um programa especial de reabilitação e inserção, onde se irá destacar a figura da jovem Kuniko (Chisako Hara), que podemos encarar como a protagonista de um autêntico calvário de afirmação pessoal, um périplo com altos e baixos que percorre em busca da redenção. Mas cedo compreende que o passado não perdoa, e pouco a pouco vê-se condenada a lutar contra as mais velhacas imposturas alheias movidas pelos chamados bons cidadãos que a confrontam, quase sempre por detrás da máscara de uma moralidade de fachada. Entretanto, no interior da instituição que a acolhera, outras personagens femininas irão materializar como ela o retrato desassombrado das relações humanas no seio de uma organização que alberga antigas e novas ex-prostitutas, profissionais do mesmo ofício que, mesmo quando não apresentam o mesmo grau de convicção face a um provável futuro onde pudessem superar máculas passadas, sentem na pele as razões que as levaram a ficar marcadas para sempre. Deste quadro geral, digamos, institucional, sobressai a personagem da directora, cujo comportamento exemplar (diria mesmo, demasiado exemplar) garante nas situações mais difíceis ou conturbadas uma atmosfera de estabilidade e disciplina que nem sempre será aproveitada por quem persiste em não se adaptar, procurando mesmo subverter as novas regras do jogo. Será ela, no exercício das suas capacidades de orientação das mulheres por quem se sente responsável, que procura inserir Kuniko no mundo laboral. Todavia, nada parece resultar quando a sua boa vontade esbarra com a hipocrisia daqueles que contacta e posteriormente não se dispõem a aceitar no seu seio uma antiga prostituta. Bem pelo contrário, na sua intolerância são incapazes de conceder uma oportunidade de regeneração, por muito pequena que seja. Kuniko será afastada e discriminada, atiram-lhe para cima com o estigma de pecados passados, facto que a condiciona e a faz regressar ao ponto de origem. Tolerância zero, misturada com uma brutal dose de hipocrisia, será a atitude assumida pela maioria das mulheres que cruzam os seus caminhos com os de Kuniko. Entre outras, a mulher dominadora de um comerciante pouco seguro de si na sua relação matrimonial, e ainda um grupo particularmente sedicioso de colegas empregadas numa fábrica que, numa das mais violentas sequências de MULHERES DA NOITE, demonstram ser mais reles e imorais do que aquela a quem acusam, sem razão, de ser devassa e instigadora de encontros amorosos com os seus namorados, rapazolas sem escrúpulos e dispostos a quebrar as mais elementares regras de respeito pelo outro quando pressentem o caminho livre para abusar da que consideravam poder ser uma mulher de alegadas vulnerabilidades. Mas não, Kuniko já demonstrara antes que não era nem o elo mais frágil nem o sexo mais fraco quando foi obrigada a confrontar-se com um quotidiano que persistia em manter actualizada uma cartilha de antigos preconceitos e falaciosas referências morais. Finalmente, será numa estufa de flores, onde o contacto com outros se reduzia ao mínimo, que Kuniko vai encontrar o equilíbrio desejado. Nesta casa, afastada dos grandes centros urbanos, vive-se uma harmonia que antes nunca experimentara. O casal que a empregara, e sobretudo o rapaz que a acompanhava no cultivo de rosas, permitem-lhe sonhar com um verdadeiro amor e um futuro que se afigurava radioso. Enfim, poderia ser se, mais uma vez, os obstáculos gerados pela exclusão social e, neste caso, a oposição da família do jovem que com ela queria casar, não se sobrepusessem ao rumo de felicidade que por fugazes momentos vislumbrara. No final, veremos Kuniko a exercer uma antiga profissão, não a mais antiga profissão do mundo, mas sim uma das que melhor caracteriza a singularidade das mulheres japonesas, as “Ama-San”, pescadoras que ganham o seu sustento no mar, numa esforçada mas decerto saudável comunhão com a Natureza. Finalmente, uma mulher livre? Pergunta que fica em aberto mas, por mim, vejo essa derradeira sequência como a amarga constatação que o lugar da mulher no Japão continuava comprometido, mesmo numa nova ordem que veio mitigar as prepotências do anterior poder patriarcal.

Mulheres da Noite
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Dito isto, pena foi que Kinuyo Tanaka, no seu evidente projecto de apoio a políticas de reinserção social e de reeducação de mulheres anteriormente submetidas a uma exploração deplorável do seu corpo, o faça com base numa plural articulação de quadros da vida real onde muitas vezes dispersa a força do seu propósito denunciador em episódios substantivos mas nem sempre coordenados entre si para garantir uma maior eficácia na construção de um modelo ficcional capaz de sublinhar os perigos a que as prostitutas, mesmo quando protegidas, continuavam sujeitas. Nomeadamente a sedução manhosa de chulos que nelas apenas procuravam a componente carne para canhão. De facto, fica a sensação de propaganda no ar, subtil e iluminada por boas intenções, sem dúvida, mas com poucas nuances, pouca dialéctica. Dá a impressão que, com a realização de MULHERES DA NOITE, a realizadora e a argumentista, Sumie Tanaka, fizeram o que se esperava que fizessem. Num filme que demonstra perfeita adequação aos excelentes parâmetros da indústria cinematográfica japonesa, procuraram dizer, sob a forma de guião cinematográfico, aquilo que pensavam da nova situação de um país apostado na defesa de um conjunto de valores que pusessem em causa os do passado, que fizessem esquecer as vicissitudes da guerra e a posterior ocupação, e por fim as contradições e dificuldades que se mantinham, como o racionamento de certos bens. Fica a sensação de quererem com esta obra produzir uma resposta afirmativa e vincadamente feminina a favor de uma disposição político-administrativa que visava proteger a condição das mulheres numa sociedade ainda muito condicionada por normas esclerosadas de comportamento. Mesmo na mudança para um regime democrático, muitos preconceitos perpetuavam-se na ideologia dominante, num país novo, o Japão que queria viver em paz.

Mulheres da Noite
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Mulheres da Noite, em análise

Movie title: Onna bakari no yoru

Director(s): Kinuyo Tanaka

Actor(s): Chisako Hara, Akemi Kita, Kyôko Kagawa

Genre: Drama, 1961, 93min

  • João Garção Borges - 70
70

Conclusão:

PRÓS: Não obstante os reparos apontados nos últimos parágrafos, MULHERES DA NOITE perfila-se como um belo exercício cinematográfico sobre as metamorfoses de uma sociedade que nos anos cinquenta, início dos sessenta, procurava um novo rumo que a libertasse de vez das sombras do passado e, neste caso, dos resquícios da prostituição, do crime e da corrupção, que sempre se praticaram mas subiram em flecha no imediato pós-guerra, em grande parte fruto da ocupação americana do Japão e da presença de militares que não se limitavam a manter aquele país no rumo certo, o da liberdade, democracia e, já agora, no respeito pela dignidade humana. Enfim, nada de novo, neste caso, na frente oriental.

Belíssima Direcção de Fotografia de Asakazu Nakai. Muito competente Direcção Artística de Motoji Kojima. E muito eficaz Banda Sonora Musical de Hikaru Hayashi.

CONTRA: Nada.

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