"Holy Motors" | © Leopardo Filmes

Cannes em Casa | Holy Motors (2012)

Todos os anos, cinéfilos por todo o mundo acompanham o Festival de Cannes à distância, ora com alegria ou a displicência que vem com a antecipação esmifrada. Em 2021, a Magazine.HD propõe uma cobertura alternativa. Juntamente com críticas a vir diretamente da Croisette, vamos por aqui examinar e rever obras dos cineastas na competição deste ano, tudo filmes disponíveis para streaming em Portugal. Isso quer dizer que, através de casa, podes seguir uma espécie de Cannes do sofá. Em primeiro lugar, como Leos Carax vai abrir as festas com “Annette”, por aqui vamos relembrar o seu último filme a competir em Cannes – “Holy Motors” de 2012.

Por muito bizarra que a obra possa parecer, é importante ter em mente que “Holy Motors” se centra num conceito solo e daí extrai todas as suas mirabolantes visões. Acima de tudo, é um filme sobre filmes, sobre a arte de os fazer e o júbilo de os ver. De facto, o que mais transtorna no trabalho final é quanto Leos Carax tenta conter numa duração menor que duas horas. “Holy Motors” luta por conter em si toda a galáxia de possibilidade que é esta nossa amada sétima arte. Incrivelmente, no seu sonho surreal, o filme até consegue cumprir o objetivo.

De modo extremamente sumário, “Holy Motors” abre num cinema, a audiência no ecrã mirando a audiência do lado de fora. Depois disso, segue-se uma pseudo narrativa, a longa viagem de um homem, o Sr. Oscar, através de uma série de trabalhos. Pelas ruas de Paris ele divaga numa limusina, guiado por uma misteriosa senhora, e cada vez que sai é uma nova pessoa. Dentro do veículo, afigura-se um camarim, mas não estamos a ver um mero ator, um reles mortal. Ou estaremos? Talvez Sr. Oscar seja uma sinédoque de todos os atores? Todos os cineastas.

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© Leopardo Filmes

Interpretado por Denis Lavant, Oscar é um ser em perpétua metamorfose como todos os atores são perante a câmara. Ao longo do filme, ele assume uma série de diferentes identidades, morre e renasce, é pai e anciã, é bailarino, amante, velho, novo, é cinema e é merda. Seu corpo não lhe pertence e a cara também não. Trata-se de uma tour de force do outro mundo, tão descaradamente arriscada como todo o filme que a rodeia e contextualiza. Sentimos vislumbrar um rasgo de loucura, mas, dentro de “Holy Motors”, tudo faz sentido.

Lavant nunca esteve melhor e, ao lado da fabulosa Edith Scob assim como um vasto elenco que inclui cameos de Eva Mendes e Kylie Minogue, ele é quase que santificado pela câmara. De facto, há algo de proto religioso no modo como Lavant tenta condensar o ato criativo num pesadelo que segue da manhã para o fim da escuridão noturna. A contracorrente de melancolia confere esse estranho sabor, como se o realizador estivesse a louvar suas divindades pessoais antes que elas cessem de existir. Um olhar apocalíptico para o CGI e o motion capture certamente parecem pressagiar o fim de algo sacro.

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Enfim, a desventura picaresca divide-se em nove capítulos principais, um prólogo, intervalo e epílogo. Esta estrutura permite que a experimentação nunca aborreça, sendo que, quem não aprecia o caminho de um momento, depressa verá algo completamente diferente passados uns minutos. Acontece que cada episódio representa um género distinto, um outro modo de fazer cinema. É quase uma tese ilustrada, ou um tratado crítico combinado com a folia circense.

O momento de intervalo é especialmente saboroso, interrompendo quaisquer ponderações textuais para entreter o espetador com um concerto de acordeão extravasado por sonoridades rock. Quem ache que “Holy Motors” é demasiado removido do mainstream para ser divertido, entenda-se que este é um edifício fílmico para todos aqueles que amem cinema. Há algo para qualquer espetador amar, aplaudir, delirar. Imprevisibilidade é a palavra de ordem e há surpresas a cada esquina e a tela praticamente transborda com a ambrósia da criatividade, inebriando aqueles que lhe estão em frente.

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© Leopardo Filmes

O filme tanto é um golpe mortal que estilhaça a realidade cinematográfica num caleidoscópio partido, como também é uma carta de amor chorosa à magia do grande ecrã e às estrelas que nele brilham. Apesar do desígnio surreal de Carax, “Holy Motors” não se esconde por detrás de um ostentoso véu de alienação. Pelo contrário, há enorme sinceridade no exercício, uma qualidade quase lamecha, tanto está insuflada de sentimento. Vejam-se as várias referências a outros filmes e até a inserção de clipes da história do cinema. Este é um hino de paixão e alegria, tristeza pela perda antecipada, com um raio de esperança cómica no fim. Louvados sejam estes sagrados motores, engenhos de desejo e fantasia. Louvados sejam os filmes.

“Holy Motors” está disponível para alugar na MEO e na FILMIN. “Annette”, a mais recente fita de Leos Carax e filme de abertura de Cannes 2021, estreia exclusivamente nos cinemas portugueses esta quinta-feira.

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