"O Pequeno Quinquin" | © Leopardo Filmes

Cannes em Casa | O Pequeno Quinquin (2014)

Bruno Dumont apresentou hoje o seu mais recente projeto no Festival de Cannes. Enquanto esperamos que o seu “France” chegue ao público português, temos de nos contentar com a retrospetiva do seu trabalho anterior. Para esta cobertura de Cannes em Casa, decidimos recordar o grande épico de comédia inusitada e mistérios criminais que Dumont realizou para a televisão francesa. “O Pequeno Quinquin” é um projeto que transcende barreiras entre o cinema e a TV, um mural grandioso que interseta as caras grotescas de Caravaggio e os infernos terrenos de Bosch.

Hoje em dia, diferenciações entre o que pertence ao pequeno ou ao grande ecrã são difíceis de averiguar. “O Pequeno Quinquin” de Bruno Dumont foi, na sua génese, uma encomenda televisual, uma minissérie de quatro episódios que recorda o modelo misterioso de “Twin Peaks”. Contudo, esta bizarra criação também foi apresentada em cinemas, em festivais e outros demais. Nesse paradigma, foi projetado como um titã de 197 minutos. Não obstante a categoria em que o considerem, “O Pequeno Quinquin” é quiçá a obra máxima do seu autor. Além do mais, este mural da palhaçada sem sorrisos afirma-se como um ponto de transição na carreira de um dos mais estranhos e idiossincráticos mestres do cinema gálico moderno.

Ao longo dos anos, Dumont tem vindo a afigurar-se como uma espécie de herdeiro ao legado audiovisual de Robert Bresson. Seus filmes primeiros evidenciavam um gosto pelo minimalismo, pelo trabalho com atores não-profissionais em registos espartanos, desafetados até ao ponto da alienação. Obras como “Flandres” e “L’Humanité” revelam ainda um artista interessado na brutalidade da ação humana, a violência inerente ao mais pequeno gesto. Esses filmes também transbordavam candura abrasiva, uma provocação tão mais chocante pela secura com que se mostra. Sexo, nudez, carne rota e espancada, morte e vida, tudo isso se envolve numa espiral dramática onde a misericórdia parece um conceito desconhecido.

o pequeno quinquin cannes em casa
© Leopardo Filmes

Assim foi até “O Pequeno Quinquin” chegar, a putativa estreia do realizador em comédia. É claro que, dependendo do espetador, as risadas podem ou não existir. Em certa medida, a premissa básica do conto em pouco diverge do habitual drama criminal. Tudo começa com uma descoberta horrorosa. Partes desmembradas do corpo de uma mulher são encontradas dentro de uma vaca, trazendo as autoridades até uma remota comunidade rural no Norte de França. A maior parte da história é vista através dos olhos do Pequeno Quinquin que dá nome ao filme. Ele é um menino de dez anos que se diverte a andar de bicicleta pelo campo, procurando artefactos da Segunda Guerra Mundial e sendo o rufia racista para a pequena comunidade imigrante da região.

Entenda-se que a câmara de Dumont jamais nos força, enquanto espetadores, a simpatizar com todas as pessoas em cena. Quanto muito ele rege-se por um valor de empatia, mas o formalismo promove a distância. Aliás, é daí que vem muito do humor. Examine-se a história da vaca, por exemplo. A situação pode ser atroz, mas tudo é encenado num registo que tomba para o ridículo, quase circense. Os céus enevoados, prados sem fim e praias cinzentas são o cenário perfeito para o plano geral e magnânimo. É nesse tipo de composição que vemos o bovino ser içado por um guindaste, imóvel, pávido e sereno. Tudo é tão seco e sério, tão irreflexo da loucura em cena, que não podemos evitar a risada nervosa. Acima de tudo, jamais se sente o beijo do medo ou do temor. A observação não gera suspense algum e não o tenta fazer.

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Ainda para mais, o som justapõe-se à imagem e puxa pela paródia, mesmo antes de cortarmos para o close-up do elenco, essa coleção de caras inesquecíveis. Dumont prefere trabalhar com não-atores, fazendo o seu casting no quotidiano banal ao invés de no contexto da indústria de entretenimento. A técnica varia de projeto para projeto e há ocasiões em que os filmes do autor estão repletos de estrelas francesas. “O Pequeno Quinquin”, contudo, é a expressão máxima desse cinema feito com pessoas bem longe da ribalta. O mais importante desses atores amadores é Bernard Pruvost no papel do Capitão Van der Weyden, principal detetive no caso da mulher desmembrada.

Com olhos redondos e um nariz abatatado, Pruvost relembra os clássicos de Clouseau, mas a expressão desafetada é o que mais caracteriza a presença. Como que constantemente surpreendido por tudo o que vê, o agente sofre de tiques nervosos, movimentos bruscos e repetidos que interrompem o fluir de cenas como buracos numa estrada. Quando pensamos estar a ver um momento perfeitamente vulgar, lá o pneu tomba no tique e o veículo cénico dá um valente solavanco. Quase todos os outros intérpretes seguem a mesma lógica, caras engraçadas e um repertório de idiossincrasias inesperadas. No caso do rapaz titular, o que mais salta à vista é o olhar afiado, a seriedade infantil que parece refletir um desprezo de proporções cósmicas.

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© Leopardo Filmes

São esses atores, conjugados com o argumento lúgubre e o estilo cinematográfico de Dumont que originam o genial tom de “O Pequeno Quinuin”. Cenas prolongam-se até à eternidade, deixando que o drama se estique em comédia, tragédia, um toque melancólico e depois um golpe paródico. O mundo da religião é especialmente sujeito a tais estranhezas e algumas das melhores partes da história passam-se na igreja. Relembramos os afazeres em volta de um microfone e o interlúdio musical que se segue. A canção não é especialmente melodiosa e a voz que a articula está longe da beleza vulgar. Contudo, há graça e graciosidade no momento. É bizarro, mas também é milagroso, uma transformação constante que consegue fazer com que a odisseia em busca de um assassino se torne na grande comédia humanista da última década.

“O Pequeno Quinquin” está disponível na MEO e na FILMIN. Se fores a este segundo site, podes ainda encontrar outros filmes de Bruno Dumont, como “Ma Loute” e “Camille Claudel 1915”.

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