"Potiche - Minha Rica Mulherzinha" | © Midas Filmes

Cannes em Casa | Potiche – Minha Rica Mulherzinha (2010)

O cineasta francês François Ozon estreia hoje o seu mais recente filme no Festival de Cannes. Enquanto esperamos a chegada de “Tout s’est bien passé” aos cinemas portugueses, decidimos lembrar um trabalho passado do realizador. Longe do drama moribundo que o seu novo filme promete, “Potiche – Minha Rica Mulherzinha” é uma deliciosa e muito leve sobremesa cinematográfica. A comédia protagonizada por Catherine Deneuve passou por Veneza e conquistou quatro nomeações para os Prémios César, incluindo na categoria de Melhor Atriz.

A diferença entre os filmes leves e pesados de François Ozon é um abismo sem fundo. Quando pesquisa um registo sério, o autor gálico tende a preferir ora o caminho da provocação psicossexual ou do realismo devastador. “Verão de 85”, estreado ainda este ano em Portugal, é exemplo disso mesmo. O filme inebria-se de desejo enquanto conta o melodrama realista de um romance adolescente, seu fim trágico e a euforia que se pode encontrar na perda. No lado oposto do paradigma, as comédias e melodramas risonhos são monumentos camp, cheios de referências cinematográficas e paletas lúridas, performances estilizadas e sensibilidades descabidas.

“8 Mulheres” estreado em 2002 é quiçá o suprassumo exemplo do bom mau gosto de François Ozon no que se refere ao cinema de fazer rir. Apelando às estéticas de Douglas Sirk, ele pinta um quadro dos subúrbios em tons ácidos, deixando-se levar pelas possibilidades musicais e paródicas de um elenco cheio de divas francesas. É folia da mais descarada, tão artificial que já nem o número cantado chama atenção pela sua falsidade. Na filmografia de Ozon, o filme que mais se assemelha a essas “8 Mulheres” é certamente “Potiche – Minha Rica Mulherzinha”, onde ideias semelhantes são exploradas com maior rigor e o humor apresenta-se mais apurado.

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Além de filosofia estética parecida, os dois filmes partilham também a sua atriz principal. De volta ao cinema de Ozon, Catherine Deneuve encontra em “Potiche” um dos melhores papéis desta fase crepuscular da sua carreira. Entrando no filme em vermelho vivo e emergindo de um arvoredo, a personagem é Suzanne, a filha de um industrial dos chapéus-de-chuva nos anos 70. Depois de o patriarca morrer, o marido desta herdeira burguesa, Robert, tomou controlo do negócio familiar. Só que, apesar de ter entrado na empresa pelo matrimónio, o patrão tirânico faz de conta que todo o aparato é fruto do seu trabalho, sangue, suor e lágrimas. Além de mau chefe, ele é também mau marido, traindo Suzanne com a secretária. Não que isso seja um segredo escondido à senhora da casa.

Vendo as primeiras cenas de “Potiche”, deparamo-nos com um teatro doméstico onde a matriarca há muito aprendeu a viver passivamente e confortável. Não se questionam as maldades matrimoniais, não se espera grande amor, e foca-se a atenção nos luxos da vida e o afeto dos filhos adultos. É assim que ela sobrevive. Só que, um dia, as crises dessa década antiga mostram a cara e uma greve interrompe a paz burguesa. Os trabalhadores revoltosos raptam Robert, mantêm-no como seu refém, e cabe a Suzanne tomar rédeas do negócio e resolver a situação. De ornamento marginalizado na história da sua própria existência, Suzanne passa a protagonista, heroína, salvadora. Felizmente, o processo não é fácil e daí brota muito humor.

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Apesar de viver numa torre de marfim, Suzanne não é parva. Como precisa de ajuda, recorre ao presidente da câmara. Maurice é um comunista afinco que guarda afetos íntimos por Suzanne remontando ao passado dos dois. Interpretado por Gérard Depardieu, a personagem é surpreendentemente delicada e, ao lado da Suzanne de Deneuve, vai redescobrindo o bom sabor da vida ao mesmo tempo que acalma a ira dos grevistas e arranja estratégias para desapoderar a estupidez de Robert. O casal é uma equipa excelente e não demora muito até a flor do desejo, senão do romance, comece a germinar entre os dois. Seus encantos ancoram o filme com humanidade, sentimento genuíno e até candura. Serve isso para contrapor a paródia em redor.

Se Deneuve e Depardieu abordam os papéis pela via da simplicidade, da quietude elegante, o restante elenco escolhe uma abordagem mais circense. Por outras palavras, os outros atores são uma extraordinária coleção de palhaços, no melhor sentido possível. Todos merecem elogios, negociando bem a instabilidade estilizada da proposta, a loucura histérica das piadas e a contracorrente de vulnerabilidade emocional. De destaque ficam Jérémie Renier e Karin Viard. Como o filho pródigo de Suzanne, ele traz estranha sensualidade ao papel, uma confiança quebrada que dá vontade de rir, mas também fascina o olhar. Ela, pelo contrário, rende-se totalmente aos extremos emocionais da premissa, fazendo com que a amante de Robert seja uma constante fonte de comédia estridente.

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Em certa medida, estas distintas escolhas performativas remetem para a heterogeneidade de referências que deram origem a esta “Potiche”. Apesar de o enredo ser complicado, cheio de reviravoltas e surpresas, é no estilo que esta herança do cinema passado mais se acentua. Apelando ao musical gálico e à comédia europeia do século XX, Ozon escolhe um desenho garrido, cheio de padrões contrastantes e fatiotas dignas de uma drag queen. Os figurinos de Pascaline Chavane são o elemento que mais chama a atenção, mas o seu impacto seria diminuído por uma fotografia menos intensa. Atrás das câmaras, Yorick Le Saux filma a fita com tamanha opulência cromática que tanto parece estar a piscar o olho a Demy como a Fassbinder.

Até a manufatura da fábrica é referência cinematográfica. Como poderemos olhar para Deneuve na proximidade de chapéus-de-chuva coloridos e não pensar logo em “Les Parapluies de Cherbourg”? Um veado simbólico aparece no início do filme para o ligar diretamente a “8 Mulheres” também, mostrando que Ozon não está além de referenciar os seus próprios filmes como ingredientes nestes cocktails de pastiche. Se isso não sinaliza quanto “Potiche” é pura indulgência, nada o fará. Longe da perfeição, o filme nem sempre acerta na muche e muitas piadas são um tiro ao lado. No fim, contudo, nada disso interessa. O edifício geral da obra fílmica é de uma beleza assombrosa, um tom açucarado que alimenta bem o espetador em busca de divertimento leve com um travo de sofisticação cinéfila.

Podes encontrar “Potiche – Minha Rica Mulherzinha” na MUBI e na MEO. A FILMIN também tem uma boa seleção de filmes assinados por François Ozon.

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