Festival de Cannes Palme d'or ranking

Festival de Cannes | Grande ranking dos vencedores da Palme d’Or

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Desde os noir dos anos 40 até aos jogos satíricos do século XXI, vem saber quais são os melhores e os piores vencedores da Palme d’Or neste ranking completo de todos os filmes que ganharam a maior honra do Festival de Cannes.

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Shoplifters” de Hirokazu Kore-eda é o mais recente filme a ganhar a Palme d’Or do prestigiado Festival de Cannes, aquele que é o mais importante festival de cinema do mundo. É o quinto filme japonês a alcançar tal honra e o 79º vencedor do maior prémio da secção competitiva do Festival de Cannes. Infelizmente, ainda temos de esperar que o filme chegue a Portugal, por meio de estreia comercial, lançamento em DVD ou passagem por festivais nacionais, antes de podermos experienciar a sua suposta grandiosidade.

No entanto, nada nos impede de perscrutar a história deste tão áureo evento e avaliar os muitos outros filmes que ganharam aos seus realizadores a tão desejada Palme d’Or. Por isso mesmo foi criada este artigo, uma verdadeira odisseia pelo mundo do cinema internacional dos últimos 70 anos, onde encontramos muitas obras-primas, mas também algumas desilusões.

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Do pior ao melhor vencedor do Festival de Cannes, este ranking não inclui “Union Pacifici” de 1939 que ganhou retroativamente a Palme d’Or graças ao voto especial de um júri em 2002, ou aos filmes que ganharam o grande Prémio do festival em 1946. Sendo essa considerada a 1ª edição anual do Festival de Cannes, os prémios ainda não estavam bem definidos o que acabou com mais de uma dezena de filmes a ganhar aquele que era o galardão que haveria de vir a ganhar o nome de Palme d’Or.

Mesmo com essas excisões, a lista final é composta por 78 títulos, cuja ordem poderás explorar, seguindo as setas deste artigo. A acompanhar a listagem do filme encontra-se, pois claro uma justificação crítica para a sua posição no ranking pelo que esta galeria pode ser considerada uma grande coletânea de mini análises dos muito filmes que triunfaram em Cannes. Aproveita para descobrir títulos obscuros que talvez não conheças e para reavaliar porventura o valor de algum filme que já tenhas tido o privilégio de ver.

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Como nota final fica só a lembrança que, a partir para aí do número 50 para cima, só se encontram obras-primas, pelo que a sua posição relativamente baixa não é uma acusação de falta de qualidade, mas meramente uma consequência dos níveis estratosféricos de excelência cinematográfica em evidência nestas obras. Afinal, o festival de Cannes é importante pela qualidade dos filmes que seleciona e por lá já passaram algumas das melhores obras da História do Cinema.


78. SENHORAS E CAVALHEIROS (1966) de Pietro Germi

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Não há nada pior que uma comédia sem piada.

1966 foi um desses raros anos nos anais do Festival de Cannes em que o júri da competição oficial, presidido neste ano por Sophia Loren, acabou por declarar um empate na votação, dando a dois filmes a tão desejada Palme d’Or. Infelizmente, nenhum dos vencedores inspira particular admiração e a situação só piora quando damos uma olhadela à lista dos restantes filmes em competição, onde se incluem títulos como  “As Badaladas da Meia-Noite” de Orson Welles e “Passarinhos e Passarões” de Pier Paolo Pasolini.

É certo que esta comédia ligeira de Pietro Germi não chega sequer aos calcanhares de obras tão majestosas como essas jóias cinematográfica, mas a sua falta de qualidade não depende sequer de tais comparações para se registar. Afinal, esta é essa malfadada besta que é uma comédia sem piada, que ainda por cima é também demasiado comprida para alargar ainda mais a lista dos seus imperdoáveis pecados.

Enfim, pelo meio da sua antologia de três histórias passadas na cidade de Treviso, lá se encontram alguns elementos positivos, mesmo que muito escassos. Eles são a banda-sonora de Carlo Rustichelli e a prestação de Virna Lisi que, não obstante a estupidez textual do guião profundamente misógino, lá consegue injetar algum charme nos procedimentos narrativos desta farsa sexual que tem tão pouco de erótico como de divertido.


77. LIÇÕES DE SEDUÇÃO (1965) de Richard Lester

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Um artefacto misógino dos anos 60.

Se “Senhoras e Cavalheiros” de Pietro Germi é um pesadelo de comédia sexista desprovida de grande valor humorístico, “Lições de Sedução” de Richard Lester é talvez ainda pior nesse aspeto. Pelo menos o filme italiano não tinha sequências de comédia totalmente construídas em volta de acusações e ameaças de violação sexual. Em contrapartida, o filme inglês que arrecadou a Palme d’Or dada pelo júri de Olivia de Havilland em 1965 tem a mais valia de uma abordagem estilística a vibrar de escolhas vanguardistas e excitantes.

É certo que nem todos esses mecanismos formais resultam para benefício do filme e que, na verdade, a maioria deles apenas fazem com que a obra se pareça com um artefacto dos anos 60, mas ajudam o filme a elevar-se acima do seu terrível argumento e coleção de prestações mais irritantes que hilariantes. Uma personagem obcecada em pintar tudo em seu redor de branco é responsável por criar alguns dos momentos mais visualmente cativantes do filme, por exemplo.

Para o espectador com a disciplina mental que o permita compartimentar a sua experiência de ver o filme de modo a ignorar tudo o que não sejam as imagens e estímulos sonoros em exibição, talvez “Lições de Sedução” até possa parecer merecedor da maior honra do Festival de Cannes. Para pessoas que não possuam tal maleabilidade cerebral, o filme de Lester permanece uma comédia desinspirada com o aspeto de um maravilhoso videoclip passado na Londres mod dos anos 60.


76. VERTIGEM (1951) de Alf Sjöberg

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O melhor da peça perdeu-se na adaptação para cinema.

Vertigem” é o bizarro título português dado aquela que é talvez a obra mais famosa de Alf Sjöberg enquanto realizador, uma adaptação para o grande ecrã da peça “Menina Júlia” de August Strindberg. Não que Sjöberg não tenha tido uma carreira ilustre, mas, nos anais da história do cinema, os seus feitos tendem a ser ofuscados pela genialidade ascendente de outro cineasta sueco seu contemporâneo, Ingmar Bergman.

Bergman também era um devoto de Strindberg, mas as suas adaptações das peças desse autor restringiram-se aos palcos. Isso provou ser uma sagaz decisão de Bergman pois, até hoje, é raro o projeto cinematográfico baseado em Strindberg que não seja um exemplo de triste mediocridade. O filme de Sjöberg, infelizmente, não escapa à regra, chegando mesmo a exacerbar alguns dos elementos mais duvidosos do texto original como a misoginia inerente a algumas interpretações da figura titular.

Não que questões de justiça social e representação feminina sejam os únicos ou piores problemas deste filme. Muito mais cinematograficamente pecaminosos são os engenhos pelo qual o realizador tentou alargar a peça que famosamente se passa somente numa cozinha. O resultado é um trabalho onde as marcas de adaptação são horrivelmente visíveis como cicatrizes disformes, e onde o acutilante estudo psicológico e claustrofobia emocional da peça de Strindberg se perderam.


75. UM CORAÇÃO SELVAGEM (1990) de David Lynch

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O trabalho mais indisciplinado de David Lynch.

É raro o cineasta que recebe grandes prémios por aqueles filmes que, ao fim de uma vida, se afirmam como as suas grandes obras-primas, tanto de um ponto de vista artístico como histórico. Mesmo assim, o facto de que o filme que valeu a David Lynch é “Um Coração Selvagem” é algo difícil de aceitar com um sorriso na cara.

De facto, em toda a filmografia de Lynch, é difícil encontrar-se uma obra mais confusa e indisciplinada que esta adaptação de um livro de Barry Gifford, onde o realizador viu por bem acrescentar uma série de piscares de olho temáticos e imagéticos ao “Feiticeiro de Oz”. Não que este épico de incoerência e maximalismo estilístico seja desprovido de méritos. Afinal, mesmo que desastrosas, as experiências de Lynch merecem quase sempre admiração no que diz respeito à sua ousadia e ambição.

O problema é que, neste caso, a experimentação parece repetitiva, quase reacionária, e o resultado acaba por ter o sabor desagradável da inconsequência. Somente o trabalho dos atores traz algo de especial a este filme no contexto maior da obra de Lynch, mas nem aí os resultados mostram grande coerência qualitativa. É que, enquanto Laura Dern, Willem Dafoe e Diane Ladd mergulham de cabeça na bizarria animalesca dos seus papéis, Harry Dean Stanton prefere dar ao filme uma genuína maravilha de honestidade emocional, enquanto, por seu lado, Nicolas Cage anda por ali meio perdido e sem nada valor a oferecer ao espectador.


74. O MUNDO DO SILÊNCIO (1956) de Jacques-Yves Cousteau, Louis Malle

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Hipocrisia ecologista com imagens espantosas.

Muito se fala de como os tempos mudam e que é injusto julgar produtos do passado com critérios atuais. Há alguma razão em tais ideias, mas uma reavaliação crítica com novas perspetivas é também valiosa. Falamos disto, pois, aos olhos de uma audiência moderna, muito do que nos é mostrado em “O Mundo do Silêncio” poderá parecer bem monstruoso e não pouco hipócrita.

Este documentário de Jacques-Yves Cousteau e Louis Malle segue uma equipa de marinheiros e autointitulados exploradores a bordo do Calipso, famosa embarcação com a qual Cousteau se aventurou pelos oceanos em busca de conhecer os seus mistérios. O problema é que os métodos destes homens estão longe de serem bem aceites nos dias de hoje. Eles matam tubarões por desporto, torturam tartarugas gigantes, acidentalmente chacinam uma baleia bebé e chegam mesmo a usar dinamite em recifes de coral para catalogarem as carcaças dos seus habitantes. Verdade seja dita, até na época se levantaram algumas sobrancelhas em incredulidade face a estas ações, de tal modo que Cousteau veio, mais tarde, a desculpar-se e a se manifestar contra tais práticas.

O problema principal dessa atitude destrutiva é que o filme parece ter sido feito de um ponto de vista mais ou menos ecologista, para tentar mostrar às audiências as maravilhas dos oceanos, sua biodiversidade e beleza natural. Só que, pedir ao espectador que respeite um mundo que os supostos heróis do filme estão constantemente a desrespeitar torna-se num peculiar exercício em dissonância cognitiva. Pelo menos, o filme é de uma beleza assombrosa, tendo sido o primeiro a mostrar filmagens a cores subaquáticas. Pela sua qualidade estética e só mesmo por isso é que “O Mundo do Silêncio” não está mais em baixo nesta listagem.


73. A LADY E O MOTORISTA (1973) de Alan Bridges

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Não podia ser mais conservador ou aborrecido.

No festival de Cannes de 1973, o júri presidido por Ingrid Bergman deu a Palme d’Or a dois filmes dos dois lados do Atlântico. Não obstante as consideráveis diferenças entre os projetos, são as suas semelhanças que tornam o seu estudo conjunto em algo de interesse. Tanto “A Lady e o Motorista” como “O Espantalho” são exemplos de cinema realista a tentar representar diferenças socioeconómicas em mundos cuja hierarquia social engloba uma certa desumanidade inerente. Só que, enquanto o filme americano faz isso através de um estudo de personagem moderno ao estilo naturalista da Nova Hollywood, a película de Alan Bridges é um filme de época na boa tradição das adaptações literárias da BBC.

Verdade seja dita, nenhum dos filmes é particularmente brilhante, como se poderá verificar na posição próxima de “O Espantalho” nesta lista, mas ambos exibem valerosos esforços por detrás do seu elenco. No papel de um veterano de guerra traumatizado e de classe trabalhista agora tornado motorista, Robert Shaw é fantástico, mesmo que as reviravoltas mais melodramáticas do filme traiam a dignidade da sua personagem no terceiro ato. Por seu lado, como a viúva aristocrática que emprega esse motorista, Sarah Miles é uma autêntica revelação, encontrando nuance onde o guião apenas sugere dicotomias óbvias.

É pena que, no final, a totalidade do filme não tenha a mesma qualidade que as interpretações dos seus protagonistas e que, apesar de ter intenções de ser uma crítica social, a narrativa acaba por parecer um exemplo de inadvertido conservadorismo social. O seu estilo formal, é certo, não podia ser mais conservador ou enfadonho.


72. A MISSÃO (1986) de Roland Joffé

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Ingenuidade histórica ao som celestial de Morricone.

O modo como Chris Menges filma a floresta amazónica em “A Missão” pode não ter merecido o Óscar de Melhor Fotografia que arrecadou, mas a sua beleza é inegável, quer seja na sua captura de paisagens épicas ou na subtil pintura de luz e nevoeiro em clareiras verdejantes. Ainda mais extraordinário é o trabalho de Ennio Morricone, que compôs para este filme música realmente merecedora do adjetivo celestial.

Aqui termina a nossa enumeração dos aspetos positivos de “A Missão”. Esta cessação não se deve à quantidade enorme de qualidades a celebrar, mas sim à sua absoluta não existência. Talvez os cenários de Stuart Craig possam merecer algum apreço, mas mesmo esses desenhos são cúmplices do discurso histórico ingenuamente venenoso que o filme propõe. Na realidade apresentada por este drama, somente as motivações económicas da escravatura parecem ter sido as marcas negras do colonialismo europeu na América do Sul, sendo a igreja católica completamente inocente e até heróica no seu impulso civilizacional.

Tais fantasias podiam ter sido aceites na Hollywood dos anos 30, mas em 1986 isso já não foi bem assim. A decisão do júri presidido por Sidney Pollack chegou mesmo a ser merecedora de muita indignação e tanta foi a polémica que há quem especule que a direção do festival tenha influenciado a votação.


71. UM HOMEM E UMA MULHER (1966) de Claude Lelouch

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Um anúncio de perfumes com aspirações de longa-metragem.

Um Homem e uma Mulher” de Claude Lelouch seria um maravilhoso anúncio de perfumes se tivesse somente 60 segundos. Infelizmente, tem 102 minutos. Também tem as ambições insustentáveis de ser o retrato da relação amorosa entre um viúvo e uma viúva que se conhecem graças aos seus filhos ingressarem o mesmo colégio na França dos anos 60.

Oxalá fosse só mesmo um anúncio de perfumes, pelo menos nesse caso a suprassuma superficialidade na direção de Lelouch e no argumento de Pierre Uytterhoeven seria justificável. Tirando isso e as duas prestações uni-dimensionais dos protagonistas, que são um produto direto dos problemas na realização e no guião, “Um Homem e Uma Mulher” é um filme cheio de mais-valias. A fotografia, por exemplo, é uma sublime mistura de estilização monocromática e naturalismo colorido cheio de jogos de foco e desfoque. A música é uma banda-sonora clássica e as estrelas em cena são filmadas como estrelas. Ou seja, os atores são filmados de um modo que exacerba de tal modo a sua beleza que eles quase parecem sobre-humanos.

No final, trata-se de um romance muito convencional filmado com todo o brio e opulência estilística da Nouvelle Vague. Ou melhor, é uma espécie de comercialização popular do que, nas mãos de cineastas como Godard e Varda, era vanguarda. Talvez em termos históricos o filme possa ser assim defendido como um marco na passagem das transgressões da vanguarda cinematográfica para o mainstream, mas isso não é suficiente para compensar todo o tédio gerado por esta história de amor tépida.


70. O ESPANTALHO (1973) de Jerry Schatzberg

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Personagens mal esboçadas e muitos clichés americanos.

Anteriormente falámos de como “A Lady e o Motorista” tentou ser uma crítica social acutilante, mas acabou por ser um exemplo de reacionismo cinematográfico tanto a um nível de estética como texto. “O Espantalho” é o outro vencedor da Palme d’Or de 1973 e, apesar de não padecer dos mesmos exatos problemas do filme britânico, não é algo a que se possa chamar um triunfo com grande segurança ou sinceridade.

Neste caso, o grande problema é quão incompleto o filme parece. Melhor dizendo, na sua forma final “O Espantalho” continua a parecer pouco mais que um esboço fílmico. Não é que a obra seja particularmente medíocre, mas existe uma falta de estrutura textual que acaba por infetar todos os restantes aspetos do projeto. Até a fotografia, que é de longe a melhor parte do filme, padece desta anemia de forma e propósito, sendo belíssima na sua documentação realista do interior dos EUA, mas nada mais que isso.

A juntar-se a esta coleção de parca e desinspirada eficiência cinematográfica estão as duas prestações dos protagonistas, Gene Hackman e Al Pacino. Como dois vagabundos a deambularem pelas estradas americanas em direção a Detroit, os atores dão vida a personagens diabolicamente indefinidas que parecem mais pretextos para sessões de improvisação do que seres humanos com vidas interiores. No final, “O Espantalho” coleciona os grandes clichés do cinema americano dos anos 70 e exibe-os em toda a sua aborrecida inglória.


69. MARTY (1955) de Delbert Mann

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Ernest Borgnine mereceu o Óscar,

Ao longo de todos os anos de existência do Festival de Cannes, somente dois filmes premiados com o maior galardão do festival ganharam o Óscar de Melhor Filme. O primeiro foi “Farrapo Humano” de Billy Wilder, mas, como esse foi um dos 11 filmes premiados pelo júri em 1945, não está aqui listado. O segundo destes duplos vencedores e único presente nesta lista é “Marty”, o filme que, até à vitória de “Moonlight”, era também o projeto mais barato de sempre a conquistar o Óscar.

Escusado será dizer que este modesto estudo de personagem sobre um talhante de meia-idade que se apaixona por uma professora solitária não é o típico vencedor do Óscar de Melhor Filme, quer seja pelo seu orçamento como pela sua falta de grande ambição ou fatores epicizantes. Até para Cannes, “Marty” é uma anomalia, neste caso pela sua completa falta de interesse formalista, sendo que o filme em pouco se diferencia dos telefilmes nova-iorquinos que, na época, estavam a ganhar popularidade.

O que parcialmente justifica as escolhas, tanto da Academia de Hollywood como do Júri do Festival de Cannes, é o trabalho de Ernest Borgnine no papel titular. Borgnine dá vida ao seu tristonho talhante com calcinante facilidade, sem sinais de esforço dramático, e sempre com a ponta de um pé nos estilos de atuação da Era Doirada de Hollywood e o outro firmemente plantado no tipo de atuação naturalista que Stanislawsky popularizou nos EUA. Convém referir que o ator ganhou também os prémios de Melhor Ator tanto da Academia de Hollywood como de Cannes.


68. DOIS CÊNTIMOS DE ESPERANÇA (1952) de Renato Castellani

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Uma comédia romântica neorrealista.

O neorrealismo italiano não é um movimento ou estilo cinematográfico normalmente associado a comédias ligeiras. Por isso mesmo é bizarro ponderar que os únicos filmes que se podem confortavelmente categorizar como neorrealistas a terem ganho a Palme d’Or são também duas comédias. O segundo destes improváveis feitos foi “Dois Cêntimos de Esperança”, um filme tão orgulhosamente inserido no panorama do neorrealismo que, mesmo antes da história começar, os cineastas fizeram questão de incluir um texto explicativo sobre o modo como todo o projeto foi filmado na comunidade empobrecida que retrata.

De facto, “Dois Cêntimos de Esperança” é uma comédia romântica cujo conteúdo narrativo, se fosse despido dos seus arranjos humorísticos, seria matéria-prima perfeita para um drama miserabilista. Afinal, o título refere-se à miserável pobreza dos dois amantes no seu centro, um dos quais chega mesmo a entrar numa espécie de negócio onde troca o seu sangue por algum sustento e estabilidade económica.
Por isso mesmo, não obstante uma série de problemas que se focam sobretudo na falta de desenvolvimento de personagens e algumas prestações muito duvidosas dos atores em cena, o filme é uma preciosa curiosidade. A mestria tonal de Renato Castellani é absoluta, como que subjugando a miséria das suas personagens, sem nunca mostrar condescendência ou forçosa glorificação, e daí conseguindo fazer comédia genuinamente divertida.


67. SUBLIME TENTAÇÃO (1956) de William Wyler

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Um filme histórico, mas problemático.

Sublime Tentação” é assim uma dessas obras cuja feitura e legado histórico acabam por ser mais interessantes que o filme em si. Em 1988, numa tentativa de promover sentimentos anti-guerra, Ronald Reagan ofereceu uma cópia em VHS do seu filme preferido a Mikhail Gorbachev. O filme em questão foi o já referido “Sublime Tentação” de William Wyler que, nesse gesto, ganhou um lugar de destaque na história do cinema americano que nem mesmo uma nomeação para o Óscar de Melhor Filme ou mesmo a Palme d’Or do Festival de Cannes de 1957 poderiam garantir.

A situação torna-se ainda mais caricata quando ponderamos o modo como o guião do filme chegou ao grande ecrã. De forma resumida, o argumento, adaptado de Jessamyn West, foi originalmente escrito como uma espécie de manifesto pacifista por Michael Wilson. Esse argumentista foi um dos inúmeros trabalhadores de Hollywood que viram a sua vida virada do avesso pelo Comité de Atividades Antiamericanas do Senador McCarthy, uma iniciativa apoiada na sua génese pelo próprio Reagan nos seus tempos de ator. Tais eventos resultaram em que o argumento saísse das mãos de Wilson, acabando o texto por ser alterado pela mão do realizador William Wyler. De uma defesa do pacifismo Quaker, o filme tornou-se numa documentação de como uma família Quaker em plena Guerra Civil trai todos os valores que começa por defender.

Num seguimento da transfiguração conservadora do guião, todo o projeto parece ter sido executado por Wyler com a convencionalidade estética e tonal como máximo imperativo. A fotografia é particularmente terrível, mas, pelo menos, o filme tem a mais-valia de um elenco capaz de dar vida às dinâmicas familiares da história. A grande ironia disto é que, apesar da observação da felicidade da unidade familiar e o trabalho dos atores ser o grande marco de qualidade desta obra, Gary Cooper, que interpreta o patriarca, detestou trabalhar na película, detestou as escolhas do resto do elenco e recusou-se sempre a rever o filme pois odiava a maneira envelhecida como aparecia no grande ecrã. É um milagre como uma obra tão inerentemente conflituosa acaba por ser tão pachorrenta e anódina.


66. O MENSAGEIRO (1971) de Joseph Losey

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Requinte eduardiano com alguns toques de irreverência.

Para quem tiver a sorte, ou azar, de ver “O Mensageiro” sem qualquer tipo de contextualização histórica, poderá ser uma grande surpresa saber que, na época, muitos críticos olharam para a obra como uma abordagem vanguardista ao típico drama de época britânico. Dizemos isto pois, de um ponto de vista moderno, é difícil encontrar grande vanguarda nas escolhas do realizador Joseph Losey ou do dramaturgo Harold Pinter, que aqui nos oferecem um drama eduardiano semelhante a tantos outros telefilmes que todos os anos a BBC produz.

É certo que a moldura narrativa do protagonista adulto a recordar o seu passado enquanto passeia pelas áreas onde a história principal decorre pode ser visto como um gesto arriscado, mas um conhecimento de film noir e do romance que serviu de inspiração ao filme depressa dissipam tais ideias. De facto, apesar de se propor quase como um ataque antirromântico ao protótipo do clássico drama de época meio nostálgico, o filme acaba por se tornar naquilo que muitos supõem a obra tenta criticar. Enfim, tudo isso apenas invalida uma classificação do filme como uma obra de grande vanguarda artística, o que não significa que “O Mensageiro” seja um mau filme.

De facto, o contrário é verdade, sendo este um excelente exemplo do tipo de cinema de época ostentoso que tanto se associa com o cinema britânico. O elenco, apesar de alguns passos em falso de Julie Christie, é quase uniformemente impecável e a recriação de época em termos de cenário, caracterização e figurinos segue a mesma linha de qualidade. Somente a fotografia e a montagem demonstram alguma inconsistência, mas até mesmo o uso meio arrítmico de câmara ao ombro e zooms intrusivos confere um certo charme a este conto de segredos mal guardados, normas sociais violadas e muita crueldade aristocrática.


65. UNE AUSSI LONGUE ABSENCE (1961) de Henri Colpi

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Duas almas perdidas dançam em busca de conforto.

Num café de uma pequena localidade francesa trabalha uma senhora de meia-idade. A sua postura é severa e a sua expressão parece sempre estar no precipício da solenidade, sendo o seu olhar melancólico quase sempre disfarçado pela máscara do pragmatismo de uma mulher trabalhadora. Se há algo que caracteriza a sua vida, contudo, não é o trabalho que lhe ocupa a maior parte das horas do dia, mas sim o vazio que a recebe quando ela chega a casa. Em tempos, ela poderia aí ter encontrado o seu marido, mas, como tantos outros homens, ele desapareceu em combate, sendo a sua ausência uma cicatriz pulsante que faz perdurar a dor da guerra durante muitos anos depois desta terminar.

Assim vive a protagonista de “Une aussi longue absence”, maravilhosamente interpretada pela estrela italiana Alida Valdi. Pelo menos, é assim que ela vive até um dia perscrutar na face de um misterioso vagabundo a semelhança do seu marido. Convencida, talvez pela loucura da solidão, que encontrou o marido, ela tenta comunicar com o homem que, pelo acaso mágico que é o mecanismo melodramático, sofre de amnésia.

Enfim, apesar de ser assinada pela grande escritora Marguerite Duras, a história deste filme tende a ser bastante melodramática, o que nem é para seu benefício. Contudo, o trabalho dos protagonistas emparelhado com a modesta elegância na mise-en-scène de Henri Colpi resultam num conto de perda e solidão capaz de ocasionalmente transcender os limites da sua trama convoluta. Um momento de dança entre as duas almas perdidas no centro do filme é uma cena de particular beleza tingida de calcinante mágoa.


64. PELLE, O CONQUISTADOR (1988) de Bille August

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Max von Sydow traz dignidade e nobreza ao filme.

Dos poucos realizadores que detêm a rara honra de terem ganho a Palme d’Or duas vezes, Bille August é talvez o nome mais improvável. Não é que o cineasta sueco seja um mau realizador, mas os seus filmes tendem a aproximar-se mais do tipo de trabalhos premiados pela Academia de Hollywood do que de filmes aclamados em Cannes. Referimo-nos a uma filmografia cheia de dramas respeitosos, muitas vezes históricos, elaborados com grandes doses de sentimentalismo popular e portadores de uma linguagem formal que nunca ousa sair dos limites da convenção prestigiada.

Pelle, o Conquistador” não foge à regra e, para além de ganhar a Palme d’Or, também foi galardoado com o Óscar de Melhor Filme Estrangeiro. Afinal, esta é a história de perseverança humana centrada num pai e filho camponeses que emigram da Suécia para a Dinamarca durante o século XIX. Um conto inspirador, portanto, que nunca desafia o espectador ao mesmo tempo que o deixa maravilhar-se passivamente face às paisagens rurais capturadas pela câmara de Jörgen Persson e derramar umas lagrimazitas face ao sofrimento humano em contida exibição.

Decerto, é difícil negar o impacto emocional de “Pelle, o Conquistador”, que negoceia de modo brilhante os seus tons de tragédia com uma boa dose de otimismo. Por vezes, esse otimismo resvala para uma sentimentalidade meio desnecessária, mas August consegue normalmente encontrar balanço tonal. Em muito o realizador é auxiliado por Max von Sydow, que interpreta o pai do menino titular com magnânima dignidade e nobreza, ilustrando as mágoas da sua personagem sôfrega sem nunca violar a sua integridade ou orgulho. Não admira que, apesar mesmo da barreira linguística, o ator tenha arrecadado uma merecida nomeação para o Óscar de Melhor Ator.


63. O QUADRADO (2017) de Ruben Östlund

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Disseca o orgulho masculino encontrado nas elites intelectuais.

Ao longo da sua carreira, o cineasta sueco Ruben Östlund tem vindo a fazer o que poucos artistas têm a bravura de sequer tentar. Nos seus filmes, o realizador e argumentista disseca e desafia com lacerante obstinação o orgulho masculino proto liberal das elites intelectuais, que, verdade seja dita, acabam por constituir grande percentagem da audiência e legião de fãs de Östlund. A sua tendência em questionar a integridade moral das instituições e sistemas de valor que dão importância ao gesto artístico numa sociedade moderna também é algo valioso.

Tudo isso está em evidência no filme que lhe valeu a Palme d’Or dada pelo júri presidido por Pedro Almodóvar, “O Quadrado”. O que também está em evidência é a diabólica falta de subtileza do cineasta, ou a sua capacidade em formular os seus argumentos sem recorrer a estereótipos e mecanismos narrativos que transcendem a incoerência narrativa e chegam a patamares imperdoáveis de hipocrisia. A sua crítica social, usando sem abrigos como iconografia de uma sociedade amoral, é algo particularmente repelente na construção de “O Quadrado”.

Com isto dito, o talento do cineasta em orquestrar sequências eletrizantes também se faz sentir nesta farsa absurdista passada num grande museu de Estocolmo, mesmo que as sequências mais extraordinárias tendam a ser melhores quando avaliadas no vácuo e não no contexto do filme. Isso, um trabalho cenográfico hilariante e um elenco cheio de prestações titânicas ajudam a elevar o projeto que, apesar de tudo, é muito menos inteligente do que aparenta ser.


62. A CRIANÇA (2005) de Jean-Pierre e Luc Dardenne

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A história de um homem carismático, mas terrivelmente irresponsável.

Poucos cineastas influenciaram mais o ecossistema estilístico do cinema europeu nas últimas décadas que o par de irmãos belgas Jean-Pierre e Luc Dardenne. Foi sobretudo a partir dos seus filmes que germinou no panorama do cinema independente um gosto crescente por abordagens realistas, filmadas com câmara ao ombro, luz natural, muitos planos das costas de atores a andar por ruas sujas e, é claro, coleções de intérpretes em registos de extremos naturalismo dando vida a histórias de uma miséria social assustadora. O problema disto é que o que começou como uma novidade quase vanguardista, depressa se tornou numa nova convenção.

Quando os Dardenne ganharam a sua primeira Palme d’Or em 1999 por “Rosetta”, esta convenção ainda não tinha sido massacrada por cineastas menos talentosos numa série de variações que tendem a parecer versões dieta dos filmes da parelha. Em 2005, contudo, a situação tinha mudado e, mais do que um acutilante manifesto estilístico e social sobre novos tipos de realismo cinematográfico, “A Criança” parece banal e corriqueiro. Ainda para mais, até no contexto da filmografia dos irmãos, este projeto é ofuscado por obras muito mais interessantes.

O que salva o filme e justifica, parcialmente, a escolha do júri presidido por Emir Kusturica é a prestação de Jerémie Renier. O trabalho do ator francês é uma autêntica tour-de-force, dando vida a uma personagem tão carismática como asquerosamente irresponsável. Ele consegue evitar polir em demasia as suas facetas mais abrasivas ou tornar um pai que literalmente vende o filho recém-nascido num monstro demasiado insuportável para o espectador acompanhar durante uma narrativa de 95 minutos.


61. FAHRENHEIT 9/11 (2004) de Michael Moore

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Pode mau jornalismo fazer um bom documentário?

Quentin Tarantino foi um dos vencedores mais controversos da Palme d’Or, pelo que não foi surpresa para ninguém que, quando chegou altura de o cineasta presidir o júri do festival, o enfant terrible do cinema americano acabou por entregar o galardão maior da Croisette a mais um título polémico. De facto, é difícil encontrar um vencedor mais falado, discutido e maltratado que “Fahrenheit 9/11”, somente o segundo documentário na história do festival a arrecadar a Palme.

Seguindo-se ao sucesso e vitória nos Óscares de Michael Moore em 2003, seria fácil assumir que o realizador de cinema documental mais famoso do mundo poderia ter feito o quer que desejasse e teria garantido financiamento e distribuição internacional. Quase nenhum outro cineasta especializado em documentários na história teve tamanho privilégio e poder, pelo que é interessante verificar como Moore basicamente decidiu fazer do seu próximo projeto uma prolongação da sua imagem de marca. Falamos de uma imagem fomentada por peças investigativas altamente parciais, onde a informação é apresentada ao espectador bem manipulada, sem nuance e com a gritaria metafórica e literal do cineasta sempre presente na mente do espectador.

Apesar disso, “Fahrenheit 9/11”, que acusa a administração Bush de usar o 11 de Setembro como desculpa para a promoção de guerras injustificáveis no Iraque e Afeganistão, foi uma espécie de bomba cinematográfica nesse sentido. É um bom documentário? Nem por isso. É uma boa peça de jornalismo? Claro que não! É um objeto cinematográfico de valor político, estético e histórico pela sua tentativa de influenciar a opinião pública num ano crítico de eleições presidenciais? Sem dúvida. Mereceu, por isso, a Palme d’Or? Talvez não, mas está longe de ser um dos piores vencedores desse prémio.


60. YOL (1982) de Yılmaz Güney e Serif Gören

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Cinema feito na clandestinidade.

Yılmaz Güney foi um dos cineastas mais importantes na história do cinema turco. O cineasta começou a sua carreira aos 21 anos no cinema, mas também se debruçou sobre a literatura, preferindo sempre trabalhar em obras com forte teor político. Na Turquia ditatorial dos seus dias, tais ações acabaram por levar ao seu constante aprisionamento, mas isso nunca impediu Güney de criar cinema, muito pelo contrário. Escrevendo argumentos cheios de detalhes de mise-en-scène na prisão, o cineasta dava instruções aos seus assistentes para que estes orientassem a concretização dos seus projetos.

Foi assim que “Yol” foi filmado pela mão de Serif Gören através dos apontamentos e instruções minuciosas de Güney que, depois das filmagens terem terminado, conseguiu fugir da prisão. Na Suíça, onde o cineasta pediu exilo, ele editou a matéria bruta daquele que se tornaria o seu trabalho mais celebrado de sempre. Em 1982, o filme estreou em Cannes, depois de ter sido banido na Turquia, e tanto Güney como o seu assistente ganharam a Palme d’Or numa espécie de derradeiro grito de vitória antes da morte de Güney dois anos depois, devido a complicações de cancro no pulmão.

A história trágica e politicamente conturbada da criação de “Yol” e sua subsequente distribuição, que ainda veio a envolver uma série de disputas judiciais pelos direitos do filme, tornaram esta obra nesse peculiar animal cinematográfico cujo contexto envolvente é mais interessante que o trabalho em si. Não que “Yol” não seja uma obra de calcinante crítica política, com sequências na neve de cortar a respiração e escolhas de montagem que conferem ao filme uma energia agressiva que ainda surpreende uma audiência moderna. Enfim, a única grande crítica que se pode fazer ao filme é que, no seu fulgor enraivecido, Güney assina aqui uma narrativa tão niilista que se torna quase insuportável, tornando a Turquia numa espécie de inferno terreno.


59. O PAI FOI EM VIAGEM DE NEGÓCIOS (1985) de Emir Kusturica

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Convulsões políticas vistas de uma perspetiva infantil.

O primeiro de dois filmes a valer a Emir Kusturica a Palme d’Or foi “O Pai foi em Viagem de Negócios”, uma das suas obras mais sentimentais e acessíveis. Trata-se da história de como, no meio da Guerra Fria, uma família jugoslava sobrevive à prisão do seu patriarca cujo único crime foi falar sobre um cartoon humorístico e cujo delator foi o próprio cunhado. Essa crónica familiar, apesar do seu foco na fricção entre os adultos da família e o regime autocrata em que vivem, é contada de uma perspetiva infantil, o que resulta em muita da sentimentalidade do projeto.

Mesmo assim, convém mencionar que, como todos os filmes de Kusturica, este está longe de ser um conto sacarino de Hollywood, estando cheio de humor grosseiro e constantes momentos de precipitante absurdez que parecem tão mais insólitos pelo pano de fundo de miséria social. O humor, contudo, nem sempre resulta, especialmente na segunda metade do filme, quando a componente dramática da narrativa em muito exacerba a sua faceta humorística.

Felizmente, a acompanhar a crescente seriedade do projeto, está a maravilhosa execução formal de Kusturica e está o seu elenco de regulares colaboradores. Como a figura paterna titular, Miki Manojlović é especialmente estupendo, dando vida à sua personagem multifacetada com igual atenção ao seu carinho familiar e carisma, como à sua natureza traiçoeira e francamente patética.


58. AS MELHORES INTENÇÕES (1992) de Bille August

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Cenas da vida conjugal da família Bergman.

Apesar de ser um dos maiores mestres da sétima arte que já viveu e de ter várias vezes competido no Festival de Cannes, Ingmar Bergman nunca ganhou a tão desejada Palme d’Or. Outros cineastas suecos conseguiram alcançar esse feito, incluindo Bille August que, nos anos 90, foi um de três realizadores conterrâneos de Bergman, que o mestre escolheu para realizar uma pequena coleção de argumentos autobiográficos. Os três filmes examinam a relação dos pais de Bergman e, mais à frente, a conturbada falta de afeto entre pai e filho cujo legado vive imortal em filmes como “Morangos Selvagens” e “Luz de Inverno”.

O primeiro projeto autobiográfico escrito, mas não realizado, por Bergman foi “As Melhores Intenções”, uma megaprodução cujo orçamento foi histórico para o cinema sueco. Verdade seja dita, parte da grandiosidade financeira por detrás do filme deve-se ao facto de que este existe em duas versões, uma delas uma minissérie televisiva, onde a monumental quantidade de cenários históricos sozinha seria suficiente para justificar a necessidade de investimentos milionários. No final, mesmo a forma encurtada do projeto transpira fausto e atenção ao detalhe, sendo uma recriação da Suécia do virar do século de impor respeito, ao mesmo tempo que se afirma como um retrato maduro e complexo, sem medo de mostrar as facetas mais amargas tanto dos seus protagonistas como da sociedade onde estes viveram.

É precisamente esse o melhor aspeto do filme, para além do fausto visual, sendo o elenco responsável pela ilustração de tais pessoas uniformemente brilhante. Até no terceiro ato da narrativa, quando os cortes feitos na transição do pequeno para o grande ecrã se tornam gritantes, o trabalho de Pernilla August e Samuel Fröler como mãe e pai do grande realizador é insuperável. São raros os filmes que examinam relações amorosas difíceis com a disciplina e complexidade psicológica deste épico histórico, pelo que, apesar de ser pouco popular, este é um filme que merece atenção.


57. BRISA DE MUDANÇA (2006) de Ken Loach

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Uma rara aventura de Ken Loach pelo universo do filme de época.

Nos anos 60 e 70, Ken Loach foi um dos cineastas mais importantes entre a vanguarda realista que tomou de assalto o cinema britânico. Filmes como “Kes” são justos clássicos, tanto pelo seu teor político contido em histórias de lacerante desgraça social como pela sua forma inovadora. Loach, em particular, usou técnicas de montagem pouco ortodoxas e lentes telescópicas para exacerbar a noção de que os seus filmes eram como pequenos pedaços de realidade mundana cristalizados em película, documentos genuínos, não obstante a sua estruturação dramática.

Apesar disso, foi só já muito à frente na sua carreira, quando o cineasta tinha deixado de ser um jovem vanguardista rebelde e se tinha transformado num mestre ancião, que o Festival de Cannes finalmente o premiou com a Palme d’Or. É, contudo, interessante verificar que, longe de terem honrado um dos seus muitos dramas do dia-a-dia de famílias empobrecidas do Reino Unido, os jurados da Croisette galardoaram Loach por uma das suas raras aventuras pelo mundo dos dramas históricos. Neste caso, “Brisa de Mudança” é um retrato da relação de dois irmãos durante a Guerra da Independência Irlandesa.

Nem tudo é brilhante neste filme, especialmente a abordagem formal de Loach, cujos mecanismos estilísticos são muito mais apropriados a pequenos estudos domésticos que a filmes de guerra. Consequentemente, é nos seus momentos mais pequenos e íntimos que o filme mais brilha, especialmente no seu esboço das relações interpessoais das suas personagens. Uma coisa é certa, em toda a filmografia de Loach, há poucos finais tão poderosos ou comoventes como a conclusão de “Brisa de Mudança”.


56. EU, DANIEL BLAKE (2016) de Ken Loach

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Ken Loach não merecia uma segunda Palme d’Or.

Por muito estranho que pareça, depois de Ken Loach ter sido ignorado pelos júris do Festival de Cannes durante os anos mais áureos da sua carreira, no espaço de uma década o cineasta britânico arrecadou duas Palmes d’Or. Enquanto a primeira, ganha pelo drama histórico “Brisa de Mudança” foi uma decisão pouco contestada pela crítica mundial, o mesmo não se pode dizer da sua segunda vitória com “Eu, Daniel Blake”. Este sim é um filme típico de Loach, sendo um modesto retrato de miséria social no Reino Unido atual que, por inglório milagre, conseguiu conquistar o júri presidido por George Miller e sair vitorioso contra filmes como “Toni Erdmann”, “Aquarius” e “Elle”.

A sua vitória pode ter sido injusta, mas isso não invalida a qualidade de “Eu, Daniel Blake” enquanto um potente objeto de cinema político. Contando as histórias interligados de um carpinteiro viúvo e uma mãe solteira a tentarem sobreviver às provações sisífias, quase kafkianas, do sistema burocrático dos Serviços Sociais Britânicos, cuja prioridade parece há muito ter deixado de ser o bem da população necessitada.

Ancorando a construção do drama nas duas prestações titânicas e perturbadoramente imersivas de Dave Johns e Hayley Squires nos papéis principais, Loach filma “Eu, Daniel Blake” com uma ênfase absoluta nas histórias humanas no seu centro, fazendo escolhas formais modestas e não muito vistosas. O seu gosto por construir cenas em planos gerais sem cortes é particularmente louvável, com grande destaque para uma sequência, mais ou menos a meio do filme, quando uma visita ao Banco Alimentar se torna num episódio de desespero capaz de fazer até as mais estoicas audiências derramar umas valentes lágrimas.


55. ROSETTA (1999) de Jean-Pierre e Luc Dardenne

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Esteticamente influente.

Começando com uma das mais majestosas sequências na filmografia dos irmãos Dardenne, “Rosetta” tem início com um eletrizante plano sequência em que a câmara ora parece perseguir ou fugir da protagonista que, numa tentativa insana de manter um emprego precário, foge dos seus superiores e da polícia ao longo dos corredores de uma fábrica belga. O trabalho de câmara é soberbo, o som é imersivo e, acima de tudo, a prestação de Émilie Dequenne transpira a angústia febril de um animal encurralado.

Ao longo do filme, a intensidade do trabalho de Dequenne nunca diminui e, se possível, a qualidade predatória do olhar dos realizadores também não. No entanto, apesar da câmara nunca largar a sua protagonista, note-se como o filme nunca parece uma exploração injusta do sofrimento alheio, ancorando o retrato da vida infeliz de Rosetta num modelo de crítica a vibrar de raiva indignada para com uma sociedade injusta.

O filme teve tanto impacto na Bélgica que levou mesmo a mudanças legislativas em leis de trabalho. Nesse sentido, este é um dos raríssimos filmes políticos cujo impacto muito se estendeu para fora da sala de cinema e efetivamente ajudou a mudar a vida do tipo de pessoa retratadas no seu drama.


54. OTELO (1951) de Orson Welles

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Shakespeare em modo expressionista.

Em 1948, depois de uma série de contratempos, projetos inacabados e filmes mutilados pelo censor corporativo dos grandes estúdios, Orson Welles deixou Hollywood rumo à Europa. O último filme norte-americano da sua carreira viria a ser uma adaptação meio fracassada de “Macbeth” filmada em cenários de westerns reciclados e, como que para encerrar esse capítulo da sua vida e abrir um novo, o primeiro filme europeu de Welles viria a ser outra adaptação de Shakespeare. Desta vez, contudo, Welles trocou a personagem do mais amaldiçoado monarca escocês pela do mouro assassino de Veneza, “Otelo”.

O processo de filmagem não foi simples, tendo durado três anos em consequência de uma série de insólitos problemas de produção e financiamento. O processo de adaptação foi menos atribulado, mas não menos complexo, tendo o cineasta reduzido as três horas que a peça normalmente consome em palco para uns parcos 90 minutos. O projeto, na sua forma final, é uma adaptação Shakespeariana que só podia ter mesmo saído da imaginação de Orson Welles, tal é a sua sintetização monstruosa e inebriante jogo de técnicas cinematográficas em ebuliente desfile em frente aos olhos estupefactos do espectador.

O cineasta, acompanhado por uma equipa de três diferentes diretores de fotografia, não mostrou falta de truques na manga, contornando os problemas financeiros do filme com jogos de sombras extremamente complicados, cenas inteiras filmadas em ângulos insólitos, uso de efeitos teatrais para bloquear o olhar crítico do espectador e até figurinos roubados a outras produções. Tudo isso está à mostra na versão final do filme, um pesadelo veneziano passado em Marrocos, onde os recantos dos palacetes em que a história decorre são tão sinuosos e sombrios como as psiques das personagens em cena. Até o uso de blackface pela parte de Welles se consegue quase justificar pela extrema estilização do projeto, o que não é tarefa fácil. Atenção que “quase” é a palavra de ordem na afirmação anterior.


53. O TAMBOR (1979) de Volker Schlöndorff

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Um grito indignado e estridente.

Adaptado do lendário romance de Günter Grass, “O Tambor” pinta um retrato profundamente grotesco e assustador da História germânica da primeira metade do século XX, usando metáforas gritantes e simbolismo doentio para chocar e inspirar o inocente espectador. Não se trata de um filme fácil de ver, muito pelo contrário, mas é um feito de tal originalidade e obstinada estilização que é impossível não encontrar algum valor em si.

De modo sumário, o filme toma a forma de uma odisseia absurdista de Oskar, um menino alemão que não cresce depois dos três anos e comunica principalmente através do tocar de um tambor que ele leva sempre consigo ou de gritos estridentes capazes de partir vidro na sua mostra de indignação sónica. A paragem do crescimento e os limites comunicacionais do rapaz são, por muito estranho que pareça, escolhas deliberadas, gestos de rejeição de uma sociedade putrefacta na passividade burguesa onde o nazismo não demora a germinar.

Com passagens por circos de aberrações e cenas de sexo protagonizadas por um ator infantil, o filme já recebeu inúmeras acusações de indecência e perfídia, mas seria ingénuo supor que essa não é uma reação para a qual os cineastas trabalharam. Afinal, que melhor reação é que uma audiência devia ter para com um retrato da Alemanha Nazi do que nojo, indignação moral e choque horrificado? No final do visionamento desta obra, não seria difícil crer que muitos espectadores teriam, na sua cara, a mesma expressão vagamente demoníaca que Oskar tanto exibe ao longo da sua perversa existência.


52. DHEEPAN (2015) de Jacques Audiard

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Realismo cáustico in extremis.

Nos últimos anos, os júris do Festival de Cannes têm sido fortemente criticados por escolherem vencedores que vão contra o consenso crítico, parecendo valorizar mais a mensagem e discurso políticos dos filmes em competição do que valores estéticos. Esse tipo de crítica chegou ao seu auge quando “Dheepan” ganhou a Palme d’Or em 2015, derrotando obras-primas como “Carol”, “A Assassina” e “O Filho de Saul”. Apesar disso, descartar o filme de Jacques Audiard como somente uma mediocridade com uma mensagem social valiosa é erróneo e profundamente redutor.

Partindo de uma espécie de exercício autobiográfico de Antonythasan Jesuthasan, um escritor e antigo soldado dos Tigres Tamil que aqui serve de ator principal, “Dheepan” conta a história de três desconhecidos que, numa tentativa de fugirem aos horrores do Sri Lanka, fingem ser uma unidade familiar e emigram para França. Sendo este um filme de Audiard com os dois pés bem plantados num registo de realismo social impiedoso, é quase escusado dizer que a sua nova vida europeia está longe de ser um mar de rosas. De facto, entre preconceitos xenófobos, abusos institucionais e ações criminais em seu redor, a família improvisada deste drama é forçada a dar tudo o que tem de modo a sobreviver e prosperar.

Se há um elemento do filme que merece indiscutível celebração é o trabalho dos atores no centro da narrativa, nomeadamente a sublime Kalieaswari Srinivasan que, não fosse o filme ter ganho a Palme d’Or, teria sido uma justa vencedora do prémio de Melhor Interpretação Feminina do festival. É mesmo o realismo cáustico que atores como ela trazem ao filme o fator que acaba por permitir que Audiard leve “Dheepan” a extremos insanos de violência e otimismo nos últimos minutos do filme. Esse é um gesto polémico e chocante em igual medida que, não obstante a sua eficiência dramática, é certamente uma escolha arrojada pela parte do realizador.


51. AMORES DE SAMURAI (1953) de Teinosuke Kinugasa

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Majestosa policromia nipónica.

Ao longo das suas muitas décadas de existência, o Festival de Cannes sempre teve um certo problema em celebrar o trabalho de cineastas que não fossem ora europeus ou norte-americanos. Ainda nos dias de hoje é rara a edição do festival em que a massa crítica internacional não se interrogue sobre as razões que levam o comité do festival a rejeitar obras-primas sul americanas, africanas, asiáticas e australianas como parte da secção oficial, banindo-as para secções paralelas.

Mesmo assim, podem-se contar alguns filmes não europeus ou americanos entre a lista de 78 vencedores da Palme d’Or, especialmente obras japonesas, como é o caso de “Amores de Samurai”, o primeiro filme a ganhar a máxima honra de Cannes com origem na Ásia. O filme conta uma história de paixões não recíprocas e obsessões amorosas nos tempos do Japão Feudal, desconstruindo arquétipos populares do folclore e História japonesa com perversa elegância ao mesmo tempo que presenteia o espectador com um festim visual do mais alto gabarito.

Pintado em cores tão ricas que parecem originárias de outra dimensão, “Amores de Samurai” é um marco histórico para o cinema japonês, sendo a primeira produção dos estúdios Daiei a cores, usando processos até então inéditos na indústria nipónica. Os resultados são incríveis, sendo exacerbados pelos majestosos figurinos de época, que valeram um Óscar a Mitsuzô Wada, e pelo requinte com que Teinosuke Kinugasa encena a ação num estilo que faz referência a vários tipos de expressão artística tradicionais do Japão como o teatro Noh e as pinturas em rolos. Para fãs da Era Doirada do Cinema Japonês, este filme é uma resplandecente joia e visionamento obrigatório.


50. SE… (1968) de Lindsay Anderson

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Uma cuspidela na face da tradição britânica.

Os anos 60 foram uma década rica em cinema rebelde, pronto a estilhaçar o status quo burguês e trazer os ideais da juventude revoltosa para o grande ecrã. Infelizmente, muitos dos filmes destes movimentos acabavam por apenas rejeitar convenções a nível formal, sendo terrivelmente reacionários e proto conservadores em questões como a representação de mulheres. O vencedor da Palme d’Or de 1965 “Lições de Sedução” é um bom exemplo dessa hipocrisia, sendo um filme que se veste com os aparatos de rebeldia juvenil sem deixar de ser diabolicamente conservador nos seus ideais basilares.

Falamos disso pois, apesar de tudo, houve filmes que de facto assimilaram e celebraram a revolução de valores da época, incorporando essas ideologias em todos os aspetos do seu filme, tanto a nível, formal, estrutural e narrativo. “Se…”, o primeiro filme premiado com a Palme d’Or após a cataclísmica e abortada edição do festival em 1968, é um bom exemplo disso mesmo, retratando a vida num colégio elitista britânico com amplas doses de irreverência e uma genuína vontade de chocar o espectador, não somente pelo prazer do choque, mas também com um intuito político subjacente.

O modo como Anderson emprega passagens filmadas a preto-e-branco de modo deliberadamente aleatório e inconsistente é um bom exemplo de como o filme tenta desorientar o espectador e rebentar com as ideias pré-concebidas que estes poderão trazer até ao simples ato de apreciarem um objeto cinematográfico. Tudo isso serve como uma espécie de preparação para o último ato, em que o filme finalmente se assume como um remake britânico de “Zéro de conduite” de Jean Vigo, encenando um tiroteio em que um grupo de alunos dispara contra pais, docentes e elites militares reunidos no átrio do colégio ancestral. Poucos são os filmes britânicos que cospem de modo tão declarativo na face da tradição nacionalista e nostalgicamente imperialista do seu país.


49. MISSING – DESAPARECIDO (1982) de Costa-Gavras

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O filme implica o governo americano na criação da ditadura chilena.

Em 1982, o júri presidido por Giorgio Strehler devia estar focado em cinema político pois ambos os filmes que receberam a Palme d’Or desse ano são dos trabalhos mais claramente políticos, quase panfletários, que o Festival de Cannes alguma vez premiou. Já anteriormente falámos de “Yol”, um exposé sobre as injustiças sociais da Turquia, e agora chegou a vez de olhar para o trabalho de Costa-Gavras sobre dois americanos à procura de um ente querido desaparecido no inferno dantesco que era o Chile sob o regime de Pinochet, “Missing – Desaparecido”.

Sissy Spaceck e Jack Lemmon dão vida aos dois protagonistas deste drama assinado pelo grande mestre do cinema político grego que, neste filme, mostra tanta bravura no seu discurso manifestante como demonstra inteligência no retrato humano em cena. Graças a essa mesma sagacidade e ao trabalho dos dois atores principais, “Missing – Desparecido” consegue evitar a maior parte dos clichés normalmente associados a este tipo de exploração de crises internacionais através da visão de civis americanos. É claro que parte desse balanço tonal e ideológico também se deve ao facto de que o filme diretamente implica o governo americano na criação da situação chilena.

Para além disso, o realizador também acaba por desenhar um retrato da perspetiva dos EUA sobre estas questões através dos contrastes entre uma esposa ciente do inferno em que o marido se meteu e um pai que, numa mostra de incrível arrogância americana, pensa poder encontrar o filho desaparecido se insistir o suficiente. Certamente que, mesmo no caso do teor político do filme se provar demasiado frontal para o espectador comum, será encontrado valor no modo como os cineastas conseguiram cristalizar o terror absoluto de duas pessoas no meio de uma crise a terem de confrontar a usa própria impotência.


48. A ENGUIA (1997) de Shohei Imamura

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Retrata a história de redenção de um ex-presidiário com inesperada idiossincrasia.

Apesar de não pertencer à sagrada trindade de cineasta nipónicos (Ozu, Mizoguchi e Kurosawa) que a maioria dos cinéfilos sérios conhecem, Shohei Imamura é um dos grandes nomes na História do cinema japonês, sendo até o único realizador dessa nação a ter ganho por duas vezes a Palme d’Or. Enquanto o primeiro desses filmes premiados, sobre o qual falaremos mais à frente, é talvez a sua obra mais famosa, o seu segundo trabalho vencedor da Palme d’Or é um dos seus projetos mais esquecidos.

Inspirando-se tanto num livro de Akira Yoshimura assim como em alguns dos primeiros títulos da sua própria filmografia, Imamura concebeu “A Enguia” como uma insana história de redenção. Afinal, o filme retrata um homem que, após matar a mulher num acesso de raiva passional, é preso durante oito anos. Quando sai da cadeia, ele mudou bastante, tendo agora como principal companhia uma enguia com a qual muito conversa e, ao longo do filme, vai tentando recomeçar a sua vida, arranjando emprego, novos círculos sociais e até novos problemas em que se inadvertidamente enfiar.

Não tem o mais extraordinário ou coerente dos enredos, incluindo conflitos empresariais, tentativas de suicídio e muitas sessões de pesca simbólica, mas o filme acaba por se afirmar como um simultâneo estudo de personagem estudo do autor. A técnica de Imamura é aqui muito mais modesta e menos vistosa do que em filmes seus passados, mas há um nível de autorreflexão na utilização dos mecanismos típicos do seu cinema. A obsessão com animais e planos pormenor, por exemplo, está aqui visível, mas é subvertida. Em par com essa dinâmica formalista, o elenco traz um nível de sinceridade assombrosa aos procedimentos narrativos, ajudando o realizador a manejar a montanha-russa tonal deste filme que nunca desaponta o espectador mesmo quando salta entre experimentação surreal, noir hiperviolento e comédia romântica com indecente jovialidade.


47. BARTON FINK (1991) de Joel e Ethan Coen

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O mito de Fausto à moda dos irmãos Coen.

Três pares de irmãos ganharam a honra máxima do festival de Cannes até hoje. Eles são os Tavianni, os Dardenne e, é claro, os Coen que, escusado será dizer, são o par mais famoso e internacionalmente celebrado. Com isso dito, o filme que lhes valeu a Palme, apesar de ser um excelente trabalho, fica um pouco aos calcanhares das suas grandes obras-primas como “Fargo”, “Este País Não é Para Velhos” e “Arizona Júnior”. No entanto, o que não tem em impecabilidade, “Barton Fink” compensa com doses planetárias de ambição e obstinação cinematográfica.

O filme delineia as provações cruelmente absurdas de um respeitado dramaturgo nova-iorquino que, como tantos outros artistas da costa leste dos EUA, tenta ver se consegue vingar em Hollywood. A viagem à solarenga Los Angeles, no entanto, longe de ser uma ida à terra prometida de bonança e sonhos materializados, é mais uma descida dantesca às profundezas do inferno onde o sonho americano é pervertido e os mitos áureos de Hollywood não são nada mais que mentiras contadas em corredores onde o papel de parede cheira ao suor de milhares de outros sonhadores caídos em desgraça.

De certo modo, “Barton Fink” é o irmão angelino de “A Propósito de Llewyn Davis”, cristalizando na sua história de fracasso uma das melhores representações do processo artístico envenenado ora por pressões exteriores ora pela pérfida procrastinação. Noutra medida, o filme, cuja montanha de simbolismo nem sempre funciona em seu benefício, trata-se da versão dos irmãos Coen do mito de Fausto. Como a personagem titular, um febril John Turturro é assim o homem que vende a sua alma, enquanto John Goodman e Michael Lerner são o Mefistófeles demoníaco que o guia numa espiral autodestrutiva cuja conclusão é uma super nova de cinismo arrepiante.


46. SONO DE INVERNO (2014) de Nuri Bilge Ceylan

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Ninguém filma conversas melhor que Nuri Bilge Ceylan.

Chegado o Festival de Cannes de 2014, Nuri Bilge Ceylan, talvez o mais importante cineasta turco da atualidade, já havia participado na competição oficial da Croisette quatro vezes. Em todas essas ocasiões, Ceylan ganhou pelo menos um prémio, mas nunca a Palme d’Or, nem mesmo em 2011, quando “Era Uma Vez na Anatólia” tinha sido apontado pela crítica como um dos favoritos para o galardão. Tendo isso em conta, a vitória do realizador em 2014 por “Sono de Inverno” foi vista por muitos como um prémio de consolação, especialmente face à competição renhida que o filme tinha, incluindo “Mamã” de Xavier Dolan.

Ao contrário do que a sua reputação pode indicar, contudo, “Sono de Inverno” está longe de ser uma obra menor na filmografia de Nuri Bilge Ceylan, sendo um dos seus trabalhos mais tonal e ideologicamente complexos. De modo sumário, o filme, adaptado livremente de alguns contos de Tchekhov, retrata alguns dias na vida do proprietário de um hotel e algumas terras na Anatolia, onde o seu estatuto é algo equiparável ao de um senhor feudal de outros tempos. Nesses dias invernais, o protagonista, sua família e seus hóspedes veem-se abrigados e quase presos pelo conforto do hotel, permitindo que ressentimentos antigos e novos se desenvolvam. Ao mesmo tempo, o conflito entre o dono das terras e alguns camponeses incapazes de pagar a renda apenas tornam a situação mais recalcitrante e perigosa.

Ceylan, sua usual equipa criativa e técnica, assim como o elenco extraordinário de “Sono de Inverno” desdobram as múltiplas facetas deste complexo conto humano com admirável destreza e ainda maior paciência. O filme é longo, disso não há dúvida, mas há algo estranhamente hipnótico e muito necessário na sua extensão temporal, permitindo aos cineastas dissecarem as suas personagens em prolongados diálogos (ninguém filma conversas a dois, melhor que Ceylan atualmente) sem nunca caírem em histrionias desnecessárias ou redutivas soluções dramáticas. Infelizmente, a construção formal do filme, especialmente no que diz respeito ao uso de imagética simbólica, não é tão exemplar, mas isso é algo pequeno face à restante qualidade do projeto.


45. O PAGADOR DE PROMESSAS (1962) de Anselmo Duarte

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Um marco histórico do cinema brasileiro.

O Pagador de Promessas” é um filme historicamente importante, tendo sido o primeiro e único filme sul-americano e brasileiro a conquistar tanto a Palme d’Or como uma nomeação para o Óscar de Melhor Filme Estrangeiro. É um pouco difícil definir o que fez deste filme uma obra tão internacionalmente acessível, especialmente quando se considera a especificidade cultural, política e religiosa brasileira deste drama adaptado da célebre peça de Dias Gomes.

As raízes teatrais do projeto são evidentes, considerando que a ação se passa quase por completo na escadaria da Igreja de Santa Bárbara em Salvador da Bahia, onde um fazendeiro do Nordeste de cruz às costas exige entrar no edifício sagrado. O depósito da cruz no interior da Igreja representa a parte final de uma promessa que o homem fez a Santa Bárbara na tentativa de salvar a vida do seu adorado burro. Infelizmente, essa promessa foi feita de um modo que as autoridades eclesiásticas consideram inaceitavelmente pagão, bloqueando a entrada do fazendeiro que se recusa veemente a desistir. A resiliência vistosa deste homem de cruz às costas acaba por torná-lo num símbolo para uma série de causas e entidades, efetivamente desumanizando a sua figura e tornando a sua promessa numa arma de propaganda.

O argumento de “O Pagador de Promessas” está pronto a apontar o dedo a várias partes da sociedade brasileira, vendo hipocrisia e egoísmo interesseiro em quase todas as instituições de poder organizado à vista. Mesmo as pessoas mais caridosas parecem perverter a promessa do sôfrego fazendeiro que, no meio de todo o furor, acaba por se tornar numa figura quase irrelevante, um ícone mudo e, finalmente, pouco mais que uma arma de arremesso da urbe em fúria. O extraordinário final, onde fotografia, montagem, música e texto chegam a um cataclísmico auge é um momento inesquecível para qualquer espectador que tenha a sorte de experienciar este triunfo brasileiro.


44. SEXO, MENTIRAS E VÍDEO (1989) de Steven Soderbergh

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Melhor ser perdedor injustiçado que vencedor injusto.

Por vezes é melhor ser-se um perdedor injustiçado que um vencedor injusto. Isso é algo amplamente provado por uma série de infames vencedores do Óscar de Melhor Filme, mas também se aplica a prémios mais elitistas e exclusivos como a Palme d’Or. Como máximo exemplo disto, temos o caso de “Sexo, Mentiras e Vídeo” que, em 1989, foi apontado pelo júri presidido por Wim Wenders como o melhor filme da Croisette, surpreendendo e ultrajando críticos, cineastas e audiências que esperavam que o vencedor fosse “Não Dês Bronca” de Spike Lee.

De facto, a falta de consagração oficial desse calcinante estudo de conflitos raciais dos EUA levou mesmo a que pessoas perguntassem a Wenders por que razão isso havia acontecido. Aparentemente, o cineasta alemão não gostou do filme por este ter um protagonista pouco heroico, uma justificação que ainda hoje é falada com incredulidade e reprovação. O que é pouco discutido é o filme que efetivamente ganhou, mesmo que injustamente, a Palme.

Um filme que tem um papel importantíssimo na história do cinema americano, representando um primeiro passo no que se tornou o renascimento do cinema independente dos EUA nos anos 90. Um filme que deu início à carreira de um dos mais importantes autores americanos da atualidade, Steven Soderbergh. Um filme que, verdade seja dita, é uma pequena maravilha de erotismo enquanto veículo para a dissecação psicológica de um grupo de personalidades tão complexas como cáusticas e uma montra para um elenco de atores a dar as prestações da sua vida. Um filme que não merecia a Palme, mas também não merecia o esquecimento a que foi condenado.


43. O PIANISTA (2002) de Roman Polanski

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Consegue ser convencional sem ser derivativo.

Há tantos filmes sobre o Holocausto, especialmente projetos de prestígio feitos com o solo intuito de ganhar prémios, que praticamente formam um hediondo novo subgénero cinematográfico. O grande perigo deste fenómeno é a crescente banalização do tema, assim como a abstração progressiva de uma realidade que é mais facilmente associada a representações fictícias que ao facto histórico.

Filmes de estilos imersivos ou propostas radicalmente violentas como “O Filho de Saul” não são, contudo, a única abordagem válida, tal como nos mostra “O Pianista”. Aí, Roman Polanski manipula a fórmula do prototípico filme anglófono sobre o Holocausto, executando-o de um modo que, sem fugir à convenção, representa os horrores em cena com franqueza e empatia, evitando tanto o sensacionalismo como a atenuação do pesadelo que tantas pessoas viveram. Desse modo “O Pianista” consegue seguir a convenção, sem ser derivativo.

Ajuda, pois claro, que o filme seja míope no que diz respeito ao seu foco na experiência do indivíduo, neste caso Wladyslaw Szpilman, um pianista judeu da Polónia que sobreviveu ao Holocausto. Ao centrar-se nessa história singular, Polanski evita propor o seu filme como um tratado sobre toda a Shoah, ao mesmo tempo que consegue mais facilmente aplicar uma estrutura dramática ao seu exercício histórico sem trair a sua integridade. O outro grande elemento do filme que merece ser celebrado é a prestação oscarizada de Adrien Brody que levou o seu corpo a extremos para melhor dar vida ao sofrimento de Wladyslaw no grande ecrã. O esforço valeu a pena e as imagens de Brody a deambular pelas ruínas de Cracóvia, esquelético e afogado na culpa de sobreviver é uma das imagens mais aterradoras do cinema do Holocausto.


42. O LAÇO BRANCO (2009) de Michael Haneke

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Nunca fomos inocentes.

Enquanto filmes sobre o Holocausto são quase tão comuns como estudos de personagem de baixo orçamento passados em Nova Iorque, é raro o exercício cinematográfico que se proponha a examinar os antecedentes da subida ao poder do Terceiro Reich na Alemanha. Apesar de ser descrito pelo seu criador como um filme sobre as origens do mal num sentido mais cósmico que historicamente específico, “O Laço Branco” de Michael Haneke é um desses raros estudos.

Passando-se mesmo antes do deflagrar da 1ª Guerra Mundial, o filme começa logo por rejeitar a ideia comum de que o Holocausto foi uma consequência direta das sanções postas à Alemanha no Tratado de Versalhes. Na visão de Haneke, as sementes do ódio já estavam há muito plantadas, mesmo antes das gerações retratadas por ele neste retrato de uma comunidade rural germânica em 1913. Aí, estranhos acontecimentos têm ocorrido com crescente regularidade e violência e ninguém sabe quem são os responsáveis, mesmo que o olho do espectador seja logo levado para as crianças, perfeitos querubins arianos de olhos vazios e expressão fechada.

Essa narrativa não está completamente livre de clichés ou dos mecanismos convolutos com os quais Haneke adora chocar audiências pelo prazer de chocar, mas nem isso nem a desinspirada execução formal apagam as ideias subjacentes a este pérfido conto. Aqui, a presunção de inocência infantil é rejeitada, assim como o conceito de inocência em si, sendo que o legado histórico de cada um é impeditivo de tais noções de pureza. Na Europa, em especial, os passados sangrentos do imperialismo e inúmeras guerras há muito envenenaram o populus de tal modo que eventos como o Holocausto não são uma anomalia, mas sim a consequência quase cósmica de todos os crimes cometidos ao longo da História da Humanidade. Muitos historiadores gostam de apontar o flagelo do nazismo como o momento em que o Mundo perdeu a inocência, mas, como Haneke aponta, isso é um mito. Nunca fomos realmente inocentes.


41. KAGEMUSHA – A SOMBRA DO GUERREIRO (1980) de Akira Kurosawa

kagemusha cannes palme dor
O próprio Kurosawa chamou a este filme um ensaio.

Já todos ouvimos falar de algum artista consagrado que, no meio de uma carreira ilustre, acabou por ser premiado por um trabalho menor. Tal foi o caso com Akira Kurosawa e o Festival de Cannes, onde, há que se dizer, o realizador raramente competiu, tendo sempre preferido Berlim e Veneza, mas onde acabou por ganhou a Palme d’Or em 1980. O filme em questão foi “Kagemusha – A Sombra do Guerreiro”, um dos seus últimos filmes e um projeto que, no contexto da carreira do realizador, constitui um exercício de esboço cinematográfico.

Dizemos isso pois foi o próprio Kurosawa quem caracterizou esta obra como meramente um “ensaio geral” antes da feitura de “Ran – Senhores de Guerra”, a sua derradeira obra-prima. De facto, é impossível não ver as semelhanças formais e temáticas entre os dois épicos de guerra passados no Japão feudal. Tal comparação raramente beneficia o primeiro filme, a não ser quando nos referimos a uma particular sequência onírica, onde Kurosawa praticamente deu vida a uma das suas pinturas. Essa explosão de teatralidade experimental nunca é equiparada por nenhum tipo de cena semelhante em “Ran”.

Mesmo que o filme de 1980 seja um ensaio, Kurosawa e sua equipa deram tudo o que tinham e isso está patente no ecrã, onde técnicas teatrais japonesas andam de mãos dadas com o que parece ser uma tradução cinematográfica de pintura nipónica, dando origem a uma experiência simultaneamente grandiosa em cenas de batalha e necessariamente íntima em instantes passados entre as sombras traiçoeiras das cortes feudais. O trabalho menor de um realizador como Kuroswa é, no final, infinitamente superior ao melhor de muitos outros.


40. A CLASSE OPERÁRIA VAI PARA O PARAÍSO (1971) de Elio Petri

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A luta dos trabalhadores torna-se drama operático.

Como se poderá facilmente supor pelo seu título “A Classe Operária vai para o Paraíso” é uma das muitas obras de cinema político que conquistaram a honra máxima do Festival de Cannes. Aliás, o filme foi um de dois filmes políticos italianos protagonizados por Gian Maria Volontè a partilhar a Palme de 1971. Considerando a longa história de cinema de cariz político com origem italiana, esta dupla honra é particularmente deliciosa e apropriada.

Dos dois filmes, contudo, há que se dizer que o filme de Elio Petri é o menos impressionante, especialmente quando o pomos em comparação direta com as outras obras do realizador. Referimo-nos com particular destaque a “Inquérito a Um Cidadão Acima de Qualquer Suspeita”, outro filme protagonizado por Volonté e uma das mais cáusticas sátiras políticas sobre a sociedade italiana pós-fascista. “A Classe Operária vai para o Paraíso” não chega aos calcanhares desse outro filme no que diz respeito à agressividade do seu discurso ou à precisão lacerante da sua construção formal.

No entanto, o que o filme de 1971 tem que a obra anterior carece é empatia para com as suas personagens, sinceridade e uma boa dose de humanismo em par com a sua fúria militante. O modo como o realizador negoceia a qualidade quase operática que o seu estilo dá à luta dos trabalhadores com as nuances dos seus conflitos internos, também é de destacar, sendo um balanço ideológico e formal que poucos cineastas conseguem executar de modo tão perfeito.


39. MASH (1970) de Robert Altman

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Politicamente incorreto, mas hilariante.

Antes de “MASH” ser uma série foi um filme e não um filme qualquer, mas sim uma genial e influente comédia de um dos maiores cineastas da Nova Hollywood dos anos 70, Robert Altman, e um polémico vencedor da Palme d’Or. Tal como outras comédias vencedoras da maior honra do Festival de Cannes, “MASH” é também uma pequena bomba armadilhada de misoginia, mas, ao contrário dessas outras obras, é genuinamente engraçado, formalmente inovador e politicamente importante.

Em termos de forma, o filme é um sublime exemplo do caos controlado que tanto caracterizou a carreira e legado de Altman. Aqui, o cineasta mergulha o espectador na confusão estupidamente absurda de um hospital de campanha americano no meio da Guerra da Coreia, onde cirurgias complicadas filmadas em austeros planos gerais se tornam em autênticos palcos de diálogo sobreposto e hilariante cacofonia humana.

No que diz respeito à comédia e ao discurso político do filme, o cineasta faz uma série de escolhas, mais ou menos contraintuitivas, que levam a um peculiar jogo tonal, tão ambicioso como estranho. Afinal, “MASH” é um filme extremamente antiguerra que, no entanto, parece rejeitar qualquer tipo de mensagem ativista com cinismo e ironia. É também uma farsa desbocada, mas apoia-se no mais cru dos realismos performativos e estilísticos. Ao mesmo tempo é uma obra cheia de momentos chocantes que, ao mesmo tempo, parece decididamente desinteressada em chocar. É, no fundo, um filme de profundas contradições, tão divertidas como fascinantes.


38. ELEFANTE (2003) de Gus Van Sant

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Não tenta explicar as origens do mal.

Flutuamos por corredores, por estradas, por salas de aula vazias, seguindo jovens adolescentes a passar um dia que todos achavam ser banal até a tragédia se abater sobre as suas cabeças como o ribombar de um trovão apocalíptico. Em cantinas ruidosas, circulamos mesas de amigos a conversar, quais predadores a vigiar a sua presa, ouvindo fragmentos de conversas e ruídos de uma escola a borbulhar de vida prestes a ser posta em risco. Em momentos fugazes, perscrutamos a paz do céu azulado, consumimos os detalhes de uma oficina com o olhar de um fotógrafo ávido ou observamos a face de jovens, futuras vítimas ou criminosos, enquanto, à sua volta, o mundo é uma névoa desfocada.

Assim é a experiência sensorial de “Elefante”, o polémico filme que valeu a Gus Van Sant a Palme d’Or dada pelo júri de Patrice Chéreau e um dos mais perturbadores trabalhos de ficção inspirados pelo massacre de Columbine. Não se trata, contudo, de uma narrativização dessa tragédia real, apenas um eco cinematográfico da mesma, tão teimosamente ambíguo como alienante. Um docudrama focado em imergir o espectador no seu conto de horror, mas igualmente focado em expor a banalidade inócua das vidas interrompidas no centro da sua narrativa cruel.

Essa natureza alienante levou muitos críticos a rejeitarem o filme, mas é também uma das mais-valias deste estranhíssimo projeto. Afinal, por muito que Van Sant insufle este dia escolar com perspetivas predatórias e o peso sufocante da mortalidade próxima, ele também se recusa a oferecer explicações para os crimes nele perpetrados. Sussurros de nazismo e homossexualidade reprimida podem ser percecionados, mas são só rumores anódinos. Van Sant tem a sabedoria de não tentar explicar o mal humano, assumindo a sua mesma pequenice e impotência face a horrores impossíveis de serem racionalizados.


37. O TIO BOONMEE QUE SE LEMBRA DAS SUAS VIDAS ANTERIORES (2010) de Apichatpong Weerasethakul

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Relativamente acessível.

Quando, em 2010, foi anunciado que Tim Burton foi anunciado como o próximo presidente do júri do Festival de Cannes, muitos foram aqueles que especularam que os jurados iriam provavelmente selecionar um vencedor da Palme d’Or muito pouco ortodoxo. Assim se previu e assim aconteceu, com a Palme a ser entregue ao grande mestre do cinema tailandês contemporâneo, o incomparável Apichatpong Weerasethakul, que, não obstante o seu génio, tem vindo a ser relegado à secção Un Certain Regard desde então.

Dizemos que “O Tio Boonmee que se Lembra das Suas Vidas Anteriores” é um vencedor da Palme pouco ortodoxo, mas também é acertado afirmar que este é o filme mais acessível na filmografia de Weerasethakul. O filme é também o conto de como um homem às portas da morte vai para o campo para passar os seus últimos dias na companhia da família e acaba por se deparar com o espírito da sua falecida mulher, um filho transmutado num macaco fantasma, ao mesmo tempo que vai refletindo e recordando fragmentos das suas passadas existências. Como se pode ver, o significado da palavra acessível é muito relativo.

Com tudo isso dito, o filme é, de facto, tão bizarro como intoxicante, bem ao estilo do seu criador, cuja mistura de imagética folclórica, tonalidades oníricas e desconcertante secura antidramática têm vindo a torná-lo numa das vozes mais estranhas do cinema moderno. Este filme é rico em simbolismo e ponderações sobre mortalidade, dialogando abertamente com questões de mortalidade e conforto familiar num panorama meio fantasioso. No final, este é um dos exercícios mais comoventes de Weerasethakul, assim como um dos seus mais belos, tanto em termos de sentimento como de puro festim sensorial.


36. A VIDA DE ADÈLE (2013) de Abdellatif Kechiche

a vida de adele cannes palme dor
Emocionalmente explícito.

Em toda a História do Festival de Cannes, somente uma vez é que a Palme d’Or foi entregue a alguém que não o realizador do filme premiado. Isso ocorreu em 2013 quando Steven Spielberg usou a sua autoridade enquanto presidente do júri para mudar ligeiramente as regras dos galardões, dando a Palme d’Or de “A Vida de Adèle” tanto ao realizador Abdellatif Kechiche, como às suas atrizes principais Adèle Exarchopoulos e Léa Seydoux.

A escolha de Spielberg é perfeitamente justificável e não pouco rebelde, justamente negando que somente o realizador tem influência autoral sobre o filme enquanto objeto de arte. Num caso como este, onde a câmara raramente se afasta das faces das atrizes, pondo sobre os seus ombros a responsabilidade de suster todo o edifício cinematográfico, isso torna-se particularmente gritante. Ajuda, é claro, que ambas as atrizes ofereçam aqui desempenhos titânicos de um naturalismo tão imersivo que se torna quase desconfortável observar o seu suplício.

Interessantemente, não foi a quebra de tradição da parte de Spielberg que fez deste filme um dos vencedores mais controversos dos últimos anos da Croisette, mas sim a qualidade explícita das suas muitas cenas de sexo. O facto é que este é um filme sobre a relação amorosa entre duas mulheres, mas é também uma documentação da maturação sexual e mental de uma jovem a entrar na idade adulta. A quantidade de cenas sexuais e sua ênfase carnal não são desnecessárias, mesmo que o modo como foram iluminadas e compostas seja. No entanto, vale a pena ponderar como a única razão pela qual o filme foi tão discutido deve-se ao seu impacto, emocional, visceral e fisiológico, pelo que, mesmo desgostando do filme, há que reconhecer valor na sua capacidade para gerar diálogo entre espectadores.


35. HISTÓRIA DE UM FOTÓGRAFO (1966) de Michelangelo Antonioni

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O culto do vazio.

A Londres farrona dos anos 60 com as suas roupas mod, festas constantes, juventude promíscua com tantas drogas nas veias como sangue e muita música rock é uma realidade tão tipificada pela cultural popular da sua contemporaneidade que, de uma perspetiva atual, pode-se quase imaginar que esse mundo de facto só existiu no grande ecrã, em revistas e cartazes, mas nunca na realidade. Para “Histórias de um Fotógrafo”, que usa essa mesma Londres como seu pano de fundo, a qualidade efémera, meio fantasmagórica desse ambiente londrino é mais um elemento num puzzle de vazios e miragens.

Afinal, este é um filme de vazios e imagens virtuais. É um filme onde uma das suas sequências mais famosas documenta o processo de ampliação de uma fotografia em busca de indícios de um crime, resultando na abstração progressiva dessa mesma imagem. Outro momento célebre posicionamos como audiência para um jogo de ténis sem bola, onde o ato humano é definido pelo que não se vê, que desapareceu ou nunca existiu.

Todo o filme parece flutuar diante dos nossos olhos como um espectro de um mundo parecido com o nosso, onde noções de vazio existencial há muito deixaram de ser conceitos imateriais e inconcretos. Trata-se de um universo onde a realidade é definida por objetos, sua observação, culto e luto quando estes somem, revelando, na sua ausência, quão as nossas realidades são construções artificiais de significados tão efémeros e potencialmente inexistentes como essa miragem de uma Londres em constante festa na década de maior glória dos Beatles.


34. A TURMA (2008) de Laurent Cantet

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Salas de aula enquanto campos de batalha ideológica.

Filmes sobre a relação entre professores e alunos há-os aos pontapés. Se nos focarmos exclusivamente em obras com esta premissa produzidas no seio de estúdios mais virados para o mainstream, então quase que podemos edificar de imediato um sumário hipotético. Um professor tenta incansavelmente comunicar e educar os seus alunos, cultivando proximidade com eles a de modo a que, pelo final, o pedagogo conseguiu inspirar os seus pupilos e mudar as suas vidas para melhor. “A Turma”, um filme sobre um professor e seus alunos, quase parece olhar enojadamente para esses clichés sacarinos, cuspir na sua cara metafórica e gritar ao espectador que a realidade é muito mais complicada que tais sonhos cor-de-rosa.

Usando técnicas de workshop de atores amadores e cinema documental, Laurent Cantet construiu esta adaptação do livro de François Bégaudeau na forma de um estudo antropológico sobre as dinâmicas da sala de aula. Aqui, contudo, não existem heróis, vilões ou narrativas pré-definidas, mas sim uma amálgama de personalidade, políticas e valores em conflito intergeracional constante.

“A Turma” foi o primeiro filme francês a ganhar a Palme d’Or depois de uma pausa de 21 anos e é fácil perceber o que levou o júri presidido por Sean Penn a por um fim a essa razia. O filme é um documento incalculável do estado do ensino na França do século XXI, assim como das tensões sociais que tornam o ambiente de uma sala de aula num campo de batalha ideológico onde ninguém está absolutamente certo ou moralmente justificado nas suas escolhas.


33. O CASO MATTEI (1972) de Francesco Rosi

caso mattei cannes palme dor
CITIZEN KANE all’italiana.

O outro filme político italiano protagonizado por Gian Maria Volontè para além de “A Classe Operária vai para o Paraíso” foi “O Caso Mattei” de Francesco Rosi, ou, por outras palavras, “O Mundo a Seus Pés” à italiana. Afinal, em semelhança ao primeiro filme de Orson Welles, o vencedor da Palme d’Or de 1972 reconta a vida e legado de uma figura pública através de uma série de entrevistas com pessoas que o conheceram em vida, construindo-se assim uma imagem indireta de um mito humano.

A grande diferença é que, enquanto o filme de Welles era uma dissimulada visão satírica sobre William Randolph Hearst, “O Caso Mattei” é um genuíno retrato de Enrico Mattei, um herói italiano do pós-guerra que conseguiu impedir a venda de preciosos recursos de petróleo e gás natural aos EUA, nacionalizando essas riquezas. O mistério da sua morte prematura também é uma realidade que não precisa de dramatizações para ser real, o que permitiu a Rosi não sacrificar a integridade jornalística do seu projeto em nome do dramatismo.

De facto, na sua forma final, o filme é um híbrido de dramatização histórica e documentário, incluindo filmagens da desesperada busca que Rosi fez por Mauro De Mauro, um amigo seu jornalista que desapareceu enquanto investigava os detalhes da morte do verdadeiro Mattei durante a preparação para este filme. Mais tarde veio-se a descobrir que a máfia siciliana havia assassinado o jornalista, uma tragédia que sombreia a glória deste filme, mas não invalida a sua qualidade ou qualidade cáustica enquanto um objeto de cinema politizado.


32. AMOR (2012) de Michael Haneke

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Retrata dinâmicas amorosas e a crueldade do tempo com igual inteligência.

Michael Haneke é um realizador que gosta de chocar a sua audiência de modo quase punitivo. Essa é talvez a pior característica do seu trabalho, onde a necessidade de atacar o espectador parece ocasionalmente sobrepor-se à integridade concetual e formal dos seus projetos. Com isso dito, o cineasta não é incapaz de mostrar contenção como é o caso do seu trabalho no filme que lhe valeu a sua segunda Palme d’Or, “Amor”.

Esta crónica da relação de um casal idoso depois da esposa, uma antiga pianista profissional, ter tido um AVC. Os tempos que se seguem a esse evento são tortuosos para os dois indivíduos, ela a desaparecer e perder autonomia da sua mente e corpo enquanto ele vê o amor da sua vida tornar-se numa pessoa diferente, totalmente dependente e vagamente monstruosa na sua fragilidade. Tudo isto Haneke expõe sem piedade, mas também sem crueldade.

As prestações de Jean-Louis Trintignant e Emmanuelle Riva são indispensáveis para o jogo empático do filme, mas há que se louvar a astúcia observacional de Haneke que aqui constrói um dos mais devastadores retratos de uma relação amorosa e do processo de envelhecimento que o cinema já viu. O melhor de tudo é como nem o elenco nem Haneke permitem que o casal no centro da narrativa se torne num símbolo, desenhando a sua dinâmica e personalidades de forma específica, inclusive a falta de amor entre o casal e sua filha adulta.


31. SEGREDOS E MENTIRAS (1996) de Mike Leigh

Segredos e mentiras cannes palme dor
A história de uma família como todas as outras.

Mike Leigh, o grande documentador da vida doméstica de famílias de classe baixa britânicas desde os anos 80, é um dos cineastas mais importantes dos nossos dias. Os seus métodos de trabalho, em que improvisações com os atores pré-filmagens constroem a estrutura de um guião que os seus intérpretes raramente conhecem, levam a obras de incrível naturalismo performativo e rítmico pintadas com preocupações típicas de um cinema realista social típico de Inglaterra.

Segredos e Mentiras” é o seu filme mais célebre e lucrativo, assim como um dos seus projetos com melhor elenco de sempre. Trata-se de um retrato das dinâmicas de uma família há muito fraturada por ressentimentos, deceções e traumas passados que, todos os dias, negoceia os parâmetros da sua intimidade conjunta. Ou seja, uma família como todas as outras, se bem que nem todas as famílias experienciam o aparecimento de filhas de etnias inesperadas há muitos anos dadas para adoção.

Tal descrição pode sugerir um melodrama de grande histeria ou um retrato familial de profundo miserabilismo, mas “Segredos e Mentiras” não é nada disso, vibrando com o humanismo típico do cinema de Leigh onde todos os seres humanos que aparecem em cena, mesmo burocratas estatais, merecem compaixão e o interesse do espectador. Aliás, o modo como todos merecemos afeto e amor nas nossas vidas é quase a mensagem desta obra, algo que pode parecer lamechas na sua sinceridade, não fosse o realismo brutal com que o realizador nos transmite tais ideias.


30. PADRE PADRONE (1977) de Paolo e Vittorio Taviani

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Dos Taviani para Rossellini, uma carta de amor cinéfila.

Em 1946, depois de terem visto “Paisan” de Roberto Rossellini, dois adolescentes italianos prometeram um ao outro e a si mesmos que se, numa década, eles não estivessem a fazer cinema, então mais valia pegarem numa arma e darem um tiro na cabeça. Eles eram os irmãos Taviani, Paolo e Vittorio, que, 31 anos depois, ganharam a Palme d’Or dada por um júri cujo presidente era Rossellini, o ídolo inspirador dos dois cineastas.

Um júri que, segundo rumores, nunca teria dado o prémio a “Padre Padrone” se não fosse a insistência do seu presidente maravilhado com a adaptação da autobiografia de Gavino Ledda, um linguista cuja vida havia começado nas regiões empobrecidas da Sardenha. Diz-se que a direção do festival fez pressão sobre Rosselini para que este reconsiderasse e há até quem aponte para as discussões acesas entre o realizador, restantes jurados e representantes do festival, como uma das causas que levou a que, cinco dias após a entrega da Palme, Rossellini tivesse sofrido um ataque cardíaco mortal.

Enfim, a ligação a Rossellini, por muito maravilhosa e trágica que seja, não se limita ao que já mencionámos. Afinal, é impossível imaginar “Padre Padrone” existir sem o legado do cinema neorrealista, onde se estabeleceram as fundações para a experimentação, meio documental meio Brechtiana, que os irmãos Taviani empregam na sua magnum opus. “Padre Padrone” é, no final, um aterrador retrato de tirania patriarcal e de como falta de educação e conhecimento linguístico é uma prisão que diabolicamente ajuda a manter o status quo de uma sociedade apoiada na pobreza miserável de muitos.


29. O QUARTO DO FILHO (2001) de Nanni Moretti

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O cinema enquanto experiência essencialmente emocional.

Devido ao seu legado na história do cinema, ao seu discurso político ou simples intenções autorais e construção formal e textual, muitos dos filmes que celebramos nesta lista proporcionam ao espectador experiências mais intelectuais que emocionais.  Nada disso implica uma superioridade ou inferioridade valorativa, somente o tipo de diálogo que as obras e seus criadores estabelecem com o espectador. “O Quarto do Filho” de Nanni Moretti é uma das maiores exceções a esta norma.

Sendo este um retrato de uma família a lidar com a morte de um filho, seria fácil supor que essa qualidade emocional se deve sobretudo ao conteúdo narrativo, mas é o modo como Moretti constrói esta documentação de perda que realmente joga e dialoga com as respostas emocionais mais primordiais do espectador. Sons traumatizante ecoam de cena para cena, estímulos sensoriais vão sendo abafados pela depressão e os próprios ritmos do quotidiano e da perceção sensorial, aqui materializados sob a forma da montagem, são pervertidos pela dor.

O mais extraordinário de tudo isto é que, não obstante as muitas lágrimas que Moretti e companhia tendem a produzir no espectador comum, “O Quarto do Filho” não é, nem de perto nem de longe, um filme deprimente ou desesperante. Muito pelo contrário, é um documento de absoluta franqueza psicológica, sem sentimentalismos desnecessários e uma inteligência soberbamente expressa num gesto cinematográfico de observação humanista.


28. O HOMEM DE FERRO (1981) de Andrzej Wajda

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Andrzej Wajda em estado de graça.

Entre agosto de 1980 e dezembro de 1981, a censura comunista na Polónia teve um momentâneo aliviamento que correspondeu à formação do movimento social Solidariedade e sua eventual supressão estatal. Nesse período de maior liberdade de expressão, o mais influente realizador polaco da época, Andrzej Wajda, filmou uma sequela a um dos seus maiores trabalhos, “O Homem de Mármore”.

Esse primeiro filme acompanhava uma cineasta no processo de investigação para um documentário sobre um antigo herói do regime cuja história havia sido manipulada e apagada por ação governamental. Aquando da feitura dessa obra, Wajda foi forçado a atenuar a frontalidade crítica do seu guião. Quando chegou a altura de fazer a sequela “O Homem de Ferro”, Wajda aproveitou bem a sua liberdade temporária para construir um filme quase panfletário na sua fúria política, documentando a criação da Solidariedade através de uma ficção claramente inspirada pela vida de Lech Wałęsa.

Como seria de esperar, assim que a Solidariedade foi suprimida, a exibição de “O Homem de Ferro” na Polónia foi proibida, efetivamente banindo o filme do país. Entretanto, contudo, Wajda já havia conquistado a Palme d’Or e a obra viria ainda a ser nomeada para o Óscar de Melhor Filme Numa Língua Estrangeira. Esta obra insuflada de bravura ativista é assim um documento histórico de valor incalculável. É também uma espécie de “Mundo a Seus Pés” polaco com a sua estrutura de flashbacks e investigação jornalística, agora feita por um realizador cínico e desiludido com a vida e não por uma cineasta cheia de idealismos juvenis como o primeiro filme deste soberbo díptico polaco.


27. O MILAGRE DE MILÃO (1951) de Vittorio de Sica

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Na miséria profunda, o otimismo é um milagre poderoso..

Para muitas pessoas, o suprassumo exemplo de um filme neorrealista italiano é “Ladrões de Bicicletas” de Vittorio de Sica. Com a sua história de incrível miséria social na Italiana do pós-guerra, uso de não-atores e cenários reais, é fácil perceber tal atitude. O neorrealismo, contudo, não se resumiu somente a obras miserabilistas de fazer chorar as pedras da calçada, tendo sido um estilo e movimento muito mais variado, que permitiu, por exemplo, a cineastas como Visconti desenvolverem épicos de linhas homéricas ou a de Sica as ferramentas para uma comédia fantasiosa.

Descrever um filme neorrealista como uma comédia fantasiosa pode parecer um pouco estranho, mas não há outra forma de classificar o filme que valeu a Vittorio de Sica a Palme d’Or de 1951, “O Milagre de Milão”. Trata-se de um conto centrado num homem inocente e impossivelmente otimista que nasceu no meio das couves de um quintal e viria a trazer alegria a um bairro de lata ameaçado por vilões capitalistas que parecem saídos de um filme mudo soviético. A magia do filme vem sobretudo nessa tentativa de salvamento, quando o fantasma de sua mãe dá ao protagonista uma pomba mágica que lhe concede qualquer desejo.

Tal descrição pode parecer idiótica, mas o filme está longe de ser uma obra pateta. Na verdade, é um exercício sublime em ilustrar os males e sofrimentos de uma comunidade sem nunca tornar a sua desgraça no foco da narrativa. Repleto de algumas das imagens mais belas e pitorescas na filmografia de Vittorio de Sica, “O Milagre de Milão” é, por detrás da sua fechada risonha, uma obra de grande urgência política, feita com primor técnico e um balanço tonal entre tragédia e triunfo tão frágil como espetacular de se ver.


26. UNDERGROUND – ERA UMA VEZ UM PAÍS (1995) de Emir Kusturica

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A história da Jugoslávia enquanto pesadelo carnavalesco.

Quando Emir Kusturica se cruzou com Francis Ford Coppola no aeroporto, o cineasta eslavo cumprimentou o seu colega americano, um dos seus ídolos e alguém que, aparentemente, nunca tinha ouvido falar de Kusturica. Por muito que o realizador europeu tentasse explicar que era um cineasta respeitado, Coppola ignorou-o, não reconhecendo nele um colega ou figura importante. Isto ocorreu em 1996, após Coppola ter presidido o júri do Festival de Cannes. Ou seja, um ano depois de Kusturica se ter juntado a Coppola na lista de raros realizadores que conquistaram duas Palmes d’Ors.

A ignorância e desrespeito de Francis Ford Coppola são algo trágico. Ele demonstrou falta de interesse pela sua própria arte, ignorância sobre o festival que tinha acabado de presidir e ilustrou quão obscuros os filmes fora do mainstream americano acabam por ser, mesmo tendo saído vitoriosos de Cannes. Isso nunca é um reflexo de qualidade, sendo este caso particularmente alarmante. Afinal, o filme que valeu, em 1995 a Palme a Kusturica, é uma obra-prima que, independentemente de questões morais e políticas, se trata de um triunfo tonal e estilístico que merece admiração de todos os que se dizem interessar por cinema.

Contando a história política da Jugoslávia ao longo do século XX a partir de uma farsa perversa, “Underground – Era Uma Vez um País” é um filme a explodir com os gostos excêntricos e soluções estilísticas singulares do seu criador. Voluptuoso e imaginativo em igual medida, este é um épico irreverente cujas preocupações ideológicas, integridade narrativa e devaneios autorais estão perfeitamente negociadas por Kusturica. No final deste pesadelo carnavalesco cheio de humor, hedonismo e conflito, quase que se tem vontade de bater palmas, mesmo que o brilhante realizador que Coppola ignorou nunca as vá ouvir.


25. ORFEU NEGRO (1959) de Marcel Camus

orfeu negro cannes palme dor
Cor e música, poesia e dor em orgástica comunhão.

Um cineasta francês filma uma reinvenção do mito de Orfeu e Eurídice passado nas favelas do Rio de Janeiro em tempo de Carnaval. Tomando inspiração na cultura que aí percecionava como turista, cria uma obra colorida com um elenco unicamente composto por atores pretos oriundos das comunidades pobres da zona. Se este fosse um filme estreado hoje em dia, muito se falaria da atitude proto colonialista de um cineasta europeu a apropriar-se da cultura brasileira para fazer uma fantasia escapista para audiências europeias. Tais críticas não seriam injustificadas, mas o filme de que estamos a falar raramente foi assim analisado, tendo estreado em 1959.

A idade, no entanto, não inocula “Orfeu Negro” de Marcel Camus de tais leituras. Com isso dito, é difícil produzir grande indignação para com esta obra que, verdade seja dita, é um dos espetáculos mais belos a alguma vez passar pela Croisette. As cores dos figurinos e paisagens naturais do Rio de Janeiro vibram nas retinas do espectador, enquanto a música composta por Luiz Bonfá e Antonio Carlos Jobim hipnotiza e a história clássica do poeta e sua noiva arrebatam o coração com a sua carga emocional simples, mas poderosa.

Parte do sucesso desta obra de cinema quase lírico devém-se ao modo como Camus tão abertamente se recusa a fazer do seu filme um estudo etnográfico ou um exposé sobre uma cultura exótica. De facto, os elementos de fantasia, longe de desrespeitarem a cultura brasileira, ajudam a distanciar o filme dessa mesma realidade, afirmando o conto deste Orfeu cantor como um poema com sabores imprecisos do Rio de Janeiro e pouco mais que isso. E que belo esse poema é! “Orfeu Negro” é uma experiência quase orgástica de cor, som e glória cinematográfica, um sonho, um pesadelo, uma canção e um grito de dor.


24. A BALADA DE NARAYAMA (1983) de Shohei Imamura

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Levanta questões difíceis sobre valores tradicionais japoneses.

Adaptado de um romance de Shichirō Fukazawa, que por sua vez é inspirado por um mito nipónico, “A Balada de Narayama” retrata uma aldeia isolada no Japão oitocentista, em que os idosos que já não podiam contribuir para a comunidade eram levados pelos seus familiares até ao topo de uma montanha próxima, onde acabavam por morrer de fome e frio. Num país onde o respeito pelas gerações mais velhas e a obediência a tradições ancestrais são dois imperativos socioculturais, a dissonância cognitiva criada por esta tradição levanta questões sobre a própria integridade da identidade nacional japonesa.

Dinâmicas concetualmente desafiadoras como essa são amplamente exploradas por Shohei Imamura neste filme, onde a sua obsessão em comparar a condição humana com a selvajaria do mundo animal chega à sua máxima apoteose, assim como outras grandes marcas do seu estilo enquanto autor cinematográfico. Em comparação com outra adaptação deste romance estreado em 1958, o filme de Imamura é certamente brutalista no seu impacto e violência, capaz de dialogar com o espectador numa conversa tão rica em compaixão como em instantes de choque.

No final, o projeto é uma luxuriante e emocionalmente perturbadora experiência que nos faz olhar com uma visão humanista uma situação de pragmatismo vagamente desumano. De destacar é a longa sequência que encerra o filme, o subir à montanha da protagonista idosa e seu filho, interpretados por Sumiko Sakamoto e Ken Ogata, é talvez um dos grandes píncaros artísticos na história do cinema japonês.


23. PULP FICTION (1994) de Quentin Tarantino

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A bomba que abalou a Croisette em 1994.

Como uma bomba atómica a rebentar no mundo do cinema, “Pulp Fiction” foi um filme revolucionário e demoniacamente influente, solidificando o lugar de destaque das produções independentes americanas no panorama mundial e vindo a inspirar gerações seguintes de cineastas que viriam a tentar emular o estilo singular de Quentin Tarantino. Desde os seus diálogos cheios de referências da cultura popular até às suas manipulações cronológicas, é raro o elemento individual deste filme que não tenha ficado, de algum modo, gravado a ferro e fogo na coletiva consciência cinéfila.

Apesar disso, o filme tem os seus problemas, especialmente ao nível de coerência tonal e promoção de valores dúbios. No entanto, não foi isso que levou a que este fosse um dos mais polémicos vencedores da Palme d’Or do seu tempo, por muito estranho que isso possa parecer ao considerar-se o legado aparentemente imortal do projeto. É que, em 1994, um dos filmes a competir contra o puzzle hiperviolento de Tarantino era “Três Cores: Vermelho”, o último capítulo na trilogia das três cores de Krysztof Kieslowski e também o derradeiro filme desse autor polaco antes da sua morte prematura.

Ultrajados com o desrespeito ao mestre polaco, jornalistas chegaram a confrontar o então presidente do júri Clint Eastwood, supondo que as suas sensibilidades americanas tivessem levado ao triunfo muito vaiado do seu compatriota. Eastwood, no entanto, surpreendeu ao afirmar que os seus gostos são mais europeus e que foram os outros jurados que o pressionaram a dar a vitória a “Pulp Fiction”. Independentemente das razões que levaram à consagração na Croisette, é indiscutível que “Pulp Fiction” é um justo e espetacular vencedor da Palme d’Or.


22. CRÓNICA DOS ANOS DE BRASA (1975) de Mohammed Lakhdar-Hamina

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É raro o filme político que engloba na sua forma a ideologia que defende.

No cinema, as histórias do terceiro mundo raramente chegam ao grande ecrã e, quando o fazem, são normalmente filtradas pela perspetiva de cineastas de nações mais privilegiadas. O Festival de Cannes é bem culpado da promoção desse tipo de projetos, parecendo sempre preferir dar visibilidade a projetos europeus sobre países em desenvolvimento do que a obras feitas por cineastas desses mesmos países.

Ocasionalmente, contudo, lá um realizador do diro Terceiro Mundo consegue levar um filme à Croisette, como foi o caso de Mohammed Lakhdar-Hamina que trouxe a Cannes uma nova perspetiva sobre os esforços independentistas da Argélia contra a ocupação colonial francesa. Essa mesma história já havia sido canonizada no panteão do cinema internacional com “A Batalha de Argel”, uma produção italiana que examina o fenómeno revolucionário na frente urbana, ignorando, quase por completo, como o descontentamento antifrancês muito transcendia a capital argelina. “Crónica dos Anos de Brasa” dá voz às fações rurais do povo em revolta da Argélia, sendo quase desprovido de protagonistas e preferindo assim retratar o esforço e a vida do populus enquanto coletivo.

Essa abordagem não se restringe à construção textual e ideológica do filme, sendo que Lakhdar-Hamina insiste em construir o seu épico panfletário em direta contradição de uma litania de convenções do cinema narrativo. Note-se, por exemplo, o uso transversal de planos gerais onde o espectador é forçado a encarar o grupo e não o indivíduo, ou o uso de repetição tanto na estrutura de sequências como na montagem de instantes de violência, reforçando a natureza cíclica e viciosa da opressão europeia. Esta lista possui muitos exemplos de cinema político, mas poucos são os projetos desse tipo que de modo tão exímio incorporam a sua ideologia no modo como contam, materializam e visualizam os seus discursos narrativos.


21. QUANDO PASSAM AS CEGONHAS (1958) de Mikhail Kalatozov

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Quem é que necessita de subtileza textual quando temos imagens espetaculares?

Estamos habituados a encarar o objeto cinematográfico através de apreciações baseadas em elementos de narrativa, desenvolvimento de personagem, discurso ideológico, mensagem moral e até através do trabalho dos seus atores. É raro o projeto que, de modo quase inegável, nos força, enquanto espectadores, a confrontarmos o filme enquanto uma experiência essencialmente sensorial.

Quando Passam as Cegonhas” é uma obra de propaganda soviética que, não obstante a sua mensagem política pervasiva, afeta o espectador não através da disseminação ideológica. Faz-se por meio da sua espetacular construção formal, cuja complexidade e espetacularidade são tais que, ainda nos dias de hoje, há certos planos em que a câmara parece violar leis da física, espaço e até tempo. O nosso olho flutua, voa, espirala por escadarias e ataca os atores em suplício choroso, como que uma presença imaterial que existe somente enquanto energia viva. Meras palavras não são suficientes para traduzir tais feitos, que unem a prática dos cineastas no cinema documental de guerra com o fausto ostentoso das maiores produções da União Soviética.

Até a componente emocional deste melodrama de guerra não é tanto o produto do trabalho dos atores ou do texto, mas sim uma consequência da associação de imagens e sons em violenta comunhão. Sendo este um filme soviético, tais soluções formais poderão parecer óbvias, mas o resultado é, mesmo assim difícil de explicar tal é a sua genialidade. Resta dizer que este é um filme com a subtileza de um murro na cara, mas isso não é um detrimento. Afinal, quando estamos boquiabertos face a um autêntico orgasmo fílmico de criatividade formalista, quem é que precisa de subtileza?


20. 4 MESES, 3 SEMANAS E 2 DIAS (2007) de Cristian Mungiu

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A consagração do Novo Cinema Romeno.

A ascensão do Novo Cinema Romeno foi um dos fenómenos mais importantes na História do cinema da primeira década do século XXI. Apesar das sementes dessa vanguarda se poderem encontrar antes de 2007, foi quando Cristian Mungiu ganhou a Palme d’Or por “4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias” que o cinema romeno teve a sua grande consagração internacional e foi, de certo modo, posto no mapa de todos os cinéfilos que se prezem.

O filme documenta um atribulado dia em 1987, em que uma estudante universitária tenta obter um aborto ilegal com a ajuda de uma amiga no meio do ambiente opressor da Roménia sob regime Comunista. Composto quase só por longos planos sequência de um naturalismo interpretativo absoluto, o filme é um excelente exemplo do virtuosismo cinematográfico romeno assim como um potente thriller que, apesar do seu tema polémico, evita fazer juízos morais ou éticos. Aliás, o olhar de Mungiu sobre os eventos retratados é clínico e quase objetivo, forçando o espectador a assimilar ele mesmo os conflitos ideológicos e até o discurso político da narrativa com que é assim confrontado.

Com isso dito, nem toda a glória deste projeto se deve somente à mestria indiscutível de Cristian Mungiu, sendo que muito louvor há que ser dado, por exemplo ao seu diretor de fotografia e atriz principal. Oleg Mutu tem vindo a filmar alguns dos melhores filmes romenos dos últimos anos e a sua capacidade para se manter numa gramática rigidamente realista e ao mesmo tempo exibe controlo sobre coreografia de câmara e iluminação dramática é espetacular. Anamaria Marinca, por seu lado, ancora o filme com uma caracterização construída mais através de ações do que qualquer tipo de estudo psicológico.


19. TAXI DRIVER (1976) de Martin Scorsese

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Violência produz violência.

Se o cinema da Nova Hollywood era um cinema de solidão, então Travis Bickel é o seu santo padroeiro. O protagonista de “Taxi Driver é uma alma perdida na entropia niilista de uma Nova Iorque suja e enegrecida pela sua própria torpitude amoral, um inferno terreno a querer fazer-se passar somente por Purgatório. Ele é também um exemplo de autoisolamento, um homem que se vê superior aos demais e, no desespero indignado para com a realidade infernal, vê somente a violência como solução para a construção de um mundo melhor.

Muito do cinema americano dos anos 70 foi construído em volta de estudos indiretamente glorificantes de figuras como esta, mas, não obstante o culto de devoção juvenil em volta da prestação lendária de Robert de Niro como Bickel, “Taxi Driver” funciona quase como uma desmistificação cáustica desse paradigma. Nas mãos de Martin Scorsese, não há dúvidas que Travis Bickel é um produto do mundo monstruoso em que vive, uma vida nascida da semente do ódio que não é herói nenhum, mesmo que assim ele se possa autointitular.

De tal modo “Taxi Driver” é um potente diagnóstico da sociedade e cultura americana dos anos 70 que Tennesse Williams, enquanto presidente do júri de Cannes de 1976, fez questão de sublinhar a importância do filme que os seus companheiros jurados o tinham quase forçado a condecorar com a Palme d’Or, ao mesmo tempo que criticou abertamente a sua venenosa visão. Segundo Williams, violência produz violência e filmes como este, ao invés de funcionarem como uma denúncia, podem ser somente armas de exacerbação dessa mesma violência. É certo que o cinema não deve obrigatoriamente ser uma arte marcada pelo ódio, mas há um considerável valor em filmes como “Taxi Driver”, dispostos a cristalizar as partes mais hediondas da condição humana.


18. APOCALYPSE NOW (1979) de Francis Ford Coppola

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Um diamante em bruto.

Ao longo da década de 70, o cinema americano da Nova Hollywood e seus obstinados autores dominaram o festival de Cannes. Altman, Schatzberg, Coppola e Scorsese foram todos agraciados com a tão desejada Palme d’Or e, chegado o final da década, Francis Ford Coppola subiu novamente ao palco da Croisette, desta vez pelo filme que ele mesmo disse não ser sobre o Vietname, mas sim ser o Vietname, “Apocalypse Now.

O filme é hoje geralmente aceite como um desses clássicos canonizados cujo valor é indiscutível, mas, em 1979, o épico de guerra de Coppola causou grandes dores de cabeça ao júri de Cannes. Especificamente, a presidente do júri Françoise Sagan queria dar a Palme a “O Tambor” de Volker Schlöndorff, mas a direção do festival estava decidida a premiar o cineasta americano. Como é bem-sabido, a produção de “Apocalypse Now” foi uma catástrofe do início ao fim e é um milagre que não tenha havido ou fatalidades ou casos de insanidade permanente causados pelo tormento desse processo cinematográfico. Tudo isso foi seguido, documentado e muito falado em Cannes ao longo dos anos e, depois de muito ter andado na orla do precipício do fracasso, Coppola lá conseguiu terminar a sua Magnum opus e a consagração da palme acabou por ser quase que uma recompensa justificativa de todo o seu sofrimento.

Convém, contudo, reconhecer que o filme está longe de ser imaculado e que, de facto, as marcas da sua construção caótica estão bem presentes como hediondas cicatrizes de incoerências tonais, discursos políticos contraditórios e redutores, exercícios de montagem aparentemente aleatórios e muito mais. É claro que, face à grandiosidade caótica de “Apocalypse Now”, depressa se entende que a perfeição não é tudo e que, por vezes, o diamante em bruto é mais valioso que a joia polida.


17. ADEUS MINHA CONCUBINA (1993) de Chen Kaige

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Esmagadoramente ambicioso.

Em 1976, depois de uma década de Revolução Cultural, o Partido Comunista Chinês abriu um concurso para a entrada na Academia de Cinema de Pequim, que havia estado encerrada durante os anos revolucionários. Os estudantes que daí construíram carreiras cinematográficas, sendo mesmo alguns dos realizadores mais influentes e importantes do continente Asiático, passaram a ser conhecidos como A Quinta Geração. Chen Kaige, o único cineasta chinês a conquistar a Palme d’Or, foi um desses estudantes tornados mestres da sétima arte.

Solidificando ainda mais a ligação de Chen Kaige aos cineastas da Quinta Geração e ao legado destrutivo da Revolução Cultural está precisamente a obra que o levou ao triunfo na Croisette, “Adeus Minha Concubina”. Nesse épico transgressivo, o realizador propõe uma meticulosa visão da história política chinesa desde 1924 a 1977, contextualizando esse estudo com um melodrama sobre a vida de um intérprete de ópera tradicional chinesa especializado em papéis femininos.

Debatendo-se com complexas questões de género, sexualidade e identidade que ainda hoje provar-se-iam difíceis de decifrar, “Adeus Minha Concubina” é um filme de esmagadora ambição. Chen Kaige efetivamente propõe uma análise política que simultaneamente aborda o tema através da metáfora, do símbolo, da perspetiva individual e do ponto de vista abrangente da História. Através de uma disciplina formal insuperável, um argumento de uma complexidade bizantina e um terceto de prestações eletrizantes de Leslie Cheung, Fengyi Zhang e Li Gong, o filme consegue tudo isso fazer sem nunca mostrar qualquer sombra de incoerência ou esforço. Tal como na performance de ópera chinesa, a elegância, beleza e virtuosismo são valores essenciais e invioláveis neste épico magistral.


16. A ETERNIDADE E UM DIA (1998) de Theo Angelopoulos

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Olhando para a frente e para trás em preparação do fim.

“Quanto tempo dura o amanhã?” é uma pergunta feita no filme que valeu ao grego Theo Angelopoulos a Palme d’Or, e é também uma questão cuja resposta está contida no título da obra, “A Eternidade e Um Dia”. Essa eternidade, contudo, está fora do alcance humano, sendo a nossa existência uma diminuta partícula no rio de contínua corrente que é o tempo. Resta-nos olhar para trás, perdermo-nos no passado e em arrependimentos, ou corajosamente mirarmos o fim que nos espera a todos. Ponderar a nossa mortalidade, é também ponderar a eternidade que não nos inclui a nós, observar o poema da nossa vida que, apesar de ter um final certo, parece ficar sempre inacabado.

Cheia de poemas inacabados está a vida do protagonista de “A Eternidade e Um Dia”, um escritor e poeta viúvo que, no início do filme, toma conhecimento da sua iminente morte prematura graças a um cancro. O que se segue na narrativa desta obra é exatamente o fenómeno acima descrito, o olhar para trás e para a frente de um homem perto do final da sua existência que, depois de uma vida der inocuidade, decide salvar um jovem refugiado albanês, talvez num gesto redentor ou numa tentativa de simplesmente fazer alguma coisa e não se afogar na contemplação inativa.

Como um rio, como um poema e como o trajeto do protagonista de “A Eternidade e Um Dia”, também o cinema de Theo Angelopoulos é um jogo de movimento e pausas. Em verdadeiros epítetos de virtuosismo formal, as obras deste cineasta são compostas por poderosíssimos momentos contemplativos que interrompem baléticas coreografias de câmara. Se alguém um dia vos perguntar o que é cinema lírico ou cinema poético, mostrem-lhes esta avassaladora obra-prima.


15. O SABOR DA CEREJA (1998) de Abbas Kiarostami

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Quando a barreira entre o real e a representação da realidade desaparece.

Abordando um tema tabu no mundo xiita, “O Sabor da Cereja” de Abbas Kiarostami retrata as potenciais últimas horas na vida de um homem que vagueia de carro pelas redondezas de Teerão em busca de alguém que o auxilie no seu suicídio. Composto quase exclusivamente por momentos de contemplação paisagística ou longos diálogos proto socráticos dentro do carro do protagonista, “O Sabor da Cereja” poderia facilmente ter sido um insuportável exercício em miserabilismo verboso e superficial. Nas mãos de Kiarostami, contudo, este é um exercício cuja complexidade é oculta pela simplicidade poderosa da sua estrutura e imagética, e cujo desespero existencialista é contrabalançado por uma filosofia humanista transversal a todos os trabalhos de Kiarostami.

Tal como a consagração de “4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias” em Cannes representou uma espécie de validação do Novo Cinema Romeno no panorama do cinema mundial, também o triunfo de “O Sabor da Cereja” foi um marco importante para o cinema iraniano. Ao longo da década de 90, depois de muitos esforços vanguardistas na década anterior, o cinema iraniano entrou de rompante na consciência ocidental, exibindo um gosto por metatextualidade e experimentação formalista que o destacaram de tantos outros cinemas nacionais.

Abbas Kiarostami foi o grande nome deste movimento, pelo que a sua premiação na Croisette foi de particular valor. Isto torna-se particularmente verdade quando consideramos também que o final de “O Sabor da Cereja”, onde a barreira entre o real e a representação do real estilhaça, é talvez o mais revolucionário e destemido gesto na filmografia do autor.


14. DANCER IN THE DARK (2000) de Lars von Trier

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Todos louvem a Santa Björk!

Em 1995, Lars von Trier e Thomas Vinterberg autoraram um manifesto artístico em prol de um cinema realista e puro, onde proibiam inúmeros mecanismos do artifício cinematográfico, desde algo tão vistoso como efeitos digitais até coisas tão básicas como o uso de luz artificial. Escusado será dizer que este cinema do Dogma 95 teve poucos seguidores e ainda menos filmes feitos sob a sua alçada, mas os poucos exemplos que existem são influentes, não obstante a visão extremamente redutiva de cinema que a sua ideologia dogmática define.

Certamente parece impossível considerar que tal movimento alguma vez pudesse dar origem a uma obra de cinema musical, mas o facto é que o seu filme de maior sucesso e influência é “Dancer in the Dark”, onde Lars von Trier como que explorou os limites do seu próprio manifesto. A uma primeira análise, esta história niilista de uma mulher desesperada que é erroneamente condenada à morte pode parecer quase um ataque à forma musical. Afinal, a inocente protagonista do filme adora cinema musical pela sua jovialidade colorida, o que é irónico, considerando que ela está dentro de um musical que é tudo menos feliz ou glamouroso. Contudo, o resultado da experimentação de von Trier parece ter fugido um pouco às intenções do seu próprio criador.

A prestação de Björk no papel principal, por exemplo, completamente perverte qualquer defesa do Dogma 95, sendo naturalista, mas apoiada numa estilização etérea inerente à própria personalidade da atriz. Também os devaneios musicais do filme, longe de serem autocríticas formais, depressa se afirmam como instantes de emoção sublimada em forma de filme. Filmado com o estilo rudimentar do Dogma 95, “Dancer in the Dark” transcende os seus limites autoimpostos, desafiando o espectador e o artista seu autor em igual medida com a sua híbrida glória cinematográfica.


13. PARIS, TEXAS (1984) de Wim Wenders

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O homem e a paisagem num diálogo de desolação americana.

Um dos subgéneros mais interessantes do cinema são estudos sobre os EUA, enquanto mito, objeto histórico ou identidade cultural, por parte de cineastas não americanos, especialmente realizadores europeus. O suprassumo exemplo de tal exercício é “Paris, Texas”, onde, partindo de um argumento de Sam Shepard, o alemão Wim Wenders concebeu um dos mais belos e acutilantes retratos do Sudoeste norte-americano, suas paisagens, sua pobreza e sua desolação.

Tal desolação é bem patente na fotografia de Robby Müller que pinta o deserto rochoso em cores tão ácidas que quase magoam a vista do espectador, exacerbando a força visual do céu azul e delineando quão vazia a paisagem é. Há aqui um gesto de desmitificação que, paradoxalmente, contém o seu quê de glorificante, encontrando beleza no desespero apático que é representado metaforicamente pela paisagem e ilustrado de forma mais direta na prestação minimalista e totalmente desafetada de Harry Dean Stanton no papel de um homem vagamente amnésico, de um homem em busca de reencontrar uma vida perdida, com um filho abandonado e uma esposa ausente.

Esta dissecação pós-moderna do mito do Oeste americano e da figura arquetípica do misterioso forasteiro do western não é, contudo, um exercício exclusivamente intelectual. Wenders tem a capacidade de negociar os aspetos puramente concetuais e o elemento humano da sua história com impressionante elegância e destreza. Tal é a sua mestria que, quando o filme chega ao seu clímax, onde a paisagem é substituída por uma câmara escura e a solidão silenciosa por um diálogo a dois, o espectador é surpreendido pela devastadora força com que o filme nos expõe à mágoa de duas almas perdidas em busca de conforto num mundo que se recusa a conceder tais luxos.


12. O SALÁRIO DO MEDO (1953) de Henri-Georges Clouzot

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Clouzot é um mestre do medo e do suspense.

Alfred Hitchcock é usualmente considerado o mestre do suspense cinematográfico, mas seria igualmente justo reconhecer com esse estatuto um cineasta que, apesar de uma carreira de sucesso, é hoje em dia muito pouco lembrado. Falamos, pois claro, de Henri-Georges Clouzot que, em 1953, arrecadou a tão desejada Palme d’Or do festival de Cannes pela aquela que se viria a confirmar como a sua obra máxima, “O Salário do Medo”.

Baseado num romance de Georges Arnaud, o filme representa um conto brutalmente crítico dos excessos da ganância e influência corrupta do capitalismo selvagem. Esta é, afinal, a história de quatro homens contratados por uma empresa petrolífera na América do Sul para arriscarem as vidas, transportando dois camiões apetrechados de nitroglicerina ao longo de uma paisagem intrépida e mortiferamente irregular. O mínimo movimento em falso pode detonar a carga explosiva, mas o tempo é escasso sendo a nitroglicerina necessária para se apagar um fogo despoletado num dos poços da empresa, para quem as vidas dos condutores são de pouco ou nenhum valor.

Com um domínio diabólico dos ritmos em jogo, Clouzot constrói aqui um tratado sufocante em como cultivar medo e tensão no espectador, nunca deixando que este se esqueça da ameaça mortal e de todos os fatores inócuos que podem levar à aniquilação dos seres humanos em cena, todos eles motivados em igual medida por egoísmo e desespero suicida. A materialidade do mundo conjurado pelo realizador e a atenção dada ao detalhe textural exacerbam a experiência visceral de “O Salário do Medo”, cujas melhores sequências são bem capazes de assombrar alguém para o resto da sua vida tal é o seu poder e crueldade.


11. LA DOLCE VITA (1961) de Federico Fellini

La Dolce Vita
O hedonismo romano é irresistível.

No pós-guerra, Federico Fellini contribuiu para os guiões de vários filmes neorrealistas de outros realizadores. Nos anos 50, começou a filmar os seus projetos pessoais, abandonando o realismo em prol de melodramas sobre temas sociais com um pouco de bizarria circense a dar sabor. Qual espelho da evolução do seu próprio cinema nacional, chegado o advento dos anos 60, ele virou as costas de vez ao neorrealismo, dedicando-se a um cinema modernista com traços do surreal e impulsos experimentais tipificado pelo filme que lhe valeu a Palme d’Or de 1960.

La Dolce Vita é uma sátira episódica sobre várias facetas da sociedade romana, cujo estilo inebriante viria a seduzir audiências por todo o mundo. Ao lado de “A Aventura” de Antonioni, que também estreou na Croisette desse ano, esta obra parecia anunciar que o cinema italiano se havia finalmente divorciado dos contos de pobreza em cidades marcadas pela guerra e estava pronto para algo novo e perigosamente arrojado.

A reação apaixonada a “La Dolce Vita” não deixa, contudo, de ser um pouco irónica. Como os crentes que são postos em fervor religioso pela brincadeira de umas crianças que dizem ver a Virgem Maria na praia num dos episódios da película, também os espectadores de “La Dolce Vita” são enganados por falsos ídolos sem valor sob a forma do glamour romano aí representado. A tentação não é fácil de resistir e Fellini, num gesto de simultâneo ataque e autocrítica, parece admitir isso mesmo. Veja-se como o cineasta é espelhado pelo protagonista do filme que, tal como ele, parece pronto a revirar os olhos ao mundo hedonista e sua vacuidade, mas, no final, é igualmente incapaz de dizer não aos seus vícios.


10. AO SOL DE SATANÁS (1987) de Maurice Pialat

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Meditações espirituais com finais milagrosos.

De todos os títulos nesta lista, não haverá nenhum filme mais odiado ou cuja vitória em Cannes foi mais controversa que “Ao Sol de Satanás”. Quando foi receber a Palme d’Or ao som de uma audiência que o vaiava abertamente, Maurice Pialat famosamente virou-se para os seus críticos e proclamou: “Vocês não gostam de mim? Bem, deixem-me dizer-vos que eu também não gosto de vocês!”

Tais sentimentos, combinados com a reação odiosa da massa crítica e popular, poderiam indicar Pialat como um realizador de obras em aberta guerra com o espectador, ao estilo de Haneke ou von Trier. No entanto, a realidade está bem longe de tais ficções, sendo o único pecado do cineasta francês a austeridade minimalista do seu estilo e a complexidade concetual do seu projeto. Tal como os outros filmes adaptados dos livros de Georges Bernanos, “Ao Sol de Satanás” é uma complicada meditação sobre a natureza da fé, do mal, da santidade e da dúvida, um conceito cujo papel religioso é, no mínimo, algo discutível e controverso.

A uma primeira análise, Pialat filma esta história de um padre e seus encontros com uma adolescente homicida, um menino doente e um vendedor de cavalos que poderá ser o Diabo, com imensa simplicidade, mas a modéstia do seu gesto em nada ilustra uma falta de precisão ou primor técnico. Pelo contrário, esta é uma abordagem ascética que usa a falta de cortes, a iluminação fria e mise-en-scène espartana para transcender a sua própria condição fílmica e convidar o espectador a entrar em diálogo espiritual com as ideias expostas na narrativa e suas miraculosas conclusões.


09. A ÁRVORE DOS TAMANCOS (1978) de Ermanno Olmi

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A comunhão do homem e a terra. A comunhão do espectador e o filme.

Um filme com mais de três horas sobre a vida de camponeses a viver em abjeta miséria na região de Bergamo da Lombardia em pleno século XIX, cujos diálogos são num dialeto local que nem a maior parte do público italiano conseguiria entender, pode parecer uma proposta um tanto ou quanto punitiva para o espectador casual. No entanto, assim é “A Árvore dos Tamancos”, uma obra magistral de Ermanno Olmi que está longe de ser um objeto de tortura. Para um espectador generoso, o filme é até bem prazeroso.

Parte dessa experiência deve-se ao modo como Olmi estrutura o filme em cenas de curta duração, construindo algo semelhante a uma manta de retalhos episódicos, cada um tão belo como uma pintura de Millet. Isso produz algo mais próximo de uma impressão da vida do que uma narrativa dramática. Em consequência, o espectador vai sendo progressivamente imerso numa recriação da realidade histórica que é tão minuciosa que, por vezes, temos a sensação de estar a testemunhar eventos sem mediação do artifício cinematográfico.

Olmi deve muito à herança do neorrealismo, mas a sua metodologia transcende os feitos de Rosselini, de Sica e outros que tais. Ele, por exemplo, nunca força um discurso político ao seu filme, o que não despe o seu exercício de observação de comentário político. Até o papel da religião é aqui integrado com tal naturalidade, que se poderia chamar a este filme uma das mais preciosas representações do papel da fé no quotidiano. De facto, é difícil explicar o apelo desta obra, tão simples como complexa, tão prazerosa como desafiadora. Fica aqui uma promessa, contudo: há poucos filmes tão poderosos como este, sendo que, chegado o final, sentimos que vivemos ao lado das figuras em cena e com elas partilhámos esperanças, mágoas e felicidades, enfim uma vida.


08. OS CHAPÉUS DE CHUVA DE CHERBURGO (1964) de Jacques Demy

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Em celebração do cinema romântico.

É interessante considerar que, no auge da Nouvelle Vague, nem Godard, nem Truffaut, nem Varda, nem Melville nem Resnais conquistaram a honra máxima de Cannes. Jacques Demy, o mais sentimental e Hollywoodesco dos vanguardistas franceses, pelo contrário, ganhou a Palme d’Or de 1964 por aquele que é um dos melhores e mais radicais musicais na história do cinema, uma desconstrução do próprio género que também funciona como uma elegia e carta de amor, “Os Chapéus de Chuva de Cherburgo”.

Com o seu uso de técnicas da opereta, um elenco de atores vocalmente incapazes de cantar como apropriadas estrelas de musicais e uma estética deliberadamente artificial e espalhafatosa, Demy consegue mostrar o absurdo da convenção do cinema musical na mesma medida em que mostra a sua eficácia e poder. O modo como o realizador joga com as cores saturadas e com os leitmotivses na lindíssima banda-sonora de Michel Legrand é algo de particular valor e genialidade.

O melhor de tudo é que, por detrás das suas intelectualizações pós-modernas de género cinematográfico e ares de grande espetáculo escapista, “Os Chapéus de Chuva de Cherburgo” é um dos mais maduros e inteligentes retratos do amor romântico em cinema. Tal como a vanguarda modernista pode ser mais intelectualmente defensível que os prazeres do cinema romântico, também o amor maduro tem mais profundidade que a efemeridade da paixão juvenil. A grande inteligência do filme está no modo como não nega o poder dessa mesma imaturidade cinemática e humana. Como máximo exemplo disso temos o célebre final, onde musical confronta o espectador com a dissonância de uma cena filmada com o estilo inebriante de uma grande tragédia romântica, mas que, para as personagens em cena, não tem nada de romântico ou trágico.


07. A ÁRVORE DA VIDA (2011) de Terrence Malick

a arvore da vida cannes palme dor
O transcendentalismo americano sobrevive no grande ecrã.

O choro de um irmão em luto pelo seu irmão explode em todas as direções. Torna-se abstrato e torna-se sonho. Torna-se no mais próximo que temos de um filme que em si tenta englobar e responder à questão do sentido da vida, da condição humana e da existência de um Deus num mundo cruel e imperfeito, em que tudo o que vemos à nossa volta parece negar a possibilidade de tal entidade existir. “A Árvore da Vida” é um poema transcendentalista, um grito de uma mãe sem filhos, um tratado académico de um filósofo e o festim visual de um pintor de luz, cor, tempo e movimento.

“A Árvore da Vida” é também uma das mais cativantes e imersivas experiências cinematográficas de que há memória, contendo em si imagens de uma beleza capaz de nos paralisar em admiração devota. É um filme tão complicado como o seu autor e as perguntas cósmicas e existencialistas que atormentam o seu trabalho desde o início da sua carreira no cinematográfica. É um resumo dos seus gostos e das suas paixões, e, por consequência, um exercício em que o artista nos oferece o seu cérebro e o seu coração e nos convida a perscrutar a imensidão de mistérios aí contidos.

Para certos cineastas, existem filmes que se assumem como o culminar de toda uma vida. No caso de Terrence Malick, o professor de filosofia que, nos anos 70, se virou para a sétima arte e se veio a tornar num dos mais singulares autores do cinema americano, esse filme é, sem sombra de dúvida, “A Árvore da Vida”, pelo que a sua vitória no Festival de Cannes de 2011 é particularmente fenomenal.


06. ALL THAT JAZZ: O ESPETÁCULO VAI COMEÇAR (1979) de Bob Fosse

All that Jazz cannes palme dor
Um requiem fúnebre cantado antes da morte.

Em toda a história do cinema, Bob Fosse é possivelmente o único realizador que, de certa forma, conseguiu filmar a sua própria morte e expô-la em toda a sua patética pequenez no grande ecrã para todos vermos. Talvez seja essa a marca de um verdadeiro homem do espetáculo, a habilidade de tornar o fim da sua própria vida num show com luzes de ribalta, coreografias psicadélicas e números musicais com apresentadores cobertos de lantejoulas a cantarolar que a morte está a chegar.

O certo é que Fosse foi, de facto, um verdadeiro homem do espetáculo e que “All That Jazz”, apesar de poder ter começado como uma reinvenção pessoal do “8 ½” de Fellini, depressa deixou de ser um autorretrato do artista em crise criativa para se transmutar num obituário pre mortem. É claro que, se “All That Jazz” é um obituário, então é o mais espetacular obituário que alguma vez existiu.

Enfim, é um obituário, mas é também uma elegia e um exercício em psicanálise do autor em reflexão sobre o seu próprio trabalho. O filme não tem pudor em escavar as profundezas do passado de Fosse e sua psique, sua infância e relações fracassadas, quase que gozando com os arrependimentos de uma vida. Ao mesmo tempo, “All That Jazz” é glorioso na sua sintetização do legado de Fosse, edificando números musicais, fantasiosos e diegéticos, em que toda a carreira dele parece ter sido destilada até à sua essência gloriosa. Este é um musical sem comparação próxima, cruelmente franco e igualmente sedutor, capaz de conquistar mesmo essas pérfidas criaturas que, de modo geral, desgostam do género musical.


05. O LEOPARDO (1963) de Luchino Visconti

leopardo cannes palme dor
O esplendor de um mundo moribundo.

Só mesmo Luchino Visconti podia ter filmado um filme como “O Leopardo”. O que queremos com isto dizer é que somente Luchino Visconti di Modrone, Conde de Lonate Pozzolo e ferrenho comunista, amante de ópera e apaixonada por história de arte, poderia ter assinado um filme que documenta com tanta empatia e jubilante sentido de justiça política, o processo pelo qual a unificação de Itália pôs fim a uma era de domínio e poder nobiliárquico.

Adaptado do romance homónimo de Giuseppe Tomasi de Lampedusa, “O Leopardo” é efetivamente um épico histórico sobre a queda em desgraça da aristocracia italiana aquando da subida ao poder dos Republicanos. Mais importante ainda, o filme é um estudo de personagem que detalha como o príncipe Fabrizio Salina se apercebe que é um fóssil anacrónico, um fantasma de carne e osso cuja existência é uma completa obsolescência e que, face a essa realidade, decide manifestar a aceitação do seu fado através de um último hurra em celebração do seu modo de vida, que em breve estará extinto.

Recriando o passado com níveis de detalhe tão minuciosos que são quase arqueológicos, Visconti filma este drama histórico e pessoal em sequências longíssimas, cheias de movimentos de câmara horizontais que roubam profundidade à imagem e nos dão a ilusão de estarmos a ver grandes quadros de batalha e festa em vagaroso movimento. Ao mesmo tempo, a empatia e compaixão que o cineasta concede às personagens aristocráticas mergulha toda a narrativa em profundo fatalismo tingido pela esperança republicana de um futuro melhor. É um balanço de ideais políticos e tons antagónicos que, nas mãos de Visconti, são apresentados em perfeita harmonia, especialmente numa sequência de baile de 45 minutos que é o píncaro da carreira do realizador e um dos maiores triunfos do cinema italiano.


04. O VIGILANTE (1974) de Francis Ford Coppola

vigilante cannes palme dor
Obsessão paranoica em forma de filme.

A década de 70 foi uma década de paranoia constante para a população dos EUA que, no rescaldo da Guerra do Vietname, tiveram talvez a maior crise de confiança no seu próprio país desde talvez a sua fundação. Tal crise teve uma reação cinematográfica centrada na produção de thrillers paranoicos em que o mundo era um antro de segredos e conspirações, onde ninguém podia confiar em ninguém. A epítome deste cinema é “O Vigilante”, a maior obra-prima de Francis Ford Coppola e um dos filmes que estava nos cinemas durante o desenrolar do escândalo Watergate, outra das facadas desestabilizadoras na psique coletiva dos EUA.

Quase um tratado cinematográfico sobre a ilustração de uma mente obcecada através de códigos e mecanismos audiovisuais, “O Vigilante” é um thriller de sufocante suspense assim como um poderoso estudo de personagem. Gene Hackman dá vida ao protagonista desta máquina de medo e suspeita em forma de filme, interpretando um perito em técnicas de espionagem que, durante um trabalho de rotina, descobre mais segredos do que devia. Aqui, ele oferece ao espectador a mais visceral das suas prestações e consegue negociar na sua caracterização a especificidade da personagem enquanto ser humano individual, mas também o seu valor enquanto uma figura arquetípica.

A razão pela qual o filme está tão perto do topo desta lista, contudo, é o modo como conteúdo tonal e emocional se fundem simbioticamente com a construção formal, especialmente ao nível do som. Esse elemento tão regularmente ignorado do cinema é aqui posto em claro lugar de destaque, de tal modo que Coppola tem aqui aquele que é talvez o melhor uso de som desde o advento da tecnologia, pelo menos no panorama do cinema americano.


03. O TERCEIRO HOMEM (1949) de Carol Reed

terceiro homem cannes palme dor
Nós somos o mal que vemos no mundo.

Passado na carcaça de uma Viena meio destruída, onde as sombras são tão negras como aguçadas e as histórias que aí decorrem tão cínicas que podem fazer com que alguém perca fé na humanidade, “O Terceiro Homem” é o melhor exemplo de cinema noir já feito. Somente a associação usual desse estilo às paisagens urbanas de Los Angeles pode fazer alguém duvidar da veracidade de tal afirmação pois, em termos formais e especialmente em termos ideológicos, a podridão niilista deste filme de Carol Reed é o ideal platónico do noir.

Nunca nenhum filme ilustrou de modo tão imediato o choque deixado pelos horrores da 2ª Guerra Mundial na psique generalizada da população ocidental. De certo modo, é como se nada no mundo de “O Terceiro Homem” tenha valor ou faça sentido. Razão humana é uma ilusão há muito desacreditada e a compaixão um mito agradável que nunca efetivamente existiu. Essa certamente é a perspetiva de Harry Lime, um homem sem possibilidade de algum dia redimir os seus numerosos crimes a quem Orson Welles dá vida, palpável malevolência e, acima de tudo, muito charme e carisma.

Esse é talvez o elemento mais perturbador desta desventura vienense. Referimo-nos ao modo como o mal, por muito pestilento e destruidor que seja, é inegavelmente sedutor, como que num constante jogo em que nos desafia a resistir ao seu apelo mefistofélico. Até a cidade arruinada por bombas e suas sombras cortantes são belas. Enquanto espectadores entendemos os horrores subjacentes à sua existência, mas não conseguimos evitar ficarmos maravilhados, Nessa fraqueza face ao apelo do mal, o filme, como todos os bons noir, leva-nos a reconhecer uma verdade incrivelmente dolorosa, que é o facto de que só conseguimos realmente reconhecer a podridão humana destes filmes porque dentro de nós também vivem tais demónios.


02. VIRIDIANA (1961) de Luis Buñuel

Viridiana cannes palme dor
Cristo é um vagabundo e a ditadura é uma piada mal contada.

Há cineastas corajosos e depois há Luis Buñuel, um homem tão ousado que, depois de anos de exílio no México, voltou à Espanha de Franco e rodou lá “Viridiana”, talvez a mais cáustica sátira política e religiosa alguma vez feita. O filme, cuja falta de nuance e gritantes usos de simbolismo católico são mais valias e não defeitos, é algo próximo de uma ponderação sobre a absurdez que é a vida sob poder ditatorial. É claro que, se há algo verdadeiramente absurdo e odioso, é um ditador apoiado pela aristocracia e pela igreja católica e suas putativas palavras de igualdade e compaixão que, na verdade, pouco ou nada significam.

Nem mesmo os mais provocadores enfant terribles da Nouvelle Vague poderiam sequer conceber o modo como Buñuel cospe na cara da burguesia espanhola, basicamente acusando todos aqueles que de alguma forma beneficiam do regime de Franco de serem seus cúmplices. Até algo tão aparentemente benéfico como o gesto caridoso por parte de uma pessoa privilegiada é olhado com escárnio por Buñuel, que disseca as motivações por detrás de tal atitude e nas suas entranhas desenterra a vacuidade da compaixão católica e suas inúmeras hipocrisias.

Enfim, é raro o objeto de cinema político com a eletrizante fúria que trespassa todos os minutos de “Viridiana” onde, só mesmo para espicaçar a igreja e destabilizar os espectadores espanhóis, Buñuel inclui uma série de imagens e cenas cujo único propósito parece ser o seu poder de choque. O assédio sexual de uma freira por parte de um aristocrata seu tio é um desses momentos, mas nada se compara, especialmente em termos de humor, à longa sequência onde a Última Ceia de Cristo é reinventada sob a forma de um banquete de sem abrigos que invadem a casa de uma família rica.


01. O PIANO (1993) de Jane Campion

O Piano cannes palme dor
O tipo de obra-prima que justifica a existência de toda a sua arte.

Até à data da publicação deste artigo, Jane Campion é a única realizadora a ter ganho uma Palme d’Or na secção competitiva de longas-metragens do Festival de Cannes. Não queremos com isto dizer que “O Piano” está no topo desta lista por ter sido realizado por uma mulher, mas sim que esse facto nunca foi nem nunca será impeditivo da criação de uma obra cinematográfica de primeira categoria. Infelizmente, a falta de outras vencedoras e a usual razia de filmes realizados por mulheres em Cannes mostra que os júris e membros da direção do festival podem ter outras opiniões. Em comparação, tanto os festivais de Berlim como de Veneza já tiveram múltiplas cineastas a ganharem os seus prémios principais.

Ignorando tais infelicidades e injustiças, foquemo-nos então naquele que é o melhor filme de sempre a ganhar a Palme d’Or, a obra mestra de Jane Campion “O Piano”. Trata-se de um filme em que os temas e técnicas que Campion desenvolveu e continua a desenvolver na sua carreira se encontrem em perfeita apoteose e síntese, explorando a psique de uma mulher que conhecemos, não através daquilo que o texto nos diz sobre ela, mas sim através dos vazios que a realizadora salienta na sua mise-en-scène. Este tipo de construção narrativa através do gesto negativo é uma especialidade da cineasta. Também típico do cinema de Campion é o gosto por viscerais imagens de grande valor tátil, sons expressivos e prestações psicologicamente aguçadas que nos levam a mergulhar nas realidades conjuradas pela realizadora. Realidades essas que são quase palpáveis, mas nunca totalmente realistas, vibrando com a possibilidade cinematográfica de uma estética completamente motivada pela psicologia das personagens em cena.

Ousado e destemido, este é um filme que lida com temas e ideias raramente vistos no cinema e cuja concretização formal pode ser descrita por palavras, mas merece ser experienciada por espectadores. Aliás, se existe uma justificação para a maravilha que é a existência do cinema, então são filmes tão perfeitos e inspiradores como “O Piano”, obras que nos mudam o modo de ver a nossa própria vida, o mundo que nos rodeia e aquilo que entendemos sobre a nossa própria condição enquanto humanos. É esse o poder do cinema, é esse o poder de “O Piano” pelo que, para terminar esta longa viagem através de alguns dos maiores feitos da sétima arte, resta-nos dizer: Viva “O Piano”! Viva Jane Campion! Viva o cinema!

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Se apreciaste esta odisseia cinematográfica pela história da Palme d’Or e seus muitos vencedores, não percas as nossas coberturas do Festival de Cannes deste e outros anos, ou muitas das nossas outras listas e tops sobre cinema.

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