"De Olhos Bem Fechados" | © Warner Bros.

Cinema Natalício | De Olhos Bem Fechados (1999)

Há um certo tipo de cinéfilo que, quando questionado sobre seus filmes de Natal preferidos, tende a mencionar títulos pouco comuns que, normalmente, nunca seriam associados a um espírito festivo. “De Olhos Bem Fechados,” também conhecido como “Eyes Wide Shut,” é obra popular entre esses amantes da sétima arte. O último filme de Stanley Kubrick, com Tom Cruise e Nicole Kidman nos papéis principais, foi um fracasso crítico aquando da sua estreia em 1999, mas tem ganho melhor reputação com o passar do tempo. Hoje em dia, é por muitos considerado como um dos melhores filmes desse mestre sem igual.

Em 7 de Março de 1999, Stanley Kubrick morreu. Já contavam doze anos desde “Nascido para Matar” e, desde então, o cineasta americano emigrado em Inglaterra não havia estreado mais nenhum filme. Acontece que, como todo o mundo bem sabia, ele encontrava-se na pós-produção de um novo projeto, algo misterioso e que muita tinta fez correr nos tabloides. “De Olhos Bem Fechados” estava há eternidades em rodagem, envolvendo duas das estrelas mais mediáticas de então – Tom Cruise e Nicole Kidman, então casados e participando no último projeto conjunto antes do divórcio. Já o filme se encontrava em fases finais de concretização, faltando somente a sonoplastia, a música e quiçá alguns cortes aqui e ali.

de olhos bem fechados cinema natalicio eyes wide shut
© Warner Bros.

A Warner Bros. insiste até hoje que o filme foi finalizado por Kubrick, que a montagem mostrada ao público havia sido já apresentada aos estúdios antes da trágica morte do seu autor. Contudo, quando consideramos quanto o realizador gostava de alterar o seu trabalho até depois dos filmes terem estreado, é fácil encarar “De Olhos Bem Fechados” como um monumento por terminar. Quiçá, no fim de tudo, essa característica seja mais qualidade que defeito. Adaptado do romance “Traumnovelle” de Arthur Schnitzler, este drama desenrolado em época festiva é extremamente estranho no que se refere aos seus ritmos e tonalidades. Desequilíbrios que fogem ao rigor Kubrickiano só servem para salientar essa bizarria – uma mais valia.

Testemunhar a história fraturada da fita é como experienciar um sonho meio-lúcido, a realidade distorcida por forças invisíveis até que tudo se sente fora do normal. É um conto perdido algures entre a fantasia e o assombro, tendo transposto a narrativa da Viena dos anos 20 para uma Nova Iorque contemporânea que em nada se parece com a Grande Maçã que o mundo conhece. As ruas são todas falseadas, por vezes através de projeção à la Hitchcock, e até as paisagens vislumbradas através de janelas trespassam artifício. Filmado em estúdios fechados do outro lado do Atlântico, “De Olhos Bem Fechados” situa-se num cenário aos limiares do real.

Um dos elementos mais marcantes é certamente a fotografia, assinada por Larry Smith no seu primeiro trabalho creditado enquanto algo mais que um gaffer ou cameraman. Kubrick queria filmar tudo com luz presente nos cenários a não ser em cenas onde a luz da lua ganha proporções épicas. Nada disso implica que os cineastas estivessem em busca do naturalismo. Muito pelo contrário, “De Olhos Bem Fechados” parece brilhar com energias contranatura, luzes de Natal espalhadas por toda a cidade como fadas embalsamadas numa paródia de alegria invernal. Pela calada da noite, interiores são pintados por azulões violentos, enquanto a imaginação sórdida se materializa em flashadas na escuridão. Não há outro título na História do Cinema que se assemelhe a este, suas imagens transmitindo tanto deslumbramento como inquietação.

Lê Também:   TOP Interpretações Nicole Kidman | 5. De Olhos Bem Fechados

Também sugerem uma certa teatralidade Vienense, qualidade classicista que faz lembrar o cinema de Ernst Lubitsch se os tenores sexuais dessas obras passadas fossem feitos explícitos e clínicos em gesto simultâneo. Também os atores seguem essa diretriz, se bem que, para melhor os entender, convém esclarecer o enredo em questão. “De Olhos Bem Fechados” segue Bill Harford, um médico com ambições sociais acima da sua estação que, certa noite, faz como a Alice e segue um trilho até ao País das Maravilhas. Só que sua desventura não começa com um coelho branco, mas com uma mulher em aparente overdose. Bill salva essa estranha sem nome durante uma festa de Natal cujo anfitrião é seu cliente.

O fulgor de perversidade parece inebriar o doutor e sua esposa, Alice, que, enquanto o marido tratava de emergências ilícitas, se deixava seduzir por um homem Húngaro de ares aristocratas. Não acontece nada, mas a tentação está lá e fica a fermentar na imaginação feminina. Na noite seguinte, o sentimento reprimido vem ao de cima graças ao estímulo da marijuana, acabando com os Harford discutindo seus desejos extraconjugais. Bill pensa que as mulheres têm natural tendência para a fidelidade, mas Alice contradiz as suposições ao partilhar uma memória tão orgástica quanto carregada de culpa, talvez até o sabor amargo da oportunidade perdida. Ela fala de umas férias em Cape Cod e das fantasias despertas por um marinheiro atraente.

Naquele momento, Alice sentiu a vontade de deixar Bill e a filha, render-se ao prazer e à folia. A revelação parece quebrar algo no homem, como se ele nunca antes tivesse sequer concetualizado a vida interior da mulher com quem partilha a vida. Antes que possam falar mais sobre isso, contudo, ele é chamado para confirmar a morte de um paciente. Essa viagem vai levar a uma série de outros eventos, terminando a noite numa orgia das elites mascaradas onde um ritual interrompido pode significar outra morte. Acabada a noite turbulenta, ele volta a percorrer os mesmos passos à luz do dia e é como se a sua realidade se tivesse estilhaçado, ora numa alucinação de ansiedades masculinas ou algo mais profundo ainda.

cinema natalicio de olhos bem fechados eyes wide shut
© Warner Bros.

Tom Cruise é espetacular na sua vacuidade, interpretando Bill como uma série de poses e significantes que nada significam. Há algo patético na sua figura, mas também se sente um cheiro a comentário social, quiçá o sabor do absurdismo virado retrato de não-personagem. Nicole Kidman é Alice e aqui desvenda uma das suas mais estrondosas interpretações, apelando a uma alquimia quimérica por onde a estilização lacera, mas também revela uma crueza carnal que eletriza o ecrã e sequestra os olhos do espetador. Os restantes atores são igualmente exímios, encontrando, pela mão de Kubrick, o exato ponto em que a vida se desfaz em irrealidade.

Dito isso, há algo de esperançoso no trauma e na luxúria aqui convocados. Kubrick não tinha gosto ao final feliz, mas “De Olhos Bem Fechados” quase contraria essa noção, servindo como uma espécie de instrução carnavalesca para o protagonista. Através dos paralelos entre noite e dia, do terror matrimonial e sexo sem resolução, é como se Bill fosse sendo elucidado sobre a interioridade dos outros. Trata-se de um filme essencialmente misterioso onde a capacidade para reconhecer o mistério contido dentro de cada um se afigura uma espécie de moral sem moralidade. Talvez por isso a reputação natalícia também tenha perdurado. No contexto de uma filmografia que também inclui “The Shining” e “Laranja Mecânica,” há algo de caloroso, até um pouco festivo, neste sublime sonho.

“De Olhos Bem Fechados” está disponível na HBO Max. O filme também pode ser alugado ou comprado através do Apple iTunes, Google Play, Youtube, e Rakuten TV.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *