Climax critica

Clímax, em análise

Clímax” é a mais recente provocação cinematográfica de Gaspar Noé, assim como a nova aposta da Cinema Bold, que distribui agora o filme nos cinemas portugueses antes de o lançar em DVD e na Filmin uma semana depois.

Gaspar Noé pertence a uma infeliz elite de cineastas contemporâneos cujos filmes são caracterizados pela provocação vácua e fútil. Referimo-nos a nomes como Larry Clark, Harmony Korine e Lars von Trier, realizadores que dedicam a sua arte a tentar chocar as audiências burguesas cuja adoração cega lhes permite continuar a trabalhar. Por detrás do seu desejo por provocar e boas quantidades de virtuosismo formal, os filmes destes autores raramente têm algo de substancial, excitante ou novo a oferecer ao espectador, tendo no seu centro concetual um absoluto vazio. Pior ainda é o modo como estes artistas se assumem como grandes transgressores da moralidade hegemónica, mas, no seu uso de choque fácil, acabam por construir narrativas reacionárias e conservadoras.

Enfim, tudo isto para dizer que, no contexto da carreira recente de Gaspar Noé, “Clímax” representa uma necessária brisa de ar fresco, especialmente depois do aborrecimento antissexual de “Love”. Aqui, Noé regressa a muitos dos seus estilos e temáticas do costume, representando uma juventude hedonista em situação de rutura e caos. O pano de fundo é um colégio algures no meio das árvores e da neve, na França de 1996, onde se encontra a ensaiar uma trupe de dança composta por bailarinos de vários grupos marginalizados da sociedade gálica. Unidos pela comunhão artística, estes jovens acabam de finalizar seus ensaios e decidem divertir-se com uma festa adocicada pela sangria que a chefe da companhia trouxe para as celebrações juntamente com seu filho pequeno que não tinha onde ficar.

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Uma espiral psicotrópica fora de controlo e sem limites.

Mal são feitas as primeiras libações, os bailarinos em festa começam a aperceber-se de que algo estranho está a ocorrer. Alguém pôs drogas na sangria e toda a gente, com exceção de um dançarino islâmico que não bebe álcool, está a sentir os efeitos psicotrópicos, desde a euforia sexual à paranóia destrutiva. Nem a criança se safa e, ao longo da noite, um idílio de criatividade torna-se num inferno de carnificina e horror. Mulheres grávidas são espancadas, sexo incestuoso acontece em público, uma bailarina pega fogo ao cabelo, uma mãe enlouquecida encarcera o filho, alguém é eletrocutado, preconceitos latentes explodem e até há quem morra na rua, condenado à crueldade do inverno por uma porta fechada e um grupo de colegas irados.

Ao longo de tudo isto, a música nunca cessa e a festa recusa terminar, mesmo nos antípodas da loucura. Também a câmara de Noé sob o controlo do genial Benoît Debie parece enlouquecer, imergindo o espectador na aniquilação de ordem que caracteriza o arco narrativo. Primeiro, a coreografia cuidada é filmada num plano contínuo de mais de dez minutos, onde cada gesto, cada movimento flutuante trespassa o virtuosismo de um mestre formalista. Contudo, chegado o píncaro do horror, o próprio operador de câmara adivinha estar sob o efeito das drogas e a imagem salta descontrolada pelo espaço e a certa altura até o mundo se vira de pernas para o ar.

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Tudo isto sugere mais um exercício em niilismo cinematográfico com imagens fabulosas ao estilo da oeuvre passada de Noé. Contudo, “Clímax” é uma espécie diferente de animal cinematográfico pois, talvez pela primeira vez na sua carreira, Gaspar Noé parece gostar das personagens do seu filme. Veja-se, por exemplo, como o realizador constrói empatia entre o espectador e as vítimas do horror usando uma estrutura descompensada que se inicia com os créditos finais e uma série de audições filmadas dos bailarinos antes de abrir lugar à história principal. Assim, mesmo antes de os vermos dançar, enquanto audiência, já estamos familiarizados com os intérpretes, suas particularidades, angústias e relações. Estas não são meras marionetas de carne num espetáculo de sangue. São pessoas cuja arte e talento Noé admira.

O realizador, que raramente dá importância ao trabalho de ator, cede inteiras passagens do filme às improvisações do elenco e constrói algumas das sequências mais empolgantes em volta dos movimentos corporais. É o ser humano que rege o olhar do filme e não a omnipresença condescendente de um cineasta a olhar com asco para o degredo da juventude. De facto, apesar de “Clímax” representar o mesmo tipo de filosofia desesperante dos outros filmes de Noé, onde a interação humana é nada mais que abuso e caminho para a violência primordial, aqui essa conclusão é encarada com o peso de uma tragédia e não com ironia ou superioridade intelectual.

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Talvez o melhor filme de Gaspar Noé?

A harmonia interseccional dos bailarinos no início do filme não é um sintoma de uma sociedade podre. Na verdade, é um ideal corrompido por essa mesma podridão. Como sempre, há alguns problemas representativos bem fortes na visão social de Noé, mas “Clímax” não vê a tentativa de harmonia humana como uma futilidade. Essa harmonia caracterizada pela dança do início é algo belo e precioso que o mal humano torna insustentável. De certa forma, este é o filme mais político na obra recente do cineasta, sendo que toda a descida aos infernos primitivos acontece sob a alçada de uma gigantesca bandeira de França. O sonho multicultural é de valor, não há dúvida. Contudo, trata-se de um sonho inalcançável na sociedade dos franceses, por muito progressivos que todos gostem de se parecer.

Tal ideia dá uma âncora concetual ao projeto e torna “Clímax” numa experiência em horror que transcende a visceralidade imediata da violência física e se enraíza na psique, refletindo algumas facetas horrendas que gostamos de ignorar sobre nós mesmos e o mundo em que habitamos. Verdade seja dita, Noé continua a ser Noé e, pelo caminho, algumas das suas escolhas revelam a infantilidade irritante que o fez famoso. Veja-se, por exemplo, o uso de frases sonantes no ecrã que podiam ter saído do Facebook de um adolescente misantrópico que há pouco descobriu as maravilhas da filosofia. “Clímax” não é perfeito, mas funciona como um pesadelo cinematográfico, capaz de hipnotizar os sentidos com cores fortes, movimentos baléticos e uma das melhores bandas-sonoras do ano. Face a tais qualidades, só temos mesmo de brindar a Gaspar Noé com um copo bem cheio de sangria. Drogas à parte, por favor.

Clímax, em análise
Climax

Movie title: Climax

Date published: 7 de February de 2019

Director(s): Gaspar Noé

Actor(s): Sofia Boutella, Romain Guillermic, Shouheila Yacoub, Kiddy Smile, Claude-Emmanuelle Gajan-Maull, Giselle Palmer, Taylor Kastle, Thea Carla Schott, Sharleen Temple, Lea Vlamos, Alaia Alsafir, Kendall Mugler, Lakdhar Dridi, Adrien Sissoko, Mamadou Bathily, Alou Sidibé, Ashley Biscette, Mounia Nassangar, Tiphanie Au, Sarah Belala, Alexandre Moreau, Naab, Strauss Serpent, Vince Galliot Cumant

  • Cláudio Alves - 80
  • José Vieira Mendes - 60
  • Daniel Rodrigues - 35
58

CONCLUSÃO:

Gaspar Noé surpreende e provoca com sua mais recente experiência em cinema do choque. “Clímax” é uma colorida descida ao inferno de uma festa de bailarinos sob o efeito de drogas misteriosas, onde a beleza dos corpos em movimento depressa dá lugar ao horror do mundo despido de ordem, moralidade e razão.

O MELHOR: O momento em que Sofia Boutella se contorce pelo chão, como que homenageando a glória de Isabelle Adjani em “Possessão”, e a câmara perde o juízo e decide dar umas quantas cambalhotas em conjunto com a atriz.

O PIOR: As provocações mais fáceis e inconsequentes do filme, como as mensagens que proclamam a maravilha da morte e a impossibilidade da vida. Um realizador com tal sofisticação audiovisual devia tentar ter seu discurso concetual ao mesmo nível.

CA

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  1. Frederico Daniel 12 de Fevereiro de 2019

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