Contos do Esquecimento – Análise
“Contos do Esquecimento”, o novo documentário de Dulce Fernandes (“Cartas de Angola”) quer estreou esta semana nas salas, escava os silêncios da História portuguesa com a ajuda de esqueletos esquecidos e memórias enterradas na cidade de Lagos no Algarve. Antes, na mesma sessão a angolana Pocas Pascoal (“Sopro”) com a curta metragem “Time to Change”, dá-nos um certeiro murro no estômago.
Há filmes que nos entretêm, outros que nos desafiam. E depois há os que nos obrigam a olhar para o que preferíamos esquecer. “Contos do Esquecimento”, de Dulce Fernandes, uma cineasta portuguesa, nascida em Angola e residente entre Nova Iorque e Lisboa, pertence descaradamente ao último grupo e ainda bem. Resta saber é até que ponto este desafio será aceite pelos espectadores comuns de cinema, já que é o tipo de filme que se enquadra mais em sessões especiais, mostras, festivais e cineclubes, depois da sua estreia no IndieLisboa.
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Imagens e sons do presente. ©ParisTexas/Divulgaçao
A História debaixo do betão
“Contos do Esquecimento” parte de um achado macabro mas revelador: 158 esqueletos de africanos escravizados foram descobertos em 2009 durante as escavações para um parque de estacionamento em Lagos. Um detalhe quase absurdo, não fosse ele trágico , isto é a História portuguesa enterrada, literalmente, debaixo do betão.
A partir daí, o filme torna-se um exercício meticuloso desta escavação simbólica, misturando imagens de arquivo, filmagens atuais e uma envolvente paisagem sonora, para reconstruir uma narrativa que a historiografia oficial teima em varrer para debaixo do tapete.
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As escavações para o parque de estacionamento subterrâneo. ©ParisTexas/Divulgação
O peso de séculos de colonialismo
Dulce Fernandes, que nasceu em Angola durante o período colonial e é filha de colonos portugueses, posiciona-se claramente como alguém que não só olha para o passado com dor, mas também com responsabilidade.
“Contos do Esquecimento” é, nesse sentido, tanto uma obra de memória como um gesto político. E ainda que o formato documental possa parecer austero para alguns, é precisamente essa sobriedade que lhe dá força e não há aqui espaço para dramatismos vazios. Há factos, silêncios e ossadas. E há o peso de séculos que nos interpelam e indignam.
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As imagens do passado remoto misturam-se. ©ParisTexas/Divulgação
Um murro no estômago
Antes de “Contos do Esquecimento”, nas salas de cinema, é também exibida a curta “Time to Change”, da angolana Pocas Pascoal, seis minutos certeiros que atravessam colonialismo, capitalismo e o colapso ecológico sem pedir licença. Com um ritmo quase hipnótico, a curta constrói uma espécie de manifesto audiovisual que funciona como prólogo ideal para o documentário maior: quem manda, quem lucra e quem morre continuam a ser quase sempre os mesmos.
Seja como for, depois de ver estes filmes, ninguém poderá dizer que não sabia. A História não desaparece, apenas muda de esconderijo. E o cinema, felizmente, continua a desenterrá-la.
JVM
Contos do Esquecimento — Análise | Quando o passado enterrado regressa ao ecrã
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José Vieira Mendes - 75
Conclusão:
Ver “Contos do Esquecimento” não é de todo uma experiência leve. Mas é necessária. Num país que ainda se esquiva a reconhecer de forma clara o peso do seu passado colonial, este documentário chega no momento oportuno como um murro educado, mas firme, no estômago. Já a curta “Time to Change” funciona como aquele aperitivo ácido que nos prepara o paladar para o que vem a seguir: desconforto, mas também consciência. E alguma esperança.
Overall
75User Review
( votes)Pros
O melhor: A forma como o documentário liga o passado ao presente sem recorrer a didatismos ou sentimentalismos baratos. A coragem política e pessoal da realizadora em enfrentar a História de frente. A curta de Pocas Pascoal, breve mas certeira, que deixa marca.
Cons
O pior: Poderá ser acusado de ser demasiado formal ou contemplativo por quem espera um documentário mais “explicadinho” e convencional. A duração reduzida de “Time to Change” deixa-nos com vontade de ver mais da realizadora angolana.