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Manas – Análise

Numa aldeia ribeirinha da Amazónia, uma menina de 13 anos descobre que o verdadeiro perigo mora dentro de casa. “Manas”, da brasileira Marianna Brennand, é um filme duro, íntimo e corajoso sobre o abuso sexual no seio da família. Um retrato devastador de silêncio, resistência e sobrevivência.

Há filmes que doem. E há outros que, para além da dor, nos deixam com vergonha como seres humanos, não por aquilo que mostram, mas por aquilo que toleramos, normalizamos ou preferimos não ver. “Manas”, a estreia ficcional da brasileira Marianna Brennand, — uma co-produção da Fado Filmes de Luis Galvão Teles — é um desses filmes. Depois de uma carreira de documentários, Brennand entra na ficção como quem entra numa casa em chamas: sem medo, mas com respeito por quem lá ardeu. E foi premiada na secção paralela da 21º Giornate degli Autori do Festival de Veneza 2024 (Prémio de Melhor Realização).

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Manas
Um filme sobre a coragem e esperança de Tielle. ©Outsider/Divulgação

Uma família aparentemente normal

O cenário é a ilha do Marajó, no norte do Brasil, onde a selva se mistura com os rios e a miséria com o silêncio. A protagonista, Tielle (notável estreia de Jamilli Correa), tem 13 anos e vive numa palafita com a família: mãe, pai, irmãos e novelas na televisão, vistas através do computador. A infância parece intacta,  até que a sua rede é rasgada e o pai a convida a partilhar a cama. A partir daí, o horror entra de mansinho. Como quem já cá mora há muito.

Sem um filme para adultos emocional

“Manas” não mostra o abuso. E ainda bem. O que nos dói não é o que vemos é o que pressentimos desde o início do filme. Cada gesto, cada silêncio, cada plano fixo é um soco contido. A realizadora evita criar um filme para adultos emocional e aposta na sugestão, num realismo quase documental que deixa espaço para a empatia sem cair no choque gratuito. O que se passa entre pai e filha não precisa de ser filmado: está inscrito no corpo dela. Nos olhos. No modo como aprende a sobreviver oferecendo o corpo em troca de uns trocos ou de um favor.

Manas
Dira Pais faz da polícia impotente perante os factos. ©Outsider/Divulgação

Um filme sobre mulheres

E no meio deste inferno, há irmandade. “Manas”, como o próprio título indica, é também um filme sobre as mulheres que tentam proteger-se, nem sempre com sucesso, mas sempre com amor. A irmã mais velha que fugiu. A amiga que normalizou a violência. A mãe que não sabe como parar o ciclo. E uma polícia, Aretha (Dira Paes), que observa tudo com desconfiança e compaixão, mas esbarra nas paredes invisíveis da impunidade.

A denúncia que o filme faz é brutal, mas não é panfletária. Marianna Brennand passou anos a recolher testemunhos de vítimas reais. E sente-se isso. Sente-se que ali ninguém fala por falar. Cada cena é atravessada por uma verdade que não se aprende em manuais de argumento. Há um respeito profundo por quem viveu na pele aquilo que nós apenas conseguimos imaginar e mesmo isso custa.

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Esperança e a coragem de Tielle

E sim, o filme é duro. Mas não é miserabilista. Há beleza nas imagens, há cuidado na realização, há esperança na coragem de Tielle. O que começa como um quotidiano aparentemente sereno e vai-se transformando numa viagem de perda da inocência e, aos poucos, numa tentativa de libertação. Porque onde a justiça não chega, talvez chegue a força de uma adolescente com mais medo de viver calada do que de enfrentar o mundo.

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Manas
“Manas” é sobre a cumplicidade entre mulheres. ©Outsider/Divulgação

A verdade escondida

“Manas” devia ser exibido em todas as escolas. Devia passar na televisão em horário nobre. Devia ser falado em voz alta. Não só porque é bom cinema — é — mas porque revela uma ferida que continua a ser escondida debaixo do tapete da ‘tradição’ e da ‘fé’, neste caso no Brasil imenso, mas também de uma forma silenciosa, mais transversal e social em todo o mundo. É um murro no estômago, sim. Mas é também um abraço às vítimas que ainda não conseguiram gritar. E, às vezes, é disso que o cinema precisa: menos efeitos especiais, mais coragem.

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JVM

Manas — Análise
  • José Vieira Mendes - 80

Comclusão:

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“Manas” é uma ferida aberta em forma de filme. Não se vê com leveza nem se esquece com facilidade. A brasileira Marianna Brennand não escolheu o caminho mais fácil, escolheu o mais necessário. Falou do que muitos escondem, mostrou sem mostrar, e filmou o indizível com uma rara combinação de sensibilidade, raiva contida e amor por aquelas que sobreviveram. Mais do que um retrato de abuso, este é um filme sobre resistência. Sobre o silêncio que mata e a coragem que liberta. Sobre a família como abrigo e como armadilha. E sobre o cinema como ferramenta de escuta, denúncia e empatia. É uma obra brava e urgente, que não fecha a ferida, mas pelo menos impede que continuemos a fingir que ela não existe.

Overall
80
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Pros

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O Melhor: A interpretação crua e comovente da jovem Jamilli Correa (Tielle), absolutamente devastadora. A realização contida e ética de Marianna Brennand, que evita o voyeurismo e o trauma porn. O argumento emocionalmente honesto, que se recusa a simplificar a complexidade do abuso dentro da família. A construção do espaço ribeirinho como um personagem vivo: belo, isolado e cúmplice.

 

Cons

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O Pior: Algumas transições narrativas podem parecer abruptas ou sub-exploradas, como se certas personagens ou conflitos secundários ficassem pela metade. A ausência de um desenvolvimento mais profundo da figura da mãe, que acaba por oscilar entre a passividade e a ausência sem grande resolução. O impacto emocional do filme pode ser demasiado avassalador para certos públicos,  o que, embora não seja um defeito, pode limitar a sua difusão.


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