Debaixo da Pele, em análise
A tese epistemológica defendida pelo filósofo inglês John Locke conduziu-o a uma metáfora que sintetiza a experiência aterradora de assistir à primeira obra de Jonathan Glazer em quase uma década: a metáfora da tabula rasa. Essa analogia empirista estabelecia a ideia de que a mente humana era semelhante a uma folha de papel em branco, inteiramente desprovida de conhecimento inato. Locke argumentava que o conhecimento humano era adquirido através das suas experiências sensoriais, e assim também o parece demonstrar Glazer.
Embora Jonathan Glazer não se defina inequivocamente como seguidor de qualquer doutrina filosófica, é de natureza elementar concluir que o empirismo domina este seu exercício de bizarria.
Adaptando a obra literária de Michel Faber, Glazer convida o espectador a juntar-se a uma abstrata jornada de um ser alienígena (hipnotizante Scarlett Johanson) que caça as suas solitárias presas masculinas nas ruas escocesas.
A viagem perpetrada pela protagonista de “Debaixo da Pele” é efetuada no mesmo trilho da viagem sensitiva (quase alucinogénica) levada a cabo na mente do espectador. Ambos partem da inocuidade do vazio (a tabula rasa) mas a experiência gera conhecimento. Se para a protagonista a inevitável autodescoberta é a charneira desse conhecimento, para o espectador a natureza é distinta: é a consciência de que perante os nossos olhos se desabrocha um clássico instantâneo.
“Debaixo da Pele” é um OVNI sobre aliens e homens. Um objeto aterrorizador sobre a condição humana que joga com os princípios ontológicos do ser e goza de uma perspetiva quase poética sobre a proficuidade da beleza e o conceito de causa-efeito.
Somos conduzidos para uma mescla heterogénea de imagens hipnóticas e sons trémulos e excitantes (a evocar o cinema do mestre Hitchcock), que embebem Scarlett Johanson numa fita enigmática e tremendamente bela que ultrapassa por diversas vezes o limite da nossa compreensão. Por tudo isto, o filme de Glazer torna-se numa obra de árdua dissecação: as palavras jamais farão jus à surreal experiência visual (o que dizer daquela perturbadora cena de abertura?).
Quanto a Scarlett Johanson, e para destacar na devida justiça o seu trabalho, importa falar da simbiose desta sua personagem com a Samantha em “Her”, de Spike Jonze. Ambas as personagens não gozam de denotativo humanismo, mas têm a capacidade de se autodescobrir na diferença. O que há de fascinante nestas duas últimas aparições de Johanson no grande ecrã é que, para além de serem composições irrepreensíveis, são também complementares. Se em “Her”, o seu poder vocal era o instrumento dominante, aqui a linguagem corporal impera de tal forma que quase tudo é contado sem recurso aos diálogos. Johanson é surpreendentemente avassaladora, como um poderoso íman capaz de criar o mais denso campo magnético no seu redor.
O que torna os bailados eróticos de Scarlett Johanson verdadeiramente estimulantes é a áspera sonoplastia criada por Mica Levi, capaz de levar o espectador ao transe instantâneo quando concomitante com os momentos mais inspirados da estilizada fotografia.
Jonathan Glazer bebe dos silêncios e fotogramas do cinema de Kubrick e de alguma aura mais psicadélica de Cronenberg para dirigir de forma excecional a sua atmosfera intensa, repleta de metáforas impenetráveis sobre a vida e os seres que habitam este prosaico mundo.
No entanto, “Debaixo da Pele” não é um filme ao alcance de todos os públicos. Está fundamentalmente direcionado para todos aqueles que estão dispostos a exercitar as suas sinapses e que vivem apaixonados por fenómenos de culto e clássicos de ficção-científica. Quiçá seja este o seu único defeito: a incapacidade de ser discutido por todos, tal como merece e precisa de o ser.
O que é certo é que há vida antes e depois de “Debaixo da Pele”. E ela é demasiado curta para se permanecer na fase de tabula rasa.
DR
Título Original: Under the Skin Realizador: Jonathan Glazer Elenco: Scarlett Johansson, Jeremy McWilliams, Lynsey Taylor Mackay Género: Drama, Sci-fi, Thriller ZON | 2013 | 108 min [starreviewmulti id=11 tpl=20 style=’oxygen_gif’ average_stars=’oxygen_gif’] |