Festival de Veneza: A ditadura e o apocalipse brasileiro
A estreia oficial de “Ainda Estou Aqui” de Walter Salles foi um dos grandes momentos desta Veneza 81, com uma longa ovação na sala. Petra Costa apresentou fora da competição “Apocalipse nos Trópicos”, sobre a ascensão e poder das igrejas evangélicas. ‘Manas’, de Marianna Brennand um filme sobre a violência e o abuso sexual das mulheres no interior do Brasil, estreou na secção paralela Giornate degli Autori.
Em “Ainda Estou Aqui”, do realizador Walter Salles, foi a grande estreia na Competição da Veneza 81 e conta a história de uma família amorosa e feliz que passa pelos horrores da ditadura militar do Brasil nos anos 70. Trata-se da primeira longa-metragem de Walter Salles desde “Diários de Uma Viagem” (2012). “Ainda Estou Aqui” é um filme sobre os Paiva, uma família carioca cuja existência é arruinada pela prisão e desaparecimento do seu patriarca. Estamos no início da década de 1970 e esta família de classe média do Rio de Janeiro, os dois pais e cinco filhos, divertem-se muito juntos e vivem à beira-mar.
A ditadura brasileira de “Ainda Estou Aqui”
Porém no Brasil da década de 70, sob o regime militar, qualquer cidadão podia ser considerado uma ameaça e correr o risco de ser detido para interrogatório. Uma simples retrato de família e amigos na praia do Leblon, vai como se tornar um inicio de um pesadelo que durou décadas e que marcou todos os seus membros até aos dias de hoje.
Quando era criança Salles conheceu os Paiva e, por isso, o seu relato filmado é baseado em pessoas reais e factos verídicos, onde naturalmente o realizador introduz um toque de simpatia e sentimentalismo. Porém, “Ainda Estou Aqui” trata-se de um drama sombrio, sincero e convincente sobre os desaparecidos da nação, durante a ditadura militar brasileira.
Uma crónica dos anos de chumbo
Selton Mello assume no inicio o papel central do pai Rubens Paiva, um ex-deputado federal do Partido Trabalhista, que aparentemente largou a política, mas que continua na oposição clandestina, organizando casas seguras para os fugitivos e informando os jornalistas estrangeiros da repressão dos militares. Os seus crimes não são assim tão graves, mas o país funciona com base no medo e repressão e todos são suspeitos. Porém alguns dos opositores e incluindo os Paivas, achavam que essa ‘tempestade iria passar’. Durou cerca de 21 anos.
Violência psicológica
A cena da detenção do pai (e depois da mãe e da filha adolescente) mostra bem como o terror, pode invadir a vida doméstica e a intimidade de uma família, entrando furtivamente com um ar ligeiramente apologético e até de certo modo displicente: as crianças, alheias ao que se está a passar, continuam a subir e a descer as escadas da moradia, como se não fosse nada, enquanto os três capangas, ficam na cozinha e na sala, sem saber ao certo onde se devem colocar e o que fazerem. A única explicação é que Rubens vai ser interrogado apenas durante algumas horas e regressar. Mas isso não aconteceu. Enquanto isso a mulher de Eunice (Fernanda Torres), pergunta aos agentes da repressão até se já almoçaram.
Fernanda Torres uma Mãe Coragem
Depois de Rubens ter sido levado para interrogatório e por lá ficar sem qualquer notícia sobre a sua situação e regresso, é a vez de Eunice (Torres tem um desempenho fantástico) se tornar uma verdadeira Mãe Coragem, esforçando-se por manter a casa a funcionar e lutando constantemente pelo regresso do marido — ou pelo menos pelo reconhecimento oficial do seu desaparecimento e morte, algo também que a família, com grandes dificuldades financeiras, vai ter de enfrentar durante várias décadas. É difícil manter o suspense em torno de uma história de um desaparecimento nestas circunstâncias e difícil também contar uma história que não tem à partida uma resolução decisiva ou terá muito mais tarde, num salto no tempo.
As vantagens da proximidade
Mas a proximidade de Salles aos Paivas acaba por compensar e favorecer o filme, com a beleza tocante que transmite para os personagens. “Ainda Estou Aqui” é também baseado no livro do premiado escritor Marcelo Rubens Paiva (“Feliz Ano Velho”), o único rapaz da família Paiva, uma obra obra que começa por descrever algumas ações de repressão do exército durante a ditadura para depois acompanhar o mal-fadado destino da sua família ao longo dos anos. “Ainda Estou Aqui” teve uma das maiores ovações na sessão oficial de gala na Sala Grande, do Palácio dos Festivais.
O poder dos evangélicos em “Apocalipse nos Trópicos”
Documentarista brasileira Petra Costa (“Democracia em Vertigem”), trouxe o ‘apocalipse’ evangélico a Veneza. No seu novo filme “Apocalipse nos Trópicos”, mostra como um terço dos brasileiros são evangélicos e como esse terremoto religioso, que dura já há algumas décadas — 1974, quando ocorreu a visita do pastor protestante americano Bill Graham, que contou com a aprovação da ditadura militar — tem provocado profundas consequências políticas e sociais em todo o Brasil. De certa forma, este ‘Apocalipse’ é o grande responsável por esse avanço da política populista do país, que levou à eleição de Jair Bolsonaro, como Presidente do Brasil.
O pastor-politico Manafaia
O fim da ditadura militar não significou o declínio do fenómeno evangélico, muito pelo contrário, todos os partidos políticos, incluindo o Partido dos Trabalhadores do actual Presidente Lula da Silva, cortejaram essa parte do eleitorado, muito conservador nos seus dogmas religiosos. Ao longo dos anos, os evangélicos aprenderam a impor suas próprias orientações políticas e fizeram imergir verdadeiros políticos como o pastor Silas Manafaia, talvez o polémico e poderoso protagonista deste documentário.
A benção das cadeiras
Quando Petra Costa filmava “Democracia em Vertigem” assistiu um dia, com surpresa, à bênção das cadeiras no Congresso por um pequeno grupo de fervorosos deputados evangélicos. O que parecia uma excentricidade transformou-se na poderosa Bancada Evangélica encorajada, entre outros, pelo popular Malafaia. Na sombra, esteve vários anos um deputado eleito pelo Rio de Janeiro, muito conservador e na época relativamente desconhecido: Jair Bolsonaro, que muitas vezes falava sem ninguém o ouvir.
Petra Costa consegue chegar à intimidade com alguns desses protagonistas, incluindo Jair Bolsonaro e principalmente com Malafaia, que abre as portas de sua casa e até toma o pequeno almoço com a equipa de filmagens. Petra Costa mistura ainda essas passagens, com arquivos de filmes e imagens das manifestações da extrema-direita, das últimas e disputadas eleições presidenciais que derma vitória a Lula da Silva e sobretudo momentos terríveis de selvajaria e fanatismo politico-religioso que estiveram na base da invasão ao Congresso de Brasília, em janeiro de 2024.
Abuso sexual na familia
Depois de ter realizado documentários sobre figuras e tradições artísticas do Brasil, a jovem realizadora Marianna Brennand estreou-se com a longa-metragem “Manas”, uma co-produção da Fado Filmes de Luis Galvão Teles, na secção paralela da Giornate degli Autori. O filme passa-se numa das aldeias ribeirinhas da floresta amazónica, onde a realizadora conheceu várias mulheres vítimas de traumas indescritíveis ainda crianças e adolescentes. É numa dessas aldeias de palafita, no Marajó, que se passa a história de Marcielle, uma menina de treze anos. À medida que vai crescendo, começa a ver a mãe e as irmãs com outros olhos, até que decide enfrentar o sistema religiosa que decerto modo oprime a família e sobretudo as mulheres da comunidade, além de ficar impune e em silêncio em relação ao abuso e a exploração sexual de meninas como ela, perpetuados dentro das suas casas e no seio da família.
Festival de Veneza, ao vivo
- Almodóvar e Delpero mostram-nos a beleza das pequenas coisas
- Wolfs com Clooney e Pitt, what else?
- O brutal “The Brutalist” de Brady Corbet
- A Competição começa a ser um campo de batalha
- Cate Blanchett e Nicole Kidman trouxeram erotismo
- Em Maria, Angelina Jolie revela os segredos de Callas
- A Leonesa Sigourney Weaver
- Em “Beetlejuice, Beetlejuice”, os fantasmas divertem-se, enquanto os vivos se matam
- Festival de Veneza 2024: O Joker e o Ás de Almodóvar