"Cinzas e Poeiras" | © Sirimiri Films

Curtas Vila do Conde ’23 | As curtas de Estibaliz Urresola Solaguren

A realizadora espanhola Estibaliz Urresola Solaguren abriu a nova edição do Curtas Vila do Conde com a primeira longa-metragem narrativa. Contudo, o tributo do festival à cineasta não ficou por aí. Depois de exibido “20 000 Espécies de Abelhas,” também foi feita sessão com as suas curtas, integradas na secção New Voices.

No cinema de Estibaliz Urresola Solaguren, as histórias de mulheres dominam, quer sejam as perspetivas de meninas, de adolescentes, adultas ou idosas, confrontando os afazeres da vida e seus ciclos. “ADRI” considera o corpo em transição, quando a juventude se precipita para a maturidade física, aqui ilustrados pelo transtorno do primeiro período. Num gesto reminiscente de “Carrie,” o evento traduz-se em picos emocionais no limiar do terror, a câmara em feroz procura pela intimidade cinematográfica. Georgina Amorós, protagonista da fita, suporta o exercício com soberba prestação, mas “ADRI” não se resume só a montra para a atriz.

Lê Também:   73ª Berlinale | 20.000 Especies de Abejas: Em Busca da Identidade

De facto, Urresola Solaguren utiliza os preceitos de um naturalismo observacional para construir o estudo de personagem, imagens tão fortes como qualquer passagem dialogal. Assim descobrimos o cosmos pessoal de Adri, nossa figura titular. Seu corpo é apresentado enquanto máquina musculosa, a natação no centro do dia-a-dia definido pelas ambições paternas. Influência materna não há, tendo a mãe morrido há quatro anos, deixando pai e filha numa espiral viciosa. Assim situados eles tentam desviar-se das verdades dolorosas, contornam a perda, e tentam esquecê-la no fulgor da piscina, como se a torrente de cloro fosse anestesia.

adri curtas vila do conde
“ADRI” | © Freak Independent Film Agency

Só que o sangue aterroriza e desampara, destabilizando as dinâmicas familiares, os equilíbrios interpessoais. O sangue do período e as perguntas que consigo vêm hão de por em evidência o que está em falta – uma mãe a quem pedir conselhos, a quem fazer perguntas e encontrar conforto. Num sopro de quinze minutos, as mágoas de Adri manifestam-se no grande ecrã, forças viscerais capazes de esboçar a narrativa pelos espaços vazios, pelo desenho negativo. Em jeito final, voltamos à água, espuma deixada no encalço das nadadoras, uma conclusão que nada fecha, mas deixa o sentimento a arder no peito.




“ADRI” passou por alguns festivais e até ganhou um prémio especial do Júri em Izmir, na edição de 2014. A curta seguinte foi estreada sete anos depois, mostrada pela primeira vez em Málaga. “Cinzas e Poeiras,” também conhecido como “Polvo Somos,” teve ainda mais sucesso que o trabalho anterior da realizadora. Ganhou uma honra para Melhor Atriz em Espanha e viria a conquistar Prémio do Público em Donosskino. Tais palmarés não surpreendem, tratando-se de uma obra mais ambiciosa que “ADRI,” perdurando o foco na perspetiva feminina e relações de família, disfunções expressas em surdina e o fantasma do luto qual sombra sobre a vida de todos.

curtas vila do condo cinzas e poeiras
“Cinzas e Poeiras” | © Sirimiri Films

Neste caso, trata-se de um patriarca defunto, o avô de Ane cujo fim foi surpresa que apanhou os familiares despercebidos. Encontramos a protagonista longe da tragédia, uma nova vida construída longe dos laços de sangue, na cidade em que a solidão sabe a terno gesto. O telefonema indesejado traz notícias do que sucedeu, despoletando uma odisseia de regresso às origens, o ambiente urbano dando lugar à ruralidade de uma Espanha esquecida. Contudo, questões de comentário social não se sentem lacerantes perante os poderes mais fortes da perda. Junte-se a isso as revelias habituais dos funerais e o palco está pronto para o drama.

De novo, contudo, Estibaliz Urresola Solaguren rejeita o potencial mais melodramático das suas premissas, investigando o modo como silêncios carregados de significado pesam sobre as personagens. A ação abortada vale mais que o movimento completo, os contrastes entre mulheres da mesma família expressando-se nos espaços entre cenas, falas, textos sempre subjacentes à expressão do ator. A premiada Jone Laspiur domina a curta, mas os outros membros do elenco merecem aplausos também. Pensamos em Goize Blanco, as figuras maternas personificadas por Itziar Aizpuru e Klara Badiola, até o cangalheiro suspeito a que Patxi Santamaría dá forma.




Dito tudo isto, há mecanismos em “ADRI” e “Cinzas e Poeiras” que denunciam o artifício da ficção, mantendo sempre a distância entre o espetador e o texto dramatizado. “Cuerdas” ou “Cordas,” a curta mais recente e mais aclamada de Urresola Solaguren, vai além dessas barreiras, chegando a um nível de observação afiada capaz de enganar o olho desatento. Não seria de admirar que alguém julgasse estar a ver um documentário, a narrativa tomando formas conhecidas do cinema vérité numa dimensão Weisemaniana. Também é o filme mais político entre estas três propostas do programa.

Rita será nossa heroína, uma âncora no meio da tempestade, contradições abatendo-se sobre a gente como tufões soprando em direção oposta. Ela é membro de um coro composto por mulheres da comunidade isolada, todas elas com passos já dados além da meia-idade. Quando as encontramos, os fundos da associação foram retirados, o município incapaz de ver valor no seu lavoro. Parece que é o fim, não fosse uma oferta de patrocínio por parte do maior empregador local, uma fábrica que não só controla a população por dependência económica como a envenena com poluição constante. Até se falam das doenças causadas pela fábrica, o corpo e a mente contando histórias distintas.

curtas vila do conde cuerdas
“Cordas” | © Sirimiri Films

Levanta-se aqui uma questão de valores colidindo com o pragmatismo de quem quer sobreviver no mundo capitalista. Muita da fita desdobra-se em conversas de grupo, discussões acesas capturadas com a amorfia de um documentário, a curiosidade irrequieta de um olho jornalístico. Só que também há lirismo à flor da pele, imagens marcantes entre a encenação deliberadamente improvisada. Pensemos no plano austero que fecha a fita, Rita na paragem de autocarro, o fundo desfocado, fábrica imponente feita abstrata em manchas de luz e cor. Simples, quase minimalista, este é um final perfeito e sem mácula, obra de génio.

Lê Também:   A Volta ao Mundo em 80 Filmes

“Cordas” estreou em Cannes e fez carreira no circuito dos festivais, inclusive o Curtas Vila do Conde onde arrecadou o Grande Prémio na competição de narrativas. Ainda foi nomeado para o Goya, representando o maior triunfo de Estibaliz Urresola Solaguren antes da chegada de “20 000 Espécies de Abelhas” à Berlinale. Aí, ganhou o galardão para Melhor Atuação Principal, para a pequena Sofía Oneto e mais um par de troféus reluzentes para a mulher atrás das câmaras. Este é o percurso de uma realizadora em ascensão, um dos grandes nomes no cinema espanhol contemporâneo. Mal podemos esperar para ver o que ela faz a seguir, quer seja curta ou longa-metragem, narrativa ou documentário.

cordas curtas vila do conde
“Cordas” | © Sirimiri Films

Depois deste tributo no Curtas Vila do Conde, o trabalho de Estibaliz Urresola Solaguren chega ao público português em circuito comercial. “20 000 Espécies de Abelhas” tem estreia marcada para 20 de julho, com distribuição assegurada pela Alambique.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *