"A Viagem de Morvern Callar" | © BBC Films

Curtas Vila do Conde 2021 | A Viagem de Morvern Callar

O cinema de Lynne Ramsay continua em destaque no Curtas Vila do Conde 2021. Depois de um programa de curtas e de “Ratcatcher”, primeira longa da escocesa, o festival português exibiu as maravilhas misteriosas de “A Viagem de Morvern Callar”. O filme de 2002 é um poema cinematográfico de perda e desassociação.

Morvern Callar é uma jovem escocesa, na casa dos vinte e com um trabalho aborrecido num supermercado, organizando e reenchendo as prateleiras à medida que os produtos vão vazando. Ela vive com o namorado e, na manhã de Natal, encontra-o morto, seu corpo inerte no chão do apartamento outrora partilhado. Ele suicidou-se, deixando para trás uma nota, um adeus, uma cassete com músicas escolhidas a dedo, presentes por abrir e um romance por si escrito e dedicado à namorada. O filme  “A Viagem de Morvern Callar”, normalmente conhecido pelo simples nome da heroína, confronta o choque da sua personagem titular ao mesmo tempo que nega ao espetador uma visão tradicional do luto.

Ao invés de chorar e se desfazer num pranto de emoção demonstrada, Samantha Morton interpreta Morvern como um exemplo de aparente apatia. No rescaldo da descoberta macabra, a viúva de um namoro juvenil faz a sua vida na mais perfeita das casualidades. De facto, tudo ela faz para manter uma ilusão, quiçá mentindo a si própria, de que tudo está normal. Apesar do morto ter deixado fundos para um funeral, a mulher não parece estar disposta a aceitar a finalidade do cadáver. Ela deita-se ao seu lado e mente a amigos comuns sobre o paradeiro do sujeito. Dizem-se contos inventados sobre uma relação terminada e subsequente emigração.

curtas vila do conde morvern callar critica
© BBC Films

Ao longo de tudo isso, o corpo lá continua caído. Lynne Ramsay condensa quase toda a informação narrativa da segunda longa-metragem nessas cenas iniciais de uma Escócia invernal. Ao invés de tentar explicar o inexplicável, a realizadora força o espetador a mergulhar no estado mental da personagem, evocando o sentimento bruto sem moldar a incoerência humana ao modelo narrativo. Nesse aspeto, o filme quase recorda um romance modernista com a consciência diretamente feita em literatura. De facto, a obra é inspirada num livro de Alan Warner. No entanto, “Morvern Callar” é uma experiência puramente audiovisual, um tratado em como o estilo não é um antónimo da substância, mas sim seu sinónimo.

Tudo o que o texto nos diz sobre a figura central são suas ações, enquanto o formalismo de Ramsay nos mostra tudo o resto que precisamos de saber. Está isso patente nas subtis transfigurações cromáticas com que a fotografia de Alwin H. Küchler sugere uma expressão além do realismo social. Também encontramos o lirismo no som, no modo como a sonoplastia de “Morvern Callar” se rege pela experiência subjetiva da protagonista o invés da materialidade terrena. Por vezes, certos ruídos são abafados pela emoção, enquanto outras ocasiões descobrem um zumbido musical que se abate sobre o espetador como uma catedral implodida.

Lê Também:   Curtas Vila do Conde 2021 | Ratcatcher

Mais do que tudo isso, existe o milagre da montagem. Todos os filmes de Lynne Ramsay são, acima de tudo, joias artísticas que nascem não no plateau, mas na sala de montagem. A reticência é ordem basilar destes filmes, sugerindo um encadeamento de ações onde nós só podemos ter a certeza do impulso inicial e da consequência eventual. A carne do momento é escondida, dilacerada no corte de cinema, na edição divina que mais diz com silêncios do que com palavreado. Nesse sentido, Morvern Callar pode até ser a mais perfeita heroína de Ramsay visto que, tal como os ritmos fílmicos, também ela prefere nada dizer e deixar que as pessoas extraiam significados do vácuo mudo que sua contenção verbal proporciona.

Por outras palavras, Morvern é extremamente calada, especialmente quando consideramos que o filme por si ancorado é um estudo de personagem. Por isso mesmo, a prestação de Morton é algo tão estranho como fascinante, uma tradução comportamental do formalismo de Ramsay. Na mais corriqueira das explicações, Morton é a arma secreta do filme, uma atriz bem expressiva que aqui nos puxa para dentro da introspeção de Morvern Callar. Através do seu trabalho, as escolhas que propulsionam a narrativa não deixam de ser curiosas incógnitas, enquanto também se afiguram como manifestações orgânicas de uma personalidade invulgar.

curtas vila do conde morvern callar
© BBC Films

Observando o modo como Morton é vista pela câmara e a forma com que a objetiva a captura, somos levados ao centro de um coração cinematográfico que bate com fulgor e invenção, bombeando o sangue que é a criatividade sublimada. É um jogo de intuição e empatia, de alienação e entendimento humano. Um espetador pouco generoso pode querer projetar moralismos em “Morvern Callar”. Querer-se-á julgar a a rapariga porque ela escreve seu nome como autora do romance póstumo, porque pegou no dinheiro do funeral e foi numa viagem hedonista a Espanha, levando consigo uma amiga que rapidamente abandona num sopro de egoísmo inocente.

Podemos julgar tudo isso e apelar ao castigo de Morvern Callar, mas nem este filme nem qualquer outro trabalho de Lynne Ramsay se predispõem a aceitar tais reações. Mesmo no cúmulo da desassociação, este é um filme cheio de empatia e simpatia, um portal para o corpo e mente de uma pessoa que, de outra forma, nos seria completamente intransponível. É cinema psicológico que renega a psicologia barata, que explica o ser humano pela via de aceitar que algumas coisas serão para sempre inexplicáveis. No fim, “Morvern Callar” é um conto de alguém a fugir de si próprio, uma corrida contra a realidade que, ao invés de escapismo, invoca sensações mais profundas e complicadas. Do Natal escocês ao vermelho do clube noturno espanhol, este filme é uma das grandes obras-primas do século XXI e nada jamais mudará isso.

“Morvern Callar”, tal como todos as longas-metragens de Lynne Ramsay, estão em exibição no festival Curtas Vila do Conde. Aproveita e descobre a programação completa no site do evento e não percas nenhum artigo da nossa cobertura.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *