"Ratcatcher" | © BBC Films

Curtas Vila do Conde 2021 | Ratcatcher

O cinema de Lynne Ramsay está em destaque no festival Curtas Vila do Conde 2021. Olhando cronologicamente para a sua filmografia, encontramos “Ratcatcher” como a primeira longa-metragem da escocesa. Trata-se de uma estreia sublime.

Há muitas décadas que o cinema britânico brilha no que respeita à dramatização realista das classes trabalhadoras, seu dia-a-dia, sua especificidade, lavores, misérias e amores. Quando chegou a altura de concretizar o seu primeiro filme em forma de longa, Lynne Ramsay seguiu essa mesma tradição. Depois de duas curtas, seu estilo pessoal havia-se apurado num registo realista, mas poético, concreto com um toque de abstração. Os filmes retratavam uma verdade crua, mas sua assemblage vivia na subjetividade absoluta, na reticência da montagem, na estrutura elíptica. É cinema realista que foge à expressão direta, que pretende reproduzir o lirismo dos dias e não somente a materialidade da existência.

“Ratcatcher” assim se assume como um desenvolvimento tardio do realismo britânico, expandindo os horizontes do movimento ao invés de seguir à letra seus preceitos mais tradicionais. Faz isso, apesar de contar uma história situada no passado histórico. Ao invés de apontar a câmara à atualidade da Escócia no fim da década de 90, Ramsay evocou um momento em 1973, quando uma greve dos trabalhadores da recolha de lixo deixa Glasgow em total degredo. Subitamente, uma das comunidades mais pobres da Europa Ocidental vê as condições de vida piorarem ainda mais e as provas da miséria postas à vista de todos. Mais concretamente, a acumulação de lixo provoca um crescimento exponencial no número de ratazanas.

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© BBC Films

Os roedores infiltram-se nas casas onde famílias pobres tentam viver mesmo sem água nos canos. Crianças inocentes e com imaginações férteis fazem dos bichos seus novos animais de estimação tal como fazem das águas estagnadas novos parques para brincar. Neste paradigma, um êxodo tem lugar. Planos urbanísticos querem deitar abaixo esses bairros degradados, causando o progressivo realojamento dos seus habitantes em projetos sociais. Aqueles com mais sorte, rapidamente encontram nova habitação, enquanto os azarados vivem num estado de infinita espera. Eles esperam pela nova vida, pela nova casa, por um raio de esperança dentro da comunidade que vai sendo cada vez mais fragmentada.

Pouco a pouco, esses bairros tornam-se em fantasmas de si mesmos, com lixo nas ruas e edifícios abandonados. Apesar do baixo orçamento, Ramsay ressuscita essas visões da História recente de Glasgow, sugerindo a desolação interna que a miséria urbana exterioriza. O diretor de fotografia Alwin Küchler é o principal aliado da cineasta, focando-se em detalhes como sinédoque do todo. Suas imagens apelam à textura da existência difícil, mas deixam espaço para o sonho, para o significado implícito pelo vazio ou o desequilíbrio composicional. O modo como este duo filma o protagonista é especialmente sublime, fazendo da cara menina um espelho do universo caótico onde não há expetativas do futuro. Como que um ícone punk, um querubim caído, William Eadie sugere um povo derrotado.

Em “Ratcacther”, ele é James Gillespie, um rapaz de 12 anos cuja família se encontra naquele impasse traiçoeiro, tolerando o quotidiano lúgubre enquanto espectam a relocação. O patriarca, em particular, afunda-se no desespero e tenta encontrar salvação na garrafa. Contudo, esta não é a história do homem, mas sim do menino, desse miasma de culpa e desdém. Acontece que, quando um amigo brincava com ele, James testemunha e quiçá provoca o afogamento do outro rapaz. Mais do que tudo, é a inação que lhe pesa na consciência e o atormenta, mesmo quando ele se tenta convencer que ninguém sabe do seu papel na tragédia. O pior de tudo é que não há castigo à vista e, no cúmulo da generosidade, a mãe enlutada até oferece a James os sapatos novos do filho morto.

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Os esquemas de montagem com que Ramsay representa e estilhaça a realidade do rapaz funcionam como um torcimento contínuo. É como se os espaços e os ritmos da vida fossem asfixiando o rapaz, as paredes do desespero abatendo-se sobre ele e ameaçando a aniquilação. Neste tormento, a realizadora tem mercê suficiente para oferecer fugazes escapadelas ao menino. Um dia, ele apanha um autocarro e viaja para fora dos limites de Glasgow. Nos arredores campestres, vemo-lo na descoberta de esqueletos domiciliários, um novo complexo habitacional a ser erguido no campo vazio. Fora desse inferno de betão cinzento e tijolo sujo pelo fumo, “Ratcatcher” parece respirar com novo fulgor. É um suspiro de alívio cruelmente efémero, temporário. Há que voltar para casa antes que o sol se ponha.

Outra via do alívio é uma pessoa ao invés de um local. Na companhia de uma menina chamada Margaret, James lá encontra um ombro amigo com quem partilhar os dias. Parte da aliança nasce do tumulto mútuo, visto que a menina é também ela ostracizada pela comunidade juvenil. Numa das imagens mais extraordinárias de “Ratcatcher”, essa rapariga olha-se ao espelho, segurando no vidro de modo a que o olhar seja picado. Num instante, ela revê-se numa perspetiva que nega o labirinto escuro das ruas feitas lixeiras. No reflexo, só aparecem ela e o céu, como se de um anjo se tratasse. Trata-se de uma passagem transcendente que, mais uma vez, salta por cima da convenção realista para chegar a uma zona mais lírica.

Com isso dito, nenhuma cena de “Ratcatcher” mais foge ao realismo puro e duro que a viagem alucinante de um ratinho. Quer seja num gesto de crueldade miúda ou boas intenções retorcidas, os miúdos do bairro atam um rato de estimação a um balão vermelho. Muito alto ele voa, tanto que o roedor se torna astronauta, puxado pelo globo escarlate para fora da estratosfera. Assim viaja até que chega à lua, onde descobre a felicidade animal numa nova comunidade. No mundo da imaginação desses rapazes das ruas, lá no alto vive uma colónia de ratos lunares. Até os animais neste filme desejam a libertação e, na sua máxima benevolência, Ramsay até abre as portas à fantasia para lhes possibilitar um final feliz.

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© BBC Films

Em semelhante medida, a tragédia alheia serve de salvação ao patriarca Gillespie. Feito herói da comunidade ao salvar um outro rapaz do afogamento, é como se a deusa realizadora lhe estivesse a estender a mão, puxando-o para fora do poço de angústia e alcoolismo em que se encontra. O menino, seu filho, tem menos sorte. Na suprema expressão da ambivalência cinematográfica, a realizadora dá dois fins simultâneos a “Ratcatcher”. Um mostra a desistência do rapaz, a outra revela a esperança. Será que o final mais feliz é sonho da realidade trágica ou é o inverso que se manifesta? As duas alternativas coexistem neste poema celuloso, neste sonho triste do grande ecrã. Na sua genialidade, Ramsay nem aceita o derrote simples nem concorda com o miserabilismo. Da ambivalência floresce a mestria da sétima arte e assim “Ratcatcher” se assume como a primeira obra-prima da realizadora.

A secção “In Focus” das Curtas Vila do Conde fará retrospetiva completa às longas-metragens de Lynne Ramsay. Fica atento à nossa cobertura.

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