DocLisboa ’16 | Bowie, Man With a Hundred Faces or The Phantom of Hérouville, em análise
Apesar de nos ter deixado em janeiro deste ano, David Bowie continua a assombrar-nos e a influenciar os grandes artistas, existindo como um fantasma tal como fez em vida.
Quando se fala de Bowie, Man with a Hundred Faces or The Phantom of Hérouville há algo que se deve considerar, por muito crasso que isso possa parecer. Falamos, pois claro, do seu bizarro timing. O filme foi completado em 2015 e estreou na televisão francesa, para onde foi originalmente produzido, três dias antes da estreia e divulgação de Blackstar de David Bowie, o foco deste documentário. Como todos infelizmente sabemos, no dia seguinte a este glorioso lançamento, Bowie morreu, deixando para trás um dos mais luminosos e revolucionários legados na história da música contemporânea, ou mesmo da arte em geral. O que essa tragédia também trouxe foi uma discreta recontextualização do filme a que nos propomos aqui analisar. Mais do que mais uma exploração da figura lendária de Bowie, este filme cristalizou os últimos suspiros de um mundo que, vibrando com a influência de Bowie, ainda vivia com a sua presença e a possibilidade de um futuro com o artista, de mais obras e talvez ainda mais inovações.
Ironicamente, a génese do projeto pouco ou nada tinha que ver com Bowie. Depois de ter feito um filme sobre Iggy Pop, o realizador Gaëtan Chataignier, com a colaboração do jornalista Christophe Conte, foi contratado para fazer mais um filme de temas semelhantes para a televisão francesa. A sua ideia original era a de construir uma obra em volta do célebre e misterioso Château d’Hérouville que durante os anos 70 e princípio da década de 80, serviu como hotel e estúdio de gravação para uma série de ilustres artistas. Só que, quando confrontados com uma elegia cinematográfica a um decadente castelo, os produtores do filme exigiram que a obra tivesse outro foco, algo com um apelo mais generalista e assim, sem abandonar por completo as paredes cheias de história do Château, Chataignier dedicou-se a construir um documentário sobre um dos mais célebres hóspedes desse espaço, o camaleónico David Bowie.
A pesquisa e exploração do filme incidem maioritariamente na carreira de Bowie nos anos 70, embora se fale, em variados níveis de detalhe, sobre toda a sua carreira até 2013. Nessa época, Bowie passou de um músico alternativo e cheio de ambições a um ícone global, vanguardista admirado e insultado em igual medida, entrou em decadência e recuperou, e, para além de tudo isso, foi-se continuamente reinventando soba forma de uma série de personas fictícias conhecidas de qualquer fã do artista. De David Jones nasceu David Bowie e ao Major Tom sucedeu o célebre Ziggy Stardust, que cristalizou a imagem do cantor como um extraterrestre irreal a partilhar a sua magnificência com os comuns mortais. De Stardust veio Alladdin Sane, um reflexo melancólico da euforia transgressiva do seu antecessor, mas ambos os alter-egos morreram num suicídio identitário em palco. Seguiu-se a crueldade Orwelliana de Halloween Jack, a elegância ariana de Thin White Duke, a efervescência e confusão criativa dos anos de Berlim e a metamorfose tardia num pseudo cantor pop depois de “Let’s Dance”, já na década de 80.
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Como é acima referida, a morte de Stardust é a mais famosa transição e transformação de Bowie, onde, perante o seu adorado público, o artista assumiu o seu artifício e poder. Ele mostrou a mortalidade do que é sonhado e empregou a imagética da morte, não como um ponto final, mas como a propulsão que levará a uma nova transfiguração. Esse contínuo movimento de transformação em algo novo acaba por ser a base para toda a tese que Chataignier e Conte formulam neste filme, que Bowie se havia tornado num fantasma vivo, uma abstração humana tão inefável como um espírito mas poderoso e omnipresente como um deus devido ao seu legado e influência. Relembre-se que tudo isto foi criado anteriormente à morte do artista, quando, apesar de recluso e afastado das luzes da ribalta e do espetáculo mediático, Bowie ainda vivia e o seu futuro artístico era ainda um mistério cheio de desconhecidas, mas deliciosas possibilidades.
É efetivamente essa recusa da celebridade que, unida à imagem do castelo antigo impregnado de espíritos, que surge esta ideia de um fantasma Bowie a assombrar todo o mundo. A canção “Changes” ecoa pelo filme e vibra todas as moléculas do seu ser, lembrando a audiência desse ato nominal, o de mudar. Para um artista em constante mudança, apenas na transição de um papel para outro, existia o eu real, o que não era uma fabricação teatral. Esse eu é paradoxalmente anulado pelas personas que dele nascem e assim, ao nascer David Bowie de David Jones e a restante coleção de identidades, a pessoa subjacente a todo este espetáculo acabou por se anular a si mesma, reduzindo-se a algo essencialmente transitório e invisível por design. Esse apagamento não foi um acidente, e, na verdade, Bowie, mais do que o fantasma que o filme desenha, tornou-se em algo ainda mais efémero, uma lenda, um mito, algo intrinsecamente inefável e grandioso que não se limita aos limites convencionais nem do corpo humano nem da sua identidade.
Como que acompanhando o seu objeto de estudo em constante transformação, o filme é como uma obra em transição de um retrato do Château a uma exploração concetual de David Bowie e seu legado. Por outras palavras, ao insistir na presença do castelo tornado estúdio de gravações, onde Bowie trabalhou somente em duas ocasiões a meio dos anos 70, o filme é como que o espaço vazio entre Halloween Jack e Thin White Duke, ou seja, é como o fantasmagórico Bowie que o filme tanto tenta encontrar. Podemos acusar o projeto de ser incoerente, o que não é nenhuma mentira, mas na sua imperfeição e fragilidades encontra-se algo de belo e fascinantemente em sintonia com os seus argumentos acerca do grande artista.
Se bem que, se tentarmos ser completamente honestos, existem elementos no filme que nada contribuem para qualquer argumento, ou pelo menos não contribuem de modo construtivo ou funcional. Falamos em especial de uma coleção de pueris covers a canções de Bowie feitas por uma série de jovens músicos e grupos franceses. A intenção de mostrar o legado do cantor a viver nas gerações seguintes é compreensível, mas todos estes momentos comem muito tempo ao filme, que precisa de mais duração para aprofundar as suas complexas ideias, e o que fazem às maravilhosas obras de Bowie é quase criminoso.
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Crimes musicais aparte, Bowie, Man With a Hundred Faces or The Phantom of Hérouville continua a ser uma obra problemática que merecia um desenvolvimento de projeto mais direcionado ao cinema que à programação de um especial televisivo para um canal francês, mas que, apesar de tudo isso, se evidencia como um trabalho de claro e distinto valor. Para fãs de Bowie, este filme poderá abrir novas portas de pensamento e reflexão sobre a natureza do legado do artista e sua presença em vida e na morte, enquanto para pessoas que desconhecem a história de Bowie, o documentário é uma boa forma de entrar neste culto, estando a sua breve duração carregada de montanhas de informação histórica. Uma elegia, uma dissecação, uma profecia macabra, uma evocação espiritual, Bowie, Man With a Hundred Faces or The Phantom of Hérouville está longe de ser perfeito mas é uma admirável elegia a este camaleão alienígena que nos agraciou com o seu génio durante 69 anos.
O MELHOR: A formulação e sintética defesa da ideia de Bowie como um homem que se transformou a si mesmo num fantasma através das metamorfoses e manipulações da sua persona e imagem pública.
O PIOR: As malfadadas covers, três delas em guitarra acústica.
Título Original: Bowie, l’Homme Cent Visages ou le Fantôme d’Hérouville
Realizador: Gaëtan Chataigner, Christophe Conte
DocLisboa | Documentário, Música, Biografia | 2015 | 70 min
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