DocLisboa ’16 | By Sidney Lumet, em análise

Em By Sidney Lumet, ao longo de uma longa entrevista, um dos grandes mestres do cinema americano expõe-se a si mesmo e às ideias que guiaram a sua vida e carreira.

by sidney lumet doclisboa

By Sidney Lumet, um novo documentário sobre a obra e vida do cineasta titular, abre com imagens da primeira aventura cinematográfica do realizador, 12 Angry Men. O filme de 1957, que se seguiu a uma carreira marcada pelo trabalho como ator em cinema e teatro e, mais tarde, pela encenação e realização para a TV, tem-se vindo a afirmar como um dos grandes clássicos de Hollywood, mas aqui, esses excertos são mera contextualização ou introdução ao que se segue. Falamos da entrevista que compõe By Sidney Lumet e que foi realizada alguns anos antes da morte do cineasta e que nos possibilita uma visão de surpreendente intimidade do homem por detrás de tamanhas maravilhas cinematográficas como Dog Day Afternoon, Network, Long Day’s Journey Into Night, The Verdict e, é claro, 12 Angry Men.

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Esse tão célebre filme protagonizado por Henry Fonda serve, como já dissemos, como introdução à entrevista, mas também posiciona logo à audiência de By Sidney Lumet, um dos grandes temas deste filme e, na verdade, de toda a obra de Lumet, a inquietação moral do indivíduo. Para sublinhar a importância de tal temática, uma das primeiras coisas que o lendário cineasta verbaliza é uma lembrança de um momento que o marcou. Um dia, aquando de uma viagem de comboio, Lumet observou um soldado a colher uma rapariga, que não devia ter mais de 12 anos, da plataforma, antes de a locomotiva partir da estação. Curioso e desconcertado com o que tinha visto, o futuro cineasta foi descobrir o que se estava a passar no compartimento adjacente ao seu, ocupado pelo militar. Aí, ele encontrou um grupo de militares a violar a menor à vez. Por um preço, eles mesmo deixariam que Lumet se juntasse ao gangbang improvisado. É a incerteza do jovem Lumet que nos é posta em evidência, o cataclismo moral de um homem que não sabe se há de intervir, e talvez ser morto por um grupo de soldados enfurecidos, ou de se afastar e viver com o peso da sua mesma inação.

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Nesta fase inicial do documentário, nem Lumet nem qualquer arquivo nos esclarece como essa história terminou, mas isso não importa, pois já se estabeleceu uma questão importante que acabou por definir a obra total deste cineasta, desde o drama de tribunal que lhe deu começo à carreira em cinema até ao miasma de angústia familiar que a fechou em 2007, passando por sucessos transgressivos e satíricos ou fracassos musicados onde uma fantasia clássica era recontextualizada como uma ambivalente carta de amor à tenebrosa vida urbana em Nova Iorque. A carreira de Lumet foi certamente variada, mas este filme realça como, apesar de não ser muitas vezes considerado um dos grandes “autores”, Lumet é de facto portador de uma filmografia com uma linearidade ideológica e temática fortemente presente. De certo modo, a realizadora Nancy Buirski faz com este filme o que Ingmar Bergman fez com o seu livro A Lanterna Mágica, e redefine o trabalho de um autor e o transmuta num esforço criativo ao qual está sempre presente um caráter autorreflexivo e quase autobiográfico.

Ao longo de By Sidney Lumet, vamos viajando pela palavra do cineasta envelhecido, até à sua infância e influência do teatro judaico em que o seu pai trabalhava. Passamos pelos questionamentos morais da vida adulta e chegamos à sua carreira e vida profissional, onde a vontade de trabalhar se parece impor a qualquer outra consideração. Convém mencionar, contudo, que nada disto é feito de modo linear ou particularmente ordenado. De certo modo, o filme move-se com a liberdade de uma corrente de pensamento. Podemos nem sempre perceber o modo como chegamos aos lugares a que chegamos no discurso de Lumet, mas a viagem nunca parece inorgânica ou forçada. Nos seus melhores momentos, o público tem a transcendente impressão de estar numa conversa direta com a figura que ocupa a tela com a sua face envelhecida e que parece esculpida pelo tempo e pelo cinzel da sabedoria.

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É evidente que o filme não é apenas a reminiscência de Lumet apresentada como uma entrevista num quarto escuro. O aparecimento de 12 Angry Men no início é apenas a primeira ilustração que o filme nos oferece, sendo que, ao longo da sua duração, By Sidney Lumet vai-se apresentando como uma colagem de excertos da filmografia do realizador, fotos de arquivo, e até bandas-sonoras marcantes do seu trabalho. Um dos mais valerosos exemplos desta prosaica técnica é o modo como a montagem dá tanta primazia aos excertos de David como o discurso de Lumet, apesar de esse constituir um dos seus mais infames fracassos com a crítica e audiências. Afinal, esta é a história de Lumet contada por Lumet e não por um historiador crítico.

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No final, By Sidney Lumet retorna à história do início após um poderosos clip de The Verdict. Assim Lumet conta-nos o que ele fez quando confrontado com a amoralidade e crueldade humana da situação: nada. Simplesmente afastou-se, preservou a sua egoísta segurança e viveu para contar a história e ser atormentado pela culpa que se veio a manifestar nos seus trabalhos. Para pontuar esta circularidade, 12 Angry Men volta a marcar presença, servindo como um adequado, se elíptico, ponto final a esta conversa intimista com Lumet e sua divagação pelos mares da memória e da glória cinemática. Se há uma amarga melancolia que impregna todo o projeto é, sem dúvida, a sua condição como testamento e como elegia, algo que não tira qualquer valor ao trabalho final e suas revelações.

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O MELHOR: A estruturação aparentemente desordenada dos segmentos de entrevista e sua final convergência na mesma linha de pensamento que iniciou todo o filme.

O PIOR: A banalidade de toda a execução de By Sidney Lumet, desde a prosaica escolha de font à qualidade dos clips mostrados. É certo que esta é uma produção destinada à série televisiva American Masters, mas a magnitude do entrevistado e a qualidade do conteúdo exigem um maior brio técnico e formal.


 

Título Original: By Sidney Lumet
Realizador:  Nancy Buirski

DocLisboa | Documentário, Biografia | 2015 | 103 min

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