DocLisboa Infinite Football critica

DocLisboa ’18 | Infinite Football, em análise

Infinite Football”, um modesto documentário romeno sobre um burocrata excêntrico em busca de um futebol novo, melhor e utópico, foi o filme de encerramento para mais uma fabulosa edição do DocLisboa.

Entre os cineastas cuja obra tipifica o Novo Cinema Romeno, Corneliu Porumboiu é o mestre da ironia e da simplicidade. Seus filmes tendem a desdobrar-se em encenações de grande modéstia, sem muito aparato ou aparente complexidade dramática com situações estendidas até que se transcende a exaustão e o absurdo se assume rei. Quer seja num retrato numa caça ao tesouro secreta, num programa de rádio ou nas conversas entre um realizador e sua atriz, todos os filmes de Porumboiu apresentam os mesmos mecanismos e tonalidades de humor negro. Também partilham temas e preocupações, nomeadamente uma constante tentativa de examinar o legado da ditadura de Ceaușescu na Roménia.

“Infinite Football”, chamado “Fotbal Infinit” no original, é certamente um filme simples e modesto. Trata-se do segundo documentário que Porumboiu assina sobre o desporto rei, sendo que o primeiro foi “The Second Game”. Essa obra documentava um jogo de 1988 arbitrado pelo pai do cineasta e o modo como esse evento pode servir de sinédoque para toda uma sociedade afogada em corrupção. A crítica social de “Infinite Football” é menos direta, mesmo que o seu início prometa algo muito mais simplista e frontal. Dizemos isto, pois o filme começa com as reminiscências de Laurentiu Ginghina sobre o dia da sua juventude em que fraturou um osso da perna e assim arruinou os seus sonhos desportivos e os caminhos académicos que o podiam ter levado para longe da máquina burocrata romena.

DocLisboa Infinite Football critica
Um brilhante exemplo de simplicidade cinematográfica como veículo de grande densidade concetual.

Ginghina é um amigo de infância do realizador e é na cidade natal de ambos que estes momentos decorrem. Porumboiu leva a câmara ao próprio campo de futebol em que o evento fatídico aconteceu e mostra-no-lo vazio, degradado e coberto de neve. Sem demoras, o filme salta para outro cenário e outro capítulo deste prólogo sobre a lesão arruinante de Ginghina. Agora, é uma fábrica que a câmara nos desvenda, um lugar cinzento e lúgubre, há muito abandonado e caído no mais puro dos degredos. Foi aí, na Véspera da Passagem de Ano de 1986 para 87, que o osso fraturado se partiu em conjunto com a tíbia. O esforço do trabalho industrial foi o culpado desta tragédia e, no seu rescaldo, ninguém ajudou o homem em agonia e ele foi forçado a arrastar-se pela neve de regressos a casa e em busca de auxílio.

Considerando os temas que se manifestam em toda a obra de Porumboiu, seria fácil supor que Ginghina saltasse desta memória traumática para uma deliberação sobre a miséria social na raiz dos seus problemas. Contudo, o antigo futebolista amador não tem rancor nenhum para com o sistema político da época e, ao invés, coloca as culpas em cima das regras defeituosas do futebol em si. De facto, Ginghina tem passado toda a vida desde então a formular novas regras e métodos de jogo para o desporto que ainda chama pelo seu coração. Ele chega mesmo a explicar as suas ideias com um quadro magnético e desenhos esquemáticos, numa das sequências mais simples e hilariantes do filme.

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Desde converter o campo numa forma octogonal a dividir a equipa em várias subequipas e eliminar o fora de jogo, as propostas de Ginghina oscilam entre o racional e o ridículo. Apesar disso, é difícil não nos deixarmos levar um pouco pelo seu entusiasmo, especialmente quando esta revolução desportiva de um só homem é a única luz na vida deste aparente sofredor de apatia crónica. O futebol claramente suplanta quaisquer preocupações profissionais, sendo que o próprio Ginghina se caracteriza como um super-herói na mesma medida de Clark Kent e Peter Parker. Como eles, o romeno tem um emprego aborrecido no qual a sua competência não é grande. Contudo, por detrás dessa fachada corriqueira ele é um herói desportista pronto a salvar o mundo da ameaça que são as regras atuais do futebol.

Numa sequência que parece boa demais para não ter sido cuidadosamente escrita por um mestre cineasta, o escritório de Ginghina serve de palco a uma peça satírica. A meio de uma das longas conversas sobre futebol, o burocrata é interrompido pelo aparecimento de uma mulher idosa e seu filho. Há 27 anos que ela tenta recuperar as terras que foram tiradas à sua família durante a ditadura e não é com a ajuda do idealista do futebol que conseguirá a ajuda que necessita. Assim nasce uma fabulosa comédia de incompetência estatal, o egoísmo de um burocrata distraído e a resignação bem-educada e sorridente de duas pessoas que já aprenderam a não esperar nada de bom de uma figura atrás de uma mesa com ar oficial.

Por detrás da excentridade e da obsessão, vive utopia e tragédia.

Nada aqui é direto ou gritado e Porumboiu nada força. Não é preciso, pois a realidade facilmente se assume como a mais sublime das dramaturgias. Há sátira, drama, humor e densidade concetual até numa cena tragicómica entre o pai de Ginghina e o realizador, onde os dois discutem o simbolismo cósmico de uma pintura feiosa, ou na sequência em que o pensador desportivo é confrontado com a desastrosa aplicação prática das suas regras. A modéstia construtiva destes momentos pode esconder seu primor, mas “Infinite Football “ é o tipo de filme que jamais promove a sua própria importância e prefere usar as baixas expetativas do espectador como motivador de diálogo entre obra e audiência.

Aí se encontra o génio do filme, nesse gesto de modéstia calculada que nos dá todas as peças para o puzzle e nos pede que as montemos sem instruções que não a intuição e compaixão. Não se equivoquem com as nossas afirmações de valor humorístico e satírico, pois Porumboiu nunca mostra condescendência para com Ginghina, só empatia e a frustração amistosa de um amigo de longa data. Numa das últimas passagens deste breve documento, Ginghina chega mesmo a ter direito a um monólogo em voz-off para apresentar de modo mais direto uma defesa da sua excentricidade. Aí, mesmo que de forma inconsciente, ele acrescenta tonalidades ao retrato que o filme até então tem feito de si e complica-o.

É uma coda a obsessão de Ginghina ganah novas dimensões. Podemos facilmente presumir que as suas regras, que transformam o futebol em matraquilhos humanos, é uma manifestação de egoísmo. Afinal, ele quer criar um futebol que ele mesmo possa praticar com a sua perna fraturada. O problema é que nada é assim tão simples e a montanha de regras que Ginghina inventa são fruto da sua filosofia de vida e crença na utopia humana. Para ele, a violência é uma aberração e é através de leis, regras e regulamentos que se encontra a harmonia. Há aí um desejo por controlar o ser humano, por impor limites que fala tanto de alguém que cresceu em ditadura como de alguém que não se vê sob o controlo da própria vida. Assim é “Infinite Football”, humor e simplicidade como veículo de conclusões que nos surpreendem pela sua complexidade e pela sua dor.

Infinite Football, em análise
DocLisboa Infinite Football critica

Movie title: Fotbal Infinit

Date published: 28 de October de 2018

Director(s): Corneliu Porumboiu

Genre: Documentário, 2018, 71 min

  • Cláudio Alves - 85
85

CONCLUSÃO

“Infinite Football” é um retrato excêntrico, simples e seco sobre inovações futebolísticas que discretamente se torna numa comédia satírica sobre as injustiças sociais na Roménia dos nossos dias e na tragédia pessoal de um homem perdido entre a apatia e o idealismo utópico.

O MELHOR: O monólogo narrado com que Ginghina nos deixa.

O PIOR: A montagem na sequência do escritório é atroz, especialmente no seu uso desconexo e inorgânico de grandes planos de Gingham ao telefone.

CA

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