Eu, Daniel Blake, em análise

Eu, Daniel Blake, vencedor da Palme d’Or deste ano, é um comovente retrato de miséria social realizado por Ken Loach, um dos pais fundadores do realismo social no cinema europeu e mestre do cinema de urgência contemporâneo.

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Tal como aconteceu o ano passado quando Dheepan valeu a Jacques Audiard a sua primeira Palme d’Or, também este ano o júri de Cannes foi fortemente criticado pela sua escolha de vencedor da competição oficial. A fortalecer ainda mais os paralelos entre as duas obras está o facto de que, tal como Dheepan, Eu, Daniel Blake é uma obra de cru, duro e acutilante realismo social, um projeto que vale mais pela sua urgência panfletária que pelo seu caráter inovador ou primor estético. Em nome da justiça, admite-se que Eu, Daniel Blake está longe de ser o melhor título em competição na Croisette deste ano, no entanto, isso não invalida que este seja um bom filme.

Estando já propostos a defender o valor desta obra militante, convém explicar as razões pelas quais o trabalho do realizador Ken Loach é usualmente alvo de tantas críticas. Como muitos já apontaram, desde o final dos anos 60 que Loach anda a repetir as mesmas ideias e soluções estéticas, apoiando todo o seu cinema numa onda de realismo social Marxista que há muito deixou de ser minimamente inovador para quem veja cinema fora dos circuitos comerciais. Tudo isto está certo, só que, tal como o facto de um filme não merecer a Palme d’Or não invalida que tenha valor, também esta repetição não é necessariamente um sinal de displicência ou mediocridade. Afinal, se as injustiças institucionais que Loach passou a vida a criticar se mantêm no mundo, por que razão haveria ele de se aventurar por outros temas ou deixar para trás o realismo que parece funcionar tão harmoniosamente com as suas narrativas?

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De facto, o estilo usual de Loach volta a marcar presença em Eu, Daniel Blake com o uso de luz natural, lentes telescópicas, montagem que acompanha os ritmos da conversação humana e atores num registo de naturalismo ferrenho. Com algumas mudanças cosméticas e alteração de detalhes processuais, poderíamos facilmente transladar este filme para o início da carreira de Loach sem que ninguém se apercebesse. Talvez a única e significativa diferença está no modo como o filme vai ser recebido, pois, se Cathy Come Home conseguiu levar a uma reflexão nacional e governamental sobre o Estado Social em 1966, não devemos esperar o mesmo de Eu, Daniel Blake.

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Não que, verdade seja dita, o filme seja menos enraivecido na sua crítica que o projeto dos anos 60. A narrativa de Eu, Daniel Blake centra-se na personagem titular, um viúvo idoso de Newcastle que, depois de ter sofrido um ataque cardíaco, se vê num imbróglio kafkiano. Por um lado, os médicos proíbem-no de trabalhar, mas por outro, os serviços sociais geridos por empresas privadas consideraram que ele não se qualifica para receber uma pensão de invalidez. Atente-se que a única entrevista feita foi o preenchimento de um formulário por telefone. Sem trabalho ou modo de subsistência, Daniel é aconselhado a apelar o seu caso, um processo demorado que não lhe assegura qualquer subsistência para o tempo de espera, pelo que se vê obrigado a pedir o subsídio de desemprego e a seguir os rígidos protocolos inerentes a esse processo. Assim começa uma espiral de sucessivas humilhações e indignidades que parecem germinar de um sistema focado na derrota do espírito humano e não no auxílio do cidadão em necessidade.

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Ao mesmo tempo que este encadeamento de catástrofes se abate sobre Daniel, observamos uma outra história centrada em volta de Katie, uma mãe solteira que foi expulsa da sua casa em Londres depois de se queixar das condições da habitação, e agora se vê realojada numa área que não conhece e longe do resto da sua família. Aquando da primeira reunião de Katie com os serviços sociais, Daniel testemunha o modo como ela é penalizada por ter chegado minutos atrasada, por muito que Katie justifique o atraso alegando ainda não conhecer os transportes locais. A partir daí, Daniel e a jovem mãe formam uma amizade próxima e ele vai ajudando-a a cuidar da sua nova casa e dos dois filhos, que ele trata quase como netos. A luz de humanidade e bondade que aparece com esta amizade não é o suficiente, no entanto, para salvar a narrativa da sua miséria, sendo que a situação dos dois protagonistas se vai tornando cada vez mais precária.

A meio do filme, ainda antes de Katie e Daniel chegarem aos extremos do seu sofrimento, Loach apresenta-nos uma cena capaz de fazer chorar as audiências mais estoicas e insensíveis. Ancorado pela magistral prestação de Hayley Squires e pelo trabalho sólido e empático do comediante Dave Johns, este momento mostra-nos Daniel a acompanhar Katie e seus filhos na sua primeira ida ao banco alimentar. Aí, depois de dias sem comer para conseguir alimentar os filhos, Katie tem uma reação quase animalesca quando confrontada com comida. Nas suas lágrimas vemos o peso da contínua humilhação institucional, mas ainda mais marcante é o modo como todos à sua volta são bondosos e parecem entender o seu suplício. Nesta narrativa, por muito desumanos que sejam alguns dos empregados dos serviços sociais com suas mesquinhices burocráticas, é a generosidade humana que realmente desfere um murro no estômago da audiência e que completamente desfaz uma mulher desesperada que apenas quer sobreviver na Inglaterra contemporânea com os seus filhos.

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A bondade generalizada nas personagens de Eu, Daniel Blake e o modo como, apesar da sua indignação, Loach se recusa a reduzir qualquer pessoa ou instituição a uma força vilanesca bidimensional, é o que eleva o filme acima de tantas outras obras semelhantes. Sempre existiu no cinema deste autor um lacerante humanismo que se reflete no respeito concedido por Loach à suas personagens e histórias. Desse respeito vem uma das características mais valerosas de Eu, Daniel Blake, o modo como o filme promove o entendimento e a empatia mas nunca pede a pueril pena e piedade da audiência. Aliás, para Loach, um Marxista que cresceu no seio de uma família Tory, a pena é uma reação monstruosa e ineficaz, característica de uma mentalidade conservadora. Assim, por muito dramáticas que as suas situações possam ser, Eu, Daniel Blake nunca se torna num melodrama choroso, sendo que é a raiva e o ultraje, não a pena, que Ken Loach sempre deseja suscitar no seu público.

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Por isso, mesmo quando o guião de Eu, Daniel Blake começa a tombar num miserabilismo quase operático aquando do seu ato final, a fúria de Loach vai mantendo as suas tonalidades equilibradas e longe da exploração desrespeitosa de miséria alheia. Num ano em que perdemos Andrzej Wajda, uma das grandes vozes do cinema político e social, e em que o mundo se está a virar cada vez mais para políticas de extrema-direita, filmes como este são importantes. Sim, esta não é obra inovadora, mas é inquestionável que a sua falta de originalidade estética e narrativa é mais do que compensada pelos seus temas, sua sólida execução e urgência política.

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O MELHOR: A cena no Banco Alimentar.

O PIOR: O último ato é das passagens menos elegantes e mais desnecessariamente operáticas no recente trabalho de Loach. A motivação por detrás da sua existência é compreensível, mas uma maior contenção dramática seria preferível.



Título Original:
 I, Daniel Blake
Realizador: Ken Loach
Elenco:
 Dave Johns, Hayley Squires, Sharon Percy, Briana Shann, Dylan McKiernan

Midas Filmes | Drama | 2016 | 100 min

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