Dheepan, em análise

Dheepan, o grande vencedor da Palme D’Or do ano passado, é uma impressionante sintetização do estilo cinematográfico de Jacques Audiard, onde realismo e lirismo se unem em prol da magistral exteriorização de complexas psicologias.

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Não é nada de inusual que o vencedor da tão desejada Palme d’Or, a honra máxima do Festival de Cinema de Cannes, seja tido como um injusto galardoado. Ainda há muitos que se opõem, por exemplo, à vitória de Nuri Bilge Ceylan e nela veem apenas uma recompensa pela sua grande presença no festival ao longo dos anos, ou olhem com desconfiança para a constante premiação dos filmes dos irmãos Dardenne. Apesar disto, poucos foram os laureados de Cannes que tanta hostilidade despoletaram, especialmente entre a comunidade crítica, como Dheepan. Para muitas pessoas, esta honra não passou de um reconhecimento da filmografia de Jacques Audiard, que já havia estado bastante perto da Palme com o seu Un Prohète, e foram inúmeras as vozes que viram, nesta narrativa de imigrantes do Sri Lanka em França, uma exploração inapropriadamente melodramática de temas de grande importância social que, na verdade, pouco ilumina sobre os conflitos políticos por detrás da sua história.

Nessas acusações e presunções pejorativas, a que tem mais esperança de ser objetivamente verdadeira será a que a vitória desta filme acaba por representar um reconhecimento geral da obra cinematográfica de Jacques Audiard. Isto porque, de certo modo, Dheepan é como que uma espécie de apoteose rarefeita dos vários temas e marcas estilísticas que têm vindo a caracterizar o trabalho de Audiard ao longo da sua ilustre carreira. Dheepan é, afinal, um retrato humano de pessoas que se poderiam caracterizar como marginais da sociedade francesa, executado num estilo que magistralmente mescla um claro, grosseiro e violento realismo estético com momentos de lirismo sereno.

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Aliás, basta observarmos o primeiro vislumbre que Audiard nos concede do continente europeu para nos apercebermos deste tipo de mestria cinematográfica. Nessa imagem, começamos por observar manchas indefinidas de cor na escuridão. A música hipnoticamente acompanha este jogo sensorial e abstrato, até que o movimento traz essas nebulosas presenças para a zona de foco, e vemos que são vendedores de quinquilharia barata, daqueles que se vêm em todas as capitais europeias, com bandeletes luminosas a coroarem suas cabeças. Entre eles está Dheepan, o nosso protagonista e um antigo membro dos Tigres de Liberação do Tamil Eelam que viajou para França com um passaporte cujo dono original morreu em conjunto com a sua família. Por consequência, na sua odisseia rumo a um sonho de vida europeia e longe dos traumas do passado, ele é acompanhado por uma família criada na hora, com uma esposa e uma filha, cujos verdadeiros nomes nunca nos são comunicados, sendo que apenas as conhecemos pelos nomes dos passaportes, Yalini e Illayaal. Ao longo da narrativa, contudo, esta performance do quotidiano em que três desconhecidos assumem os papéis de pai, mãe e filha, rapidamente se começa a tornar uma nova realidade.

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As genuínas relações pessoais e o conforto familiar começam a germinar da ficção auto imposta como ervas a romper, pouco a pouco, da superfície alcatroada e o trabalho dos atores vai ganhando dimensões de crescente complexidade. No centro emocional desta evolução está a titânica prestação de Kalieaswari Srinivasan como a “esposa” de Dheepan. Esta atriz, cuja carreira tem sido exclusiva do teatro indiano, concebe em Yalini uma sublime caracterização de uma mulher que tenta sobreviver a todo o custo num mundo inóspito e desconhecido. Gradualmente, vemos vislumbres de segurança na sua postura assim como uma confiança que vai florescendo na sua atitude tentativamente proactiva. Isto regista-se mesmo no seu trabalho como doméstica e cozinheira para um peculiar vizinho, cujo apartamento é uma base para os negócios de drogas que dominam a vida nas habitações sociais onde decorre a maior parte do filme. No entanto, depois de a violência se começar a manifestar, o horror traumático de onde ela tentou fugir começa a mostrar sua face, e o desespero quase animalesco toma controlo. Numa das mais inesquecíveis sequências do filme, Yalini tenta fugir, mas Dheepan interceta-a, e os dois têm uma explosiva discussão que lembra o melhor da obra de Audiard cujos representações de amor têm mais que ver com espetáculos de combatentes emocionais do que com quaisquer tipo de romantismos clássicos. Quando Yalini impiedosamente estilhaça as ilusões de felicidade familiar do protagonista masculino, é como um balde água fria que acorda a audiência para os níveis de ilusão autoimposta que regem tantas das ações destas personagens.

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Nenhuma mais que Dheepan, é claro, cuja fuga dos monstros que se escondem no seu passado violento caracteriza muito do seu retrato. Para este papel, Audiard fez uma escolha que orgulharia os mais revolucionários cineastas neorrealistas, sendo que, ao interpretar Dheepan, o escritor tornado ator, Jesuthasan Antonythasan, está, em grande parte, a dramatizar a sua própria experiência pessoal. A partir deste mesmo recurso a uma realidade humana em processo de auto avaliação e representação cinemática, Audiard revela como suas intensões estão longe do que se poderia esperar de um filme tão assombrado pelo pesadelo da Guerra Civil que se abalou sobre o Sri Lanka. Esta não é uma obra de cinema político, mas sim um estudo de personagem que inclui tais temas como parte integrante do seu retrato, mas não como seu sujeito.

Essa diferenciação será importante de reforçar face às multitudes de vozes críticas que acusam Dheepan de ser um filme que desleixadamente simplifica uma tapeçaria de complexas realidades políticas. Esta obra invoca os horrores do passado na forma de memórias fraturantes nunca verbalizadas, crimes que nunca são abertamente discutidos, e temores que corroem a mente como uma infeção malévola. Tais realidades, mais do que expressas em informação facilmente digerida de modo jornalístico, são manifestas, por exemplo, no modo como a câmara, em perspetiva subjetiva, se move com violenta brusquidão quando um estalido é ouvido à distância.

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Poder-se-ia mesmo dizer que é precisamente quando o filme se afasta de tais estudos psicológicos e observacionais que se começam a ver algumas fragilidades. A meio de Dheepan uma figura do passado aparece para explicitamente vocalizar o que até então tinha sido apenas sugerido pela mise-en-scène acerca das atividades sanguinárias o protagonista no seu país de origem. No entanto, há que valorizar como Audiard consegue justificar tal deselegância narrativa no final, quando o seu filme se parece desfragmentar num pesadelo acordado cheio de violência aterradora cuja chegada já se prenuncia desde o início como uma profecia trágica sussurrada ao ouvido da audiência.

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Mas Dheepan não é uma simples tragédia sobre emigração de países ditos em desenvolvimento para a Europa, sendo que Audiard, num gesto de magnânima generosidade humanista para com as suas personagens, concede a esta narrativa um final relativamente feliz. Depois de uma fumarenta sequência que eleva a carnificina a uma procissão de imagens e sons impressionistas, um raio de esperança encerra a história desta família. Como é que tal pode ter acontecido? Como é que as personagens alcançaram essa situação? Tais perguntas lógicas pouco interessam, pois, por esta altura, Audiard já deixou que o lirismo se impusesse ao realismo em Dheepan e, enquanto muitos podem ver indisciplina e incongruência nesse ato, é de admirar como assim se evita a misantropia usual nestas narrativas e se termina com uma visão de sonhadora e solarenga estabilidade acompanhada de música quase angelical. Será esta a nossa realidade? Talvez não, mas deveria ser e, como senhor de sua ficção, Audiard tem a bondade de materializar esta merecida paz a seguir à tempestade de sofrimento humano.

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O MELHOR: As prestações do elenco principal que mesclam uma atriz profissional de teatro com um ator amador a quase se representar a si próprio e uma jovem em possível início de auspiciosa carreira dramática.

O PIOR: A meio do filme, com essas, já referidas, figuras do passado do protagonista, Audiard deixa que a sua narrativa caia num registo um pouco óbvio e demasiado verboso.


 

Título Original: Dheepan
Realizador:  Jacques Audiard
Elenco: Jesuthasan Antonythasan, Kalieaswari Srinivasan, Claudine Vinasithamby
Midas Filmes | Drama | 2015 | 115 min

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