Experimenter, em análise

Em Experimentar: Stanley Milgram, O Psicólogo que Abalou a América, Peter Sarsgaard e o realizador Michael Almereydas, trazem ao cinema as controversas e fascinantes experiências de Stanley Milgram sobre a mente humana.

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Dois estranhos entram em cena. Um deles é um “professor” e o outro seu “aluno”. O “aluno” tenta memorizar uma série de associações de palavras e é isolado numa divisão separada do seu suposto pedagogo. Por seu lado, o “professor” é posto em controlo de uma máquina que irá chocar, com carga elétrica, o “aluno” caso este responda errado a uma série de perguntas. Eventualmente, a situação escala, com as cargas elétricas a ganharem cada vez mais intensidade, e o pobre “aluno” a suplicar e a queixar-se de problemas de coração. É esta a cena que se foi repetindo ao longo da experiência de Stanley Milgram em 1961 na Universidade de Yale, e é também um cenário repetido várias vezes durante o mais recente filme de Michael Almereyda, Experimenter.

No contexto da experiência de Milgram, o “estudante” era meramente um ator a interpretar um papel. Era o “professor” quem estava realmente a ser testado. Seguindo as mesmas linhas do pensamento de Hannah Arendt sobre a banalidade do mal e os eventos do julgamento de Adolf Eichmann em Jerusalém, este estudo propunha-se a investigar a reação dos objetos de estudo quando ordenados a continuar a experiência. Apesar do “aluno” ser um ator, os “professores” não o eram e foram as suas reações que o estudo tentava pôr à prova. Hoje em dia, olhamos para o estudo de Milgram e vemos uma experiência que, no mundo académico atual, nunca poderia acontecer como na década de 60, onde as normas de ética de tais estudos ainda não estavam tão definidas. Mas, pelo menos segundo a perspetiva de Almereyda, tais considerações não invalidam as descobertas de Milgram sobre a natureza humana. Indo ainda mais longe, o realizador faz da teatralidade de dúbia validade ética, a força motriz por detrás de todo o filme.

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Há quem diga que, através do artifício, o cinema tem a capacidade para encontrar verdades humanas e o mesmo se pode dizer da experiência aqui apresentada. Esse estudo experimental pega numa situação precisamente fabricada, repete-a com uma variável, neste caso o ser humano, e observa os resultados obtidos, tentando encontrar padrões e explicá-los. De modo semelhante, a execução estrutural e formal de Experimenter apresenta o filme como um biopic aparentemente convencional, mas é exatamente a partir da convenção e repetição de fórmulas, que os cineastas instigam a experimentação. Se nos estudos de Milgram o elemento variável era o ser humano, no filme temos a experimentação de Almereyda que está constantemente a injetar pequenas explosões de artifício e teatralidade no seu filme. Quando um elefante aparece em cena, estamos perante um momento de completo absurdo. Quando uma prestação musical irrompe pelo filme, o jogo de géneros cinematográficos é inegável.

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Parece que o realizador está quase a brincar com a sua audiência, ou pelo menos a tentar dialogar com ela. O diálogo, sejamos honestos, não é particularmente interessado nas complexidades psicológicas reveladas pelos estudos de Milgram, mas sim nos, já referidos, métodos que ele utilizou, nos seus teatros psicológicos. Um bom exemplo desse artifício é o modo como o protagonista se apresenta em cena, sempre a falar diretamente para a câmara. Como Milgram, Peter Sarsgaard é uma espécie de Frank Underwood por meio do teatro de Bertold Brecht e, longe de uma simples recriação biográfica, o seu trabalho é caracterizado por um descarado ênfase na pontificação declamativa. Ele é, afinal, o nosso mestre-de-cerimónias, o nosso professor e o marionetista que controla todo o teatro da experiência.

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Tal estilização é bastante alienante para quem estiver à espera de um filme biográfico convencional ou de uma abordagem expositiva de um estudo académico. Verdade seja dita, os momentos mais fracos do filme são sempre aqueles em que a ênfase se move da experiência em si para a discussão das conclusões que dela resultaram. Mas, quando evita esses instantes mais didáticos e bastante superficiais, Experimenter consegue afirmar-se como uma das mais invulgares propostas do género biográfico dos últimos tempos e, mais espantoso ainda, como um dos mais estranhos e ambiciosos filmes a tentar retratar o processo de experimentar e investigar algo num contexto académico.

É claro que há uma diferença muito grande que separa o modo como o filme se construiu e o modo como Milgram construiu as suas experiências. Para o académico, a experiência tinha um resultado em mente, mas para o cineasta, não existe o mínimo desejo de chegar a qualquer conclusão. Isso vai-se sentindo progressivamente durante o filme, e, pelo seu final, é certo que a abordagem de Almereyda tem claros limites conceptuais. Isso não invalida os seus esforços e o simples facto de provocar estranhamento e desconforto numa audiência programada para esperar outro tipo de cinema é uma prova de que o cineasta criou um objeto de interesse.

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A prova máxima desse interesse e valor está na contradição intrínseca à sua criação. Por um lado, diríamos que as afetações teatrais e pseudo vanguardistas de Almereyda são exemplos de um grande pretensiosismo intelectual e tentativa de construir camadas de espetacularidade sobre uma base simplista. Por outro, a partir da montanha de escolhas estilísticas (algumas das quais são bastante ridículas), o cineasta acabou por despir o seu filme do artifício subjacente a qualquer recriação histórica e naturalista. Normalmente, vemos um filme como vemos um relógio – observamos a face de simples leitura e dela retiramos conclusões claramente apresentadas. Neste caso, Almereyda insiste em mostrar o mecanismo que se esconde por detrás do mostrador, e vai ainda mais longe, tornando as mãos que construíram o mecanismo num elemento presente. Afinal, face a tais decisões estilísticas, é difícil não pensar na influência do realizador. Também, face à exposição Brechtiana de Milgram, é impossível ignorar a mão do académico no artifício que presenciamos dentro da história da sua vida e das suas experiências.

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Parte do interesse da investigação no ramo da Psicologia é entender o comportamento humano, seus padrões e o que leva ao seu funcionamento. Essa investigação tenta ver para além desse “mostrador do relógio”. A abordagem de Almereyda parece conseguir capturar alguma da essência do estudo psicológico que o seu filme tenta apresentar. Podemos, é evidente, apontar que Experimenter acaba por tremer sobre o peso da sua própria ambição (como já foi dito, os desenvolvimentos finais deixam muito a desejar), mas há que celebrar a existência dessa ambição. No género do cinema biográfico, ambição e coragem de experimentar com a impetuosidade que Almereyda exibe são motivo de celebração e merecem o apropriado reconhecimento.

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O MELHOR: A representação da célebre experiência de 1961 e toda a sua inerente teatralidade.

O PIOR: O modo como o filme vai perdendo o seu precário equilíbrio entre desconstrução estilizada e fórmula biográfica nos momentos em que se afasta da principal ação de 1961 e se aventura pela restante vida de Milgram.


 

Título Original: Experimenter
Realizador:  Michael Almereyda
Elenco: Peter Sarsgaard, Winona Ryder, Jim Gaffigan, John Leguizamo, Taryn Manning, Anton Yelchin
Leopardo Filmes | Drama, Biografia, História | 2015 | 98 min

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