FEST ’21 | La Civil, em análise

“La Civil”, a primeira longa-metragem de Teodora Mihai, ganhou um Prémio da Coragem quando passou na secção Un Certain Regard do Festival de Cannes. A obra foi exibida em competição pelo Lince de Ouro no FEST 2021.

As origens de “La Civil”, também conhecido como “The Civilian”, são curiosas. Apesar de todo o filme explorar um millieu intrinsecamente mexicano, trata-se de uma produção com origens europeias. A realizadora Teodora Ana Mihai nasceu na Roménia durante o regime ditatorial de Ceausescu mas, seus pais, em fuga da opressão política, emigraram para a Bélgica. Com isso dito, não foi no Velho Continente que a cineasta aprendeu a sua arte. Educada nos EUA, em São Francisco e Nova Iorque, Mihai dedicou-se primeiro ao cinema documental e ganhou nome enquanto assistente de autores belgas e criadora de curtas-metragens.

Todo esse historial remete para uma sensibilidade globalista que assim justifica a existência de “La Civil”. Durante o seu tempo nos EUA, Mihai muito se fascinou pelas histórias de imigrantes mexicanos, muitos deles refugiados em busca de salvação, da fuga de um clima de violência perpetuado pelos cartéis. De facto, a principal inspiração para a fita partiu de um artigo do New York Times, onde Miriam Rodríguez relatou sua experiência enquanto vítima dos tiranos da droga mexicanos. Tanto o seu testemunho impressionou os cineastas que, inicialmente, “La Civil” era para ser um documentário centrado em pessoas como Rodríguez.

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© FEST

Contudo, à medida que o projeto se desenvolveu, mais Mihai se interessou pela experiência em primeira mão de quem vive atormentado pela violência dos cartéis. Mais do que documentar os efeitos a longo prazo, o trauma que perdura, a realizadora procurou o instante do choque. Assim sendo, o filme metamorfoseou-se, passando de uma investigação jornalística ao drama da humanidade em crise. Por outras palavras, o documentário virou ficção. Juntamente com Habacuc António De Rosário, a realizadora romena escreveu um argumento em torno da personagem de Cielo e suas provações sisífias, seu desespero e corrupção.

Dedicado às famílias afetadas pelos desaparecimentos no México, “La Civil” começa da maneira mais inócua possível. Em grandes planos com pouca profundidade focal, observamos as interações mundanas de mãe e filha, Cielo e Laura. Este é o único momento em que o espetador vê a mulher mais nova, mas, tal como a matriarca, ninguém se apercebe da monumental despedida que acabou de ocorrer. Quando Laura sai porta fora, de visita ao namorado, nada na formalidade da câmara aponta para o cataclismo que se avizinha para este idílio doméstico. Até quando se começam a revelar as malignidades da história, tudo é feito com realismo taciturno, casual.

Atrás do volante, encarando a irritação dos semáforos, passadeiras e trânsito lento, Cielo é confrontada por um jovem de sorriso rasgado. De cotovelo apoiado na janela do carro, uma pintura de traquinice bonacheirona, El Puma pergunta se ela é a mãe da Laura. Do inquérito benigno despoleta a paranoia, o medo, intensificado pela descontração do miúdo do cartel. Depressa o paradigma do filme se altera perante as suas sinistras palavras – se Cielo não arranjar uma quantia exorbitante e a entregar aos raptores, jamais verá a sua filha novamente. O que se segue é um pesadelo maternal em vários atos, gradualmente transcendendo o desespero até chegar a algo mais hediondo e feio, a crueldade vingativa de uma mulher sem nada a perder.

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Em primeira fase dramatúrgica, perscrutamos a família desfeita de Cielo, sua relação difícil com o ex-marido, Gustavo, e o modo como a mãe solteira é forçada a engolir insultos e culpabilizações na procura pela soma pedida. Depois vem um desdobrar da tapeçaria social no Norte do México, as crispações entre a tirania dos cartéis e as forças militares que só trazem mais violência às vidas da população. No pano de fundo, a polícia nada faz e é cada um por si na esfera civil, todos aprendendo a viver com o terror constante do dia-a-dia. A visita a uma funerária é quiçá a passagem mais assombrosa do filme, não tanto pela imagética mórbida, mas pela resignação patente na alma maltratada dos seus trabalhadores.

Pragmatismos e resiliência são qualidades que Cielo representa em extremada apoteose. Só que essas facetas são deturpadas pelo passar do tempo, a angústia de mãe fermentando até que da papa emocional emerge uma nova criatura, um monstro de retribuição feroz. Ao invés de recusar a violência em seu redor, Cielo torna-a na sua arma e usa todos os meios à sua disposição para cumprir os objetivos. Quando a esperança morre, a missão deixa de ser um salvamento, resumindo-se ao resgate do cadáver para ritos fúnebres. Isso e o castigar daqueles responsáveis. Infelizmente, são as pessoas mais vulneráveis na hierarquia criminal que mais fortemente sentem a fúria de Cielo. Numa troca de papéis aterradora, é ela quem rouba um filho à mãe quando se junta a uma milícia para capturar El Puma.

Há muito rigor no trabalho de Mihai, na forma como ela privilegia takes compridos com a ação sempre ancorada pelo grande plano ou plano médio dos intervenientes humanos. Trata-se de uma estética sufocante que muito poder deriva da claustrofobia composicional patente nas imagens de Marius Panduru, diretor de fotografia de “La Civil”. No entanto, essa mesma escolha acaba por descontextualizar as personagens, fazendo do México uma entidade abstrata que raramente aparece em foco tempo suficiente para se manifestar enquanto realidade visceral. Esse teor esbatido, aliado à violência na premissa, deixam um trago de exploração gratuita na língua de quem vê a fita. As intenções de Mihai são compendiáveis, mas, infelizmente, a obra tem sempre o aspeto de um retrato feito por alguém deslocado, removido, distante daquilo que retrata.

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Em certa medida, recorda-nos os filmes americanos de Wim Wenders, só que a procura pela censura de costumes e comentário político é muito mais forte em “La Civil”, levantando questões éticas que o drama tem dificuldades em resolver. Muitos críticos têm vindo a descrever a façanha em termos comparativos e de género, indo além dos traços semelhantes a Wenders. Há quem veja no filme uma homenagem às narrativas clássicas de Hitchcock, uma estética derivada do realismo europeu tipificado pelos Dardennes, um modelo narrativo em dívida para com os Westerns sanguinários de outros tempos. Independentemente dessas ligações prestigiantes, “La Civil” é prejudicada por tais análises, sendo ofuscada por todo aquele cinema a quem deve inspiração. O elemento redentor que torna o drama em visionamento essencial é o elenco.

Arcelia Ramírez mergulha nas profundezas mais consternadoras de Cielo, iluminando a interseção de aflição e desumanidade, o modo como uma vítima heroica se torna em algo mais complicado. Álvaro Guerrero é uma cristalização de paternalismo negligente, escoriando-se a si mesmo para demonstrar o homem patético por debaixo do bravado. Eligio Meléndez é brilhante como um homem em constante terror, perifericamente malévolo ao mesmo tempo que inspira pena. Por fim, Juan Daniel García Treviño, estrela do “Ya No Estoy Aqui” que representou o México nos Óscares 2021, é um assombro como El Puma. Sua ameaça risonha na primeira cena é prólogo para a ferocidade desinteressada que vem depois, antes que a fúria de um animal encurralado se manifesta. No trabalho destes intérpretes, “La Civil” brilha enquanto joia cinematográfica cheia de complexidades e doloroso ardor.

La Civil, em análise
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Movie title: La Civil

Date published: 10 de October de 2021

Director(s): Teodora Mihai

Actor(s): Arcelia Ramírez, Álvaro Guerrero, Jorge A. Jimenez, Ayelén Muzos, Juan Daniel García Treviño, Alessandra Goñi Bucio, Eligio Meléndez, Mónica Del Carmen, Manuel Villegas, Alicia Candelas

Genre: Drama, 2021, 140 min

  • Cláudio Alves - 65
65

CONCLUSÃO:

Entre a pornografia da miséria alheia e um esforço jornalístico para sensibilizar o mundo sobre os problemas do México atual, “La Civil” é um exercício curioso. Nem tudo funciona no seu engenho fílmico, sendo que as escolhas formais muito prejudicam a eficácia dramatúrgica. No entanto, o trabalho de ator e consequente definição de personagens pintam uma pátina de humanismo sobre todo o exercício. Quiçá Teodora Mihai fizesse melhor figura se continuasse a jornada profissional no panorama documental, mas seu talento na direção de atores merece aplausos.

O MELHOR: O elenco, com especial destaque para a ferocidade de Arcelia Ramírez e o veneno humano que Juan Daniel García Treviño traz ao papel de El Puma.

O PIOR: A fotografia claustrofóbica e o modo como tal escolha desassocia a narrativa política do contexto social e geográfico que lhe dá especificidade.

CA

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