"Animalia" | © Srab Films

FEST ’23 | Animalia, em análise

O cinema apocalíptico tem nova proposta e ponto-de-vista em “Animalia,” também conhecido como “Parmi Nous.” O filme marroquino considera premissa da ficção-científica num prisma islâmico, inortodoxo e cheio de comentário social. A realizadora Sofia Alaoui estreou este seu mais recente trabalho no Festival de Sundance, onde ganhou o prémio Creative Vision pelo júri do programa World Cinema Dramatic. No FEST – New Directors | New Films Festival, realizado em Espinho, “Animalia” encontra-se em competição pelo Lince de Ouro de cinema narrativo.

Em sedas adamascadas suavemente dispostas sobre a barriga grávida, Itto é uma visão incongruente na cozinha atarefada de um casarão. A insistência em por mãos à massa, esquartejando a carne para jantar, provoca o desconforto dos demais, especialmente uma sogra com olho censório. Quando a manga larga do vestido se deixa sujar entre os sucos do frango, cartilagem e farrapos de víscera colados ao tecido, a transgressão torna-se inaceitável. Uma ordem nos lábios da mulher mais velha repõe a harmonia hierárquica, Itta renegada ao idílio índole de uma esposa-troféu. Em tempos, o seu lugar era com as trabalhadoras da cozinha, mas isso é passado.

Sofia Alaoui conta-nos muito sobre as suas personagens pela mera sugestão implícita em códigos de comportamento, contrastes na fala e na composição cénica. Estas primeiras passagens são fulcrais nesse sentido, deixando-nos conhecer a protagonista deslocada das suas origens, casada com um homem rico e assim tornada princesa num deserto sem reis. Apesar do momento de rebeldia que abre a história, depressa entendemos que Itto já se habituou ao oásis, tentando cumprir as regras implícitas com seu novo posto social. Ao jantar, quando deixa cair molho numa toalha requintada, a vergonha é óbvia.

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© Srab Films

Origens aparte, ela quer pertencer ao ambiente palaciano, este mundo onde a acumulação de riqueza é religião, o capital único deus legítimo. Não que se admita tal coisa em voz alta, a igreja grande apagadora de culpa. Neste contexto, Itto e o esposo podem discutir o novo projeto dele em termos dos empregos que vai gerar, boa ação apreciada por Alá, mas os pais do jovem só se interessam pelo novo estatuto potenciado pelo investimento. Passamos pouco mais de dez minutos nesta performance de domesticidade pseudo aristocrática e é suficiente. Toda a história que virá, apoia-se nos alicerces sólidos destas primeiras impressões, economia narrativa com admirável eficiência e grande elegância também.

Em todo o caso, Alaoui e restante equipa não estão somente interessados nas tensões desta família marroquina, crispações jamais verbalizadas sobre o matrimónio transgressor de classes que trouxe Itto até ao seio do esplendor. Dizemos isto porque, passados os movimentos iniciais, a sinfonia de “Animalia” muda de forma radical. Os homens saem de casa em negócios e as mulheres vão às compras, criados dispensados pelo dia, e só Itto fica para trás devido à fragilidade da gravidez. Inicialmente, a solidão celebra-se com música ocidental e expressões de alívio, como se alguma proibição do fôlego fosse levantada – agora podemos todos respirar.

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Só que, pela calada da noite, uma tempestade avizinha-se, virando o mundo de pernas para o ar em modos insidiosos. Não é logo óbvio o que se passa, a fotografia de Noé Bach ganhando uma névoa azulada para complicar os ouros arquitetónicos, e névoas espessas a bloquear o horizonte. A banda-sonora deixa-se ficar irrequieta, um omino na brisa, uma promessa de destruição. Ao vislumbrarmos um pássaro em voo quebrado, dança cambaleante sobre o espelho d’água, um calafrio escorre pela espinha. Há algo errado na pintura, algo maior que um simples fenómeno meteorológico, maior até que a desgraça feita pelo homem.

De manhã, ainda ninguém voltou, mas há mensagens cheias de pânico no telemóvel e descobrem-se notícias de um estado de emergência. A partir daqui, “Animalia” passa a ter a forma de uma viagem desesperante, qual peregrinação através da paisagem marroquina em busca de salvaguarda. Isolada e sozinha, Itto vai tentar reencontrar-se com o marido, descendo do seu paraíso terreno para se aventurar nos infernos económicos de onde outrora escapou. O contacto humano não apaga o sentimento de isolamento, havendo uma parede de privilégio entre a jovem e as várias pessoas no seu caminho. Um motorista relutante não tem papas na língua e dá nome à hipocrisia dela.

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© Srab Films

Fala-se de como aqueles mais afortunados justificam a sua prosperidade, o movimento ascendente da noiva amparado pelo apelo às benesses divinas. A pobreza será provação e marca de pureza, será mais santa que a fortuna. Só que viver a bênção da miséria é muito diferente na carne, na pele de quem a sente do que no pensamento de quem a observa e tenta explicar. Itto foge ao apocalipse, mas também foge à culpa. Por isso mesmo, sua viagem não é somente odisseia de ficção-científica, desdobrando-se na vivência de quem é forçada a acordar e reconhecer a injustiça propagada em toda a direção, incêndio que tudo consome e reduz a nada.

O reencontro da sua nova família a meio da fita não é, assim, o alívio desejado, mas mais lenha para a fogueira que arde internamente. Alaoui terá descrito “Animalia” como um conto de emancipação e suas intenções estão gravadas a ferro e fogo sobre toda a produção, especialmente ao nível do texto. Nesse aspeto, contudo, maiores subtilezas seriam preferíveis, deixando a imagética forte acarretar o fardo temático. Dá-se tal sugestão pois o ponto forte da realizadora é certamente a invocação de tons e atmosferas além do verbal, o clima feito ator, a luz celestial tão digna de reflexão como o diálogo descarado. Já fizemos menção de Bach, mas há outros azes atrás das câmaras que merecem muito aplauso.

Pensemos nos contrastes entre lares, todos concetualizados por Hafid Amy, ou a música hipnotizante de Amine Bouhafa. Pensemos no pandemónio de sons besteiros, pássaros desenfreados e violentos, dando a impressão da realidade em rutura – fantástica criação de Sébastien Savine e Mariette Mathieu-Goudier. Suas contribuições artísticas tornam o apocalipse de “Animalia” numa alucinação inesquecível, história de invasão e formas celestiais articuladas em termos islâmicos. Ou, pelo menos, entendidos nessa perspetiva por personagens que, no desamparo cósmico, tentam encontrar ordem no caos.




Animalia, em análise
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Movie title: Animalia

Date published: 21 de June de 2023

Director(s): Sofia Alaoui

Actor(s): Oumaïma Barid, Mehdi Dehbi, Souad Khouyi, Fouad Oughaou

Genre: Drama, Ficção-Científica, Thriller, 2023, 90 min.

  • Cláudio Alves - 70
70

CONCLUSÃO:

Não se pode acusar “Animalia” de ter falta de ideias. Entre o fogo cruzado de religião e guerra de classes, responsabilidade social e apocalipse vindo dos céus, a longa-metragem de Sofia Alaoui é um turbilhão de conceitos fortes. A execução nem sempre sustenta a imaginação, com o argumento escrito pela mesma o tendão de Aquiles de todo o projeto. Fica muito amor para com as imagens projetadas da normalidade colapsada, um espírito reclamando a sua liberdade quando o desconhecido abre sua enorme boca para engolir o mundo e a esperança é essencial para seguir em frente.

O MELHOR: A conceção visual de um mundo de contrastes sociais em pleno flagelo dos céus, belíssimas imagens que arrepiam tanto pelo que não mostram como pelas suas invocações de destruição enquanto sonho, belo e pavoroso em igual medida.

O PIOR: Além dos jogos linguísticos entre classes, o francês dos mais abastados em contraste com as cadências árabes dos demais, há pouca nuance nos diálogos de “Animalia.” Isso não é tão prejudicial nas passagens iniciais, mais vai-se intensificando na segunda metade da fita até que o texto está em ativa sabotagem contra o restante edifício fílmico. A evolução de Itto sente-se súbita e nem os esforços da atriz ou da realizadora conseguem superar o problema.

CA

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