"Tótem" | © Paloma Productions

FEST ’23 | Tótem, em análise

Estreado na Berlinale deste ano, “Tótem” é a segunda longa-metragem da realizadora mexicana Lila Avilés. Aí, ganhou o prémio do Júri Ecuménico, estando agora na competição pelo Lince de Ouro no FEST – New Directors | New Films Festival em Espinho. Trata-se de uma meditação sobre a perda iminente, prismada através da perspetiva menina e articulada ao longo de um dia complicado na vida de uma família no México contemporâneo. Montserrat Marañon, Marisol Gasé e Iazua Larios compõem parte do elenco principal, mas a maior estrela de todas é a pequena Naíma Sentíes que, com menos de dez anos, é uma das sensações críticas de 2023.

Numa casa-de-banho público, ouvem-se gargalhadas partilhadas entre mãe e filha, a câmara tão perto das faces risadas e rosadas que quase nem nos apercebemos do espaço. O espelho reflete o par e dá-nos contexto, mas só cenográfico. A verdade mais profunda deste momento só será percebida gradualmente, à medida que se esboça a situação das duas. São elas Sol, com sete anos, e sua mãe Lucia, a jovialidade das duas mero penso temporário sobre uma ferida maior a cada dia que passa. Entenderemos os parâmetros desse sentimento mais à frente. Para já, fica esta impressão ligeira, este momento perdido, a caminho da casa onde se prepara festa.

Chegadas ao domicílio, a câmara dispersa pelo espaço, descobrindo vidas perdidas a cada recanto. É exploração feita no mesmo registo de proximidade íntima da primeira cena, distância focal mínima para reduzir o mundo além do ator a um caleidoscópio de pinceladas luminosas. Mesmo assim, apanhamos suficiente imagem para apanhar as tonalidades gerais do lar e seus habitantes. Avilés e seu diretor de fotografia, Diego Tenorio, encontraram uma harmonia de âmbares e amarelos pálidos, traçando o cosmos doméstico em ares de perpétuo crepúsculo. Será impossível negar a beleza ou o conforto. Mas também não se consegue ignorar o sentido de uma tarde moribunda.

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© Paloma Productions

A morte ensombra o palco multidimensional a que Sol e a mãe chegam e não é só o fim de uma avó cuja ausência marca o discurso das filhas e do marido deixados para trás. Quase conseguimos perceber na pele a leve camada de pó que cobre os objetos e as janelas foscas. Sujidade, quiçá, ou memória feita partícula, um véu semitransparente sobre tudo o que a vista alcança. Sonoplastias complexas fazem espelho da estética, como que em busca do pó que o ouvido apanha quando viaja entre muita conversa sobreposta. Todos nesta casa têm algo a dizer, ora queixas ou reminiscências, planos improvisados ou pânicos em sussurro mal ouvido.

Só um quarto permanece límpido e silencioso, despido do ruído em suas várias permutações. Nele está uma figura ainda mais marcante do que a avó defunta, alguém com um pé cá e outro lá. Tona é pai de Sol e é à sua volta que todo o aparato do dia se consigna. É para ele que as tias Nuria e Alejandra querem compor grande aniversário, uma festa de família esticada a amigos e colegas. Longe de se celebrar só a vida, prepara-se uma despedida. Para não olharem diretamente para a razão dos seus esforços, ambas as mulheres se parecem perder em tarefas fúteis – Nuria quer fazer um bolo perfeito para o irmão, Alejandra quer pintar o cabelo para a fotografia.

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A pasteleira do dia é como uma barata tonta na cozinha, a realidade da situação dando-lhe cabo do sistema num ritmo compassado. Para a trazer de volta à realidade, para afugentar os demónios da tragédia e puxar a calma, sua filha Ester está sempre à mão com umas sabedorias sentimentais e a promessa de um abraço. No que se refere às pinturas capilares de Alejandra, ainda se acrescenta ao stress o plano de cerimónia espiritual por uma qualquer curandeira de origem duvidosa. Face aos incensos e manias da filha, o patriarca, Roberto, só tem mal a dizer. Um homem da ciência e da psicologia, misticismos são irritação pura.

O desgraçado já só consegue falar por intervenção mecânica e os netos rabinos estão sempre a roubar-lhe o aparelho para brincar entre si. Um dos genros tenta resolver a situação com presentes e subornos, fomentando as lamúrias do velho no mesmo gesto em que as tenta colmatar. Uma enfermeira faz como Lucia, atravessando os espaços dos vivos e do quase-morto, tentando trazer algum conforto àqueles a quem isso mais falta. Sua presença rasga um solavanco de calma forçada neste caos familiar, pragmatismo seco no meio de um teatro em que as emoções estão altas, nervos à flor da pele e lágrimas sempre no precipício do derrame. Não há exposições bruscas ou diálogos artificiais, só o ritmo meio histérico de um dia sem comparação.

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© Paloma Productions

Dito isso, por muito que Avilés perscrute todas estas personagens num retrato coletivo, Sol é sempre seu ponto de referência mais forte, uma âncora para “Tótem,” um coração pulsante no organismo fílmico. Estamos sempre na corda bamba entre saber tão pouco como ela ou algo mais, ficando na expetação daquele momento em que a inocência infantil será definitivamente rota pelo flagelo de realidades adultas. A aflição dos demais é óbvia, toda a personagem maior tentando esconder a realidade dos factos à pequena, uma mentira branda partilhada por todos. Só que, chegado um ponto, não há nada a fazer.

Mais que os brindes chorosos de colegas e amigos, que o luto prematuro de irmãs devotas, de todo o sentimento pesado e gentil que Avilés e seu elenco conseguem desenhar – mais do que tudo isso, é a dor de uma inocência finada que mais lacera. Por isso mesmo o filme termina com a escolha cliché, mas amplamente justificada, do olhar direto entre Sol e o espetador. Através das chamas, vemos a cara de uma menina prestes a ficar sem pai, uma música atónita cortando com o realismo e o semblante de terror trazido ao de cima. Essa será o nosso último vislumbre de gente. O que fica é vazio, quartos numa matina fria, corredores, tudo sem gente, sem vida. “Tótem” é expressão da perda em inúmeras vertentes, é o contraste entre a filha de espírito quebrado e o mundo que continua, sereno no silêncio. Vira a Terra e precipitam-se manhãs sobre manhãs, é como se nada fosse. Fica a casa, ficam as memórias, ficam os fantasmas de gargalhadas e prantos, dessa festa de aniversário.




Tótem, em análise
totem critica fest

Movie title: Tótem

Date published: 21 de June de 2023

Director(s): Lila Avilés

Actor(s): Naíma Sentíes, Montserrat Marañon, Marisol Gasé, Iazua Larios, Saori Gurza, Mateo Garcia, Alberto Amador, Teresita Sánchez, Juan Francisco Maldonado, Marisela Villarruel

Genre: Drama, 2023, 95 min.

  • Cláudio Alves - 85
  • José Vieira Mendes - 80
83

CONCLUSÃO:

Podem-se fazer comparações entre o mexicano “Tótem” e o “Verão 1993” catalão. Ambos os filmes abordam traumas da perda através da perspetiva infantil, com abordagens formais semelhantes. Contudo, são animais muito distintos além da superfície. Lila Avilés recusa os limites do estudo de personagem europeu para buscar realidades delicadas na sua violência sentimental, o caos de uma casa em alvoroço, a desordem de uma família em crise. Mais do que retratar o indivíduo infantil, Avilés considera a psicologia subjacente ao seu olhar sobre um mundo cheio de lamentos escondidos, dores contidas em eufemismos, piedades adultas sobre os mais novos.

O MELHOR: O elenco como entidade geral, a elegância da montagem, a fotografia que tanto revela pelo modo como evade.

O PIOR: A intimidade poder-se-á sentir-se claustrofóbica, tornando o que deveria ser uma experiência comovente em algo abafado e alienante. Dependerá do espetador.

CA

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