"Disco Boy" | © Films Grand Huit

FEST ’23 | Disco Boy, em análise

“Disco Boy” marca o nono projeto de Giacomo Abbruzzese, realizador italiano com ambições internacionais. Trata-se de uma meditação sobre temas de exílio e colonialismo, forças europeias além-fronteiras e o magnetismo inigualável de Franz Rogowski, ator-sensação na conjetura atual. Na Berlinale deste ano, o filme integrou a Competição Oficial. Apesar de não ter conquistado o Urso de Ouro, conseguiu consagrar-se campeão mesmo assim, ganhando honra especial para contribuição artística. A diretora de fotografia Hélène Louvart levou para casa um Urso de Prata. No FEST – New Directors | New Films Festival, a obra concorre ao Lince de Ouro.

Começamos em paralelismos entre continentes, duas histórias de sobrevivência num mundo moderno onde a fronteira é linha obsoleta quando se tenta escapar à morte. No primeiro movimento, temos Aleksei, um ex-presidiário da Bielorrússia que tenta traçar caminho para a Europa Ocidental sob o pretexto de assistir a um jogo de futebol. Assim ele consegue ludibriar as autoridades polacas, mas passar de território eslavo em direção a França prova ser tarefa mais complicada. A câmara perscruta as tensões e paranoias desta viagem, ora no autocarro cheio de adeptos em frenesim ou na companhia de homens desesperados em corta-mato secreto.

Mikhail faz o percurso ao lado de Aleksei, mas o seu fado será mais infeliz. Na travessia, a violência explode por pressão exterior, um terror de polícia e força militar à caça dos emigrantes ilícitos. Corre a imagem entre arvoredos frios e águas gélidas, riachos em galope feroz e toda uma cacofonia a cair na cabeça dos viajantes como uma catedral colapsa sobre os crentes. Apesar de um forte delineamento das ordens narrativas, é quando se perde o enredo e a noção de personagem que esta sequência mais vinga. Abstração sagra o pesadelo, azuis e verdes, sombras e fogo, uma pintura de pânico pleno onde a câmara faz de pincel.

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© Films Grand Huit

Enfim, o arrebato é momentâneo, com a história impondo sua força ditatorial sobre o filme, rejeitando a amorfia para procurar algo mais concreto. Essa qualidade é descoberta quando Aleksei recorre aos serviços da Legião Estrangeira Francesa, uma promessa de cidadania legítima demasiado aliciante para ignorar. Dedicando-se à vida militar, à ordem dos dias e subordinação perante um colonialismo contemporâneo, Aleksei poderá pertencer à Europa de olhos postos no amanhã. Ele poderá ser um dos poderosos ao invés daqueles tristes sempre sujeitos à vontade de entidades maiores. Sente-se um acordo Faustiano, o sabor a perigo pungente no ar.

É aqui que se dá a primeira rutura de “Disco Boy,” com Abbruzze mudando cenários e personagens para expressar um movimento paralelo ao de Aleksei. Das odisseias europeias, passamos para paisagens africanas feitas campo de batalha, uma Nigéria onde o jovem Jomo se afigura soldado rebelde contra a exploração estrangeira. Presentemente, companhias petrolíferas ameaçam a destruição da sua vila, desamparando toda uma comunidade que não tem para onde se virar. Quando o governo nada faz, cabe à população combater os invasores que veem como ilegítimos, cobiçando terras que não lhes pertencem.

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O ator Morr Ndiaye foi escolhido pois partilha elementos biográficos com a personagem, mas também por isso resistiu à proposta cinematográfica. Só a garantia de um retrato justo lhe deu a segurança necessária para dar vida a Jomo, cuja história se complica com afigurações fantásticas e o conflito cultural contido na figura de uma irmã desejosa de fugir para a cidade, para um modo de viver à europeia. No que se refere à fantasia, temos as tonalidades oníricas, os olhos de cor diferente que os irmãos partilham e os diferem dos restantes. Mesmo no contexto desta narrativa nigeriana, as personagens que acompanhamos parecem flutuar acima do real.

Colidem os mundos e os fios do conto deixam-se entrelaçar quando Aleksei vai rumo à Nigéria em missão legionária, seu encontro com Jomo resultando na morte do homem africano e no pesadelo atormentado do soldado sem nação. A culpa segue-o e também o faz a irmã deixada sozinha, uma aparição nas luzes coloridas da discoteca para onde os guerreiros vão em busca do esquecimento hedonista, da euforia causada pelo álcool e pela dança desinibida. Quiçá se tentam apagar a eles mesmos, os crimes, a justiça injusta. Sente-se o desequilíbrio textual nestas indagações políticas, como se as especificidades de um estudo de personagem impedissem a articulação plena dos temas.

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© Films Grand Huit

Mas, se o discernível jogo simbólico se perde na poesia, ficam as experimentações audiovisuais e a interpretação Franz Rogowski. Como sempre, o alemão demonstra uma capacidade preternatural de sugerir significados complexos sem muito fazer, a expressividade física desenhando murais em mutação constante. E aquela cara qual escultura saturnina, dizendo todo um monólogo de contradições internas sem nada dizer. Em certa medida, só ele resolve o problema central de “Disco Boy,” o balanço entre o homem enquanto elemento histórico-político e a pessoa enquanto personalidade individual com psicologia a condizer.

Um problema secundário será a comparação inevitável com “Beau Travail,” obra-prima de Claire Denis sobre legionários gálicos na África pós-colonial. Quando a câmara segue Aleksei para a pista de dança, então é que o fantasma de Denis Lavant nesse filme mais velho se levanta imponente, pronto a esmagar esta imitação sem vergonha. Não que as duas fitas procurem as mesmas conclusões, ou que, realmente, empreguem os mesmos idiomas estéticos. Chegados a esta questão, invocamos novamente o primor fotográfico, o modo como Hélène Louvart diferencia nações e registos, como encontra novidade nas cenas de dança e exorciza o demónio de “Beau Travail.”

Que venham também aplausos em honra da música, seus estímulos sónicos sempre prontos a sublinhar a diferença entre filmes. Recorrendo ao floreado, é como se a batida de Vitalic servisse de sereia, hipnotizando-nos a nós e a Aleksei, quais marinheiros de Ulisses na vertigem da perdição. No fim de tudo, “Disco Boy” não é triunfo, mas também está longe do fracasso, sendo mais uma prova aos talentos de Rogowski e Louvart. É ainda uma provocação com sentido, orientada pelo argumento co-autorado com a portuguesa Cristèle Alves Meira, brincando com ideias complicadas, enroladas em arame farpado para magoar quem quer que as tente resolver. Prezamos a ambição acima de tudo e esperamos ansiosos pelo próximo esforço de Giacomo Abbruzzese.




Disco Boy, em análise
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Movie title: Disco Boy

Date published: 23 de June de 2023

Director(s): Giacomo Abbruzzese

Actor(s): Franz Rogowski, Morr Ndiaye, Laetitia Ky, Leon Lucev, Robert Wieckiewicz, Matteo Olivetti, Michal Balicki

Genre: Drama, Guerra, 2023, 92 min.

  • Cláudio Alves - 65
  • José Vieira Mendes - 60
63

CONCLUSÃO:

Dança na discoteca sob luz azul e purpura, redopia até ficar tonto e cai no limiar da condição derivativa. Assim faz “Disco Boy,” como que imitando o seu protagonista legionário, sem, no entanto, incorporar todo o mistério que o ator traz ao papel. Ao som dos Vitalic, a imagem contorce-se com belíssima plasticidade, o trabalho de fotografia mais impactante talvez que as intenções do realizador. Mesmo assim, consagra-se um conceito com valor e um aparato cinematográfico cheio de promessa. No futuro, poderemos contar Giacomo Abbruzzese entre os grandes cineastas europeus. Os ingredientes estão lá todos, ou, pelo menos, assim parece.

O MELHOR: A prestação de Rogowski, a fotografia de Louvart.

O PIOR: Esta é a história de Aleksei, com a figura de Jomo servindo só como alicerce para se construir o estudo do soldado. Daí devém um grande desequilíbrio, como se a estrutura de paralelismos com que começa a fita fosse mera desculpa para depois facilitar os assombros. Enfim, fica a ideia de um texto anémico. Quando se chama ao barulho a comparação com “Beau Travail,” então é que cai o Carmo e a Trindade.

CA

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