"War Pony" | © Protagonist Pictures

FEST ’23 | War Pony, em análise

Começa hoje, em Espinho, o FEST – New Directors New Films Festival. O evento continuará até dia 26 de Junho, exibindo obras de realizadores emergentes e uma retrospetiva à cineasta peruana Claudia Llosa. Para abrir as festividades, fica um título fora da competição para o Lince de Ouro. Trata-se de “War Pony,” estreia da atriz Riley Keough na realização, com colaboração de Gina Gammell. Antes de chegar a Portugal, já a fita passou por meio mundo, tendo tido a sua estreia no Festival de Cannes, onde integrou o programa Un Certain Regard e ganhou a Caméra D’Or para melhor primeira longa-metragem.

Foi em 2015, durante a rodagem de “American Honey,” que se plantou a semente um dia destinada a florescer como “War Pony.” No plateau de Andrea Arnold, num dia longo rastejando até noite, Riley Keough terá cruzado caminhos com dois figurantes de origem Lakota – Franklin Sioux Bob e Bill Reddy. Forjou-se amizade entre o trio, quiçá estimulada por um interesse de Keough na sua própria linhagem do lado da mãe, ténue ligação entre a neta de Elvis Presley e a cultura Nativa Americana. Quando as filmagens terminaram, Keough não perdeu contacto com seus companheiros de set, tendo feito questão de os visitar na Reserva de Pine Ridge.

Entre a comunidade Lakota, a atriz e sua grande amiga Gina Gammel passaram um verão de sonho, chegando até a ajudar Sioux Bob com alguns vídeos para a sua nascente carreira musical. À medida que os anos passaram, a relação desenvolveu-se e tombou na parceria criativa, esboços feitos sobre a ideia de retratar a juventude na Reserva. Foi assim que Sioux Bob, Reddy e Gammell iniciaram o processo de escrita, culminando no guião primário de “War Pony,” com Keough à cabeça do projeto como potencial realizadora. No fim, ela partilha esse crédito com a amiga argumentista, seu método conjunto uma espécie de Neorrealismo para a América moderna.

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© Protagonist Pictures

O enredo traça-se em duas linhas entrelaçadas, uma narrativa paralela entre dois rapazes em fases diferentes da vida. Bill está na alvorada da vida adulta, jovem, mas já com filhos, um esquema qualquer sempre na ponta da língua para fazer dinheiro fácil. Seu mais recente projeto envolve um poodle batizado Beast, besta sem nada de besteiro com que Bill planeia fazer negócio, vendendo os seus cachorros. Ao mesmo tempo, vê-se envolvido com um homem de negócios local, um branco na periferia da plantação cujas oportunidades parecem sempre gotejadas de veneno. Trabalhar para ele é fazer parte de um círculo ilícito, é trabalhar de graça para um rei autoproclamado que só paga quando lhe convém.

Outro conto partilha temas sem ser reflexo exato. É o fado de Matho, com doze anos de idade, e uma montanha de memórias traumáticas a pesar-lhe nas costas. Como muitos daqueles condenados à pobreza, seu pai anestesia o sofrimento com droga, um vício em anfetaminas que trespassou do uso para a venda. Apesar de estar muito ausente da vida do filho, a sombra do patriarca sente-se forte, obliterando a luz nos olhos do miúdo e levando-o a seguir as pisadas paternas. São estas vidas tristes unidas por elos socioculturais e temáticas, pouco mais. Só que a câmara não se fica pela ilustração exclusiva da dor e ainda bem que assim é. Também há espaço para graças inesperadas, para humor, para as variações tonais tão comuns da vida.

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Parte dessa flexibilidade depende do trabalho por detrás da câmara, criação de artista branca sempre preocupada com a legitimidade de “War Pony” enquanto visão dos Lakota sobre si mesmos. Em entrevistas, Keough nunca esconde quanto o seu privilégio lhe facilitou a entrada na indústria de entretenimento, mas não será por isso que deixa a herança eclipsar sua ambição artística. Para “War Pony” funcionar nesta expressão legitimada, Keough jamais abordou o projeto enquanto celebridade com uma causa. O intuito foi sempre o de produzir um objeto coletivo, orientado por pessoas exteriores à comunidade, mas edificado com a colaboração direta daqueles dentro do assunto.

A história contada jamais se deixa levar por uma perspetiva forasteira e são pessoas Nativas que dominam o ecrã. Tanto assim é que se escusaram os esforços de atores profissionais. Ao invés disso, Keough e Gammel fizeram tudo para formar um elenco de amadores cujas vidas se refletiam na narrativa, muito ao jeito do que Visconti fez nos anos 40. No entanto, haveria limites ao realismo, querendo-se capturar o real sem o tornar em algo gratuito e feio. Reddy, por exemplo, falou em como não queria um filme em estilo de cinema verité, tudo câmara ao ombro e fotografia desleixada, esse cliché que faz a miséria cénica ainda mais miserável.

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Assim, as realizadoras negoceiam as qualidades viscerais dessa estética negada com um classicismo mais acentuado, um rigor que repudia a noção de etnografia crua. O trabalho de David Gallego muito ajuda, a textura das imagens perfeita polidez digital com uma paleta naturalista. Há gestos de luz reminiscente do western, alguma fantasia ao por-do-sol, um sopro de beleza que jamais se torna em furacão. Assim se escrevem os versos visuais de um poema, seu ritmo e rima construído na montagem de Affonso Gonçalves e Eduardo Serrano. A música acentua a dança entre o lírico e o real desnudado, olhado de forma direta e sincera. O simbolismo animal propõe mais um desvio da norma pseudo-documental, os fantasmas do passado ressurgidos no presente.

Preza-se o esforço, sem deixar de desejar algo um pouco mais concreto. Há acessos de ambiguidade com ar forçado rasgados pelo meio da observação bem conseguida. O resultado final parece gesticular na direção de autenticidade absoluta, mas fica um trago de inconsequência na ponta da língua. Há que aplaudir, contudo, a forma como Keough, Gammell e companhia conseguem um certo crescendo perto do final, tensões económicas e raciais subitamente levadas a um píncaro flamejante. Fica-nos na memória uma noite fatídica e um sentimento de urgência vibrando do ecrã para fora, como que a eletrificar o coração do espetador. Com boas intenções e nobre metodologia, “War Pony” pode não ser obra-prima, mas anuncia o início de muitas carreiras promissores entre suas realizadoras e argumentistas. De olhos postos no futuro, promete-se atenção para com essas carreiras nascentes.




War Pony, em análise
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Movie title: War Pony

Date published: 19 de June de 2023

Director(s): Riley Keough, Gina Gammell

Actor(s): Jojo Bapteise Whiting, LaDainian Crazy Thunder, Robert Stover, Ashley Shelton, Jesse Schmockel, Sprague Hollander, Iona Red Bear, Wilma Colhof, Woodrow Lone Elk, Jeremy Corbin Cottier, Ta-Yamni Long Black Cat

Genre: Drama, 2022, 115 min.

  • Cláudio Alves - 72
72

CONCLUSÃO:

“War Pony” transcende a qualidade de cinema etnográfico para ser algo mais próximo de um autorretrato da comunidade Lakota na Reserva de Pine Ridges. Contudo, essa dimensão seria impossível sem as modulações de classicismo e traços realistas que a equipa de corealizadoras Riley Keough e Gina Gammell trazem ao projeto. Longe da perfeição, o filme constitui um esforço de valor evidente, nem que seja pelas histórias que se digna a contar, pela voz que concede àqueles a quem a expressão é tantas vezes silenciada.

O MELHOR: A variedade tonal que permite acessos de humor entre a sinfonia de vidas sôfregas, o sentido de autenticidade no intuito autoral, o holofote que se brilha sobre realidades raramente dramatizadas em cinema Americano.

O PIOR: O casting de atores amadores dá um toque de realidade, mas também coloca um limite na pujança dramática do filme. Além disso, as ambiguidades narrativas, especialmente no que se refere à relação das duas histórias, não perdoam.

CA

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