Mattia Garaci em "Padrenostro" © Festa do Cinema Italiano

14ª Festa do Cinema Italiano | Retratos da infância em Magari e Padrenostro

“Magari” e “Padrenostro”, retratos sobre a infância, chegaram finalmente a Portugal no âmbito da 14ª Festa do Cinema Italiano.

A Festa do Cinema Italiano continua a apresentar o que melhor se fez no último ano no que toca à arte das imagens em movimento em Itália. O festival continuará até ao final de novembro e até lá a MHD irá lançar algumas análises dos seus principais destaques.

Nos últimos dias tivemos a oportunidade de ver “Magari”, a estreia na realização de Ginevra Elkann, que esteve em Lisboa para falar do seu projeto, e também “Padrenostro”, que neste caso é a primeira longa-metragem do realizador Claudio Noce. Sucessos no Festival de Locarno e no Festival de Veneza respetivamente, os filmes não têm praticamente nada em comum, à excepção de serem fiéis retratos sobre a infância e sobre as suas obsessões.

Trailer de Magari

Magari“, em português quer dizer “Oxalá” / “Talvez” / “quem me dera”, é uma trama semi-biográfica sobre os maiores sonhos das crianças, sobre as suas projeções perante quem as rodeia e sobre os seus primeiros desejos. É uma história sensível e humilde, de uma cineasta cujo nome pode dizer pouco aos leitores portugueses, mas que na verdade é neta Gianni Agnelli – um dos principais rostos da FIAT no século XX. Obviamente não trata-se de uma história sobre o mundo automobilístico, mas um reencontro de Ginevra com o seu passado, com a sua família, com os seus pais Margherita Agnelli e Alain Elkann e os seus irmãos John e Lapo. O filme segue umas férias de inverno, quando os três irmãos são deixados pela mãe ao cuidado do pai, regularmente ausente.

Neste caso os irmãos são Alma (Oro De Commarque), Jean (Ettore Giustiniani) e Sebastiano (Milo Roussel), forçados a mudar de Paris para Itália e reencontrar com o progenitor Carlo (Riccardo Scamarcio) que praticamente os esqueceu. Desde logo, o filme oferece uma crítica à forma como pai e mãe divorciados muitas vezes utilizam os seus filhos como armas para se atacarem um ao outro. Com a chegada das crianças junto do pai, um argumentista baralhado, cruzam caminho com Benedetta (Alba Rohrwacher), a sua assistente e namorada e na comuna italiana de Sabáudia, bem perto de Roma. Aí, passam um inverno bastante nostálgico, onde se tentarão re-aproximar do pai e perceber as pequenas atribulações próprias do final da infância e início da adolescência. Ao nível da cenografia há todo um cuidado em criar espaços onde percebemos a ingenuidade das crianças, seja através das cores frias que dominam em cada cena, seja através das músicas típicas dos anos 80. A infância é um espaço de memória, e no filme de Ginevra, a Itália da nostalgia está inerente à estação do inverno, do frio, como se houvesse intenção de congelar aquele período da vida humana.

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Riccardo Scamarcio e Alba Rohrwacher em “Magari” © Festa do Cinema Italiano

Curiosamente, as personagens adultas de Riccardo Scamarcio e Alba Rohrwacher mantêm-se demasiado opacas ao longo do filme e embora não seja difícil sustentar-se no elenco infantil, “Magari” não acrescenta muito a outros coming-of-age italianos. Sentimos que falta conhecer um pouco mais sobre os adultos Carlo e Benedetta e sobre a relação de ambos, que falta perceber algo mais sobre a separação de Carlo com a sua ex-mulher. O tempo que os adultos passam com as crianças não traz nada de novo, e os minutos mais preciosos são aqueles em que temos apenas o elenco infanto-juvenil diante dos nossos olhos.

O mais pertinente do filme de Ginevra Elkann é que não temos os adultos a refletir sobre os comportamentos das crianças, ou sequer adultos a refletirem sobre os seus comportamentos enquanto crianças. Na realidade, vemos as crianças como são, com a pureza que lhe está associada, mas também como os primeiros erros que também são capazes de cometer. “Magari” é sobre o crescimento, sobre o ganhar consciência desse crescimento que acontece literalmente diante de nós. A criança que ganha maior peso acaba por ser Alma, que com 8 anos é a mais nova dos irmãos, e não compreende tanto o mundo que a rodeia. Há nela uma enorme confusão entre o real e a fantasia, entre o presente e a probabilidade.

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Ettore Giustiniani, Milo Roussel,

O espectador, por já ter sido criança, conseguirá distinguir os desejos de Alma face à realidade, mas ela ainda não o entende. Ela sonha com um amor impossível e sonha com a reaproximação dos pais. Diz mesmo que ainda se lembra de quando os pais estavam juntos, mas é tão nova que essas memórias parecem-se mais a projeções dos seus irmãos Jean e Sebastiano. Aliás, não serão as nossas primeiras memórias construções idílicas feitas pelos nossos familiares? “Magari” sobressai por percebermos que a esfera privada na relação com o lar é essencialmente uma construção geracional e o espectador não quer saltar para dentro da história para dizer a verdade a Alma. Com ela, somos novamente crianças, somos enganados pelas nossas fantasias e esquecemos o real como esse momento frágil e poucas vezes compreensível. “Magari” dá forma aos tantos “oxalás” que dizémos em crianças.

Hoje, qualquer adulto que reflita sobre esses sonhos dourados, vai olhar para eles como memórias não concretizadas ou mesmo como fantasmas que fazem-nos carregar uma eterna nostalgia com o passar dos anos. E não terá sido por acaso que este filme foi escolhido para a 14ª Festa do Cinema Italiano. Os programadores perceberam que, nos últimos anos, muitos autores tentam reencontrar-se com o seu passado e colocar a infância acorrentada, sem conseguir escapar da caixa de Pandora.


Trailer de Padrenostro

Outro filme da Festa do Cinema Italiano é “Padrenostro“, que esteve nomeado ao Leão de Ouro no Festival Internacional de Cinema de Veneza em 2020, onde tive direito a 7 minutos de ovação, e acabou por arrecadar a Copa Volpi para Melhor Ator para Pierfrancesco Favino. A longa-metragem é, à semelhança de “Magari”, um conciliar do realizador com a sua infância, embora transporte-nos para um episódio complexo da história política-social italiana. Isto porque o pai do realizador, Alfonso (no filme interpretado por Favino) era vice-diretor da polícia municipal de Roma e foi alvo de um atentado terrorista levado a cabo pelo grupo de extrema-esquerda Proletários Armados pelo Comunismo em 1976 – no período designado de “anos de chumbo” (Anni di piombo).

Para percebemos o ponto de vista de Claudio perante esse momento, “Padrenostro” desenrola-se sobretudo em torno de Valerio (o extraordinário Mattia Garaci), que com 10 anos apercebe-se que o seu pai está a ser perseguido. É ele o verdadeiro protagonista desta história, e também neste filme há novamente um olhar nostálgico e sensível sobre a infância. Valerio tem medo daquilo que possa acontecer ao pai, tem medo do seu desaparecimento súbito e, de certa forma, receia inclusive o seu crescimento. Isto porque o seu amadurecer corresponde a uma certa percepção do perigo que corre o progenitor. Como tal, Valerio como a nossa Alma de “Magari”, acaba por fazer projeções sobre a sua realidade. Por um lado, para lidar melhor com as atribulações do seu lar e, por outro lado, talvez porque as memórias do próprio Claudio Noce são fragmentadas e sempre colocadas no plano de sonho.

Neste sentido, “Padrenostro” acaba por ser muito mais onírico do que “Magari”, porque durante grande parte da trama também o espectador não sabe distinguir o real do ilusório, nem sequer o visível e do invisível. Além disso, “Padrenostro” consegue ser também um filme que coloca em conflito virilidades,  a de um miúdo que está a amadurecer e de um pai, aparente herói invencível que foge da morte, que parece perder tudo a força e controlo do seu mundo. Alfonso é como qualquer pai que tenta proteger a sua família, mas que, a certo ponto, vê todos os seus esforços fracassados.

Ao longo da projeção “Padrenostro” acaba por perder a sua fluidez, porque o realizador sufoca aquela criança numa fantasia. Até a fantasia chega a dominar muito mais tempo do que a relação entre pai e filho. Percebemos que o cineasta quer contar uma história universal de crescimento, mas faltam mais momentos entre pai e filho, mesmo que a relação seja definitiva pela ausência. Depois falta ainda uma maior contextualização histórica, que esteja além da afirmação de que o filme que o espectador irá ver “é uma história verídica”. Sabemos que é o argumento foi todo escrito num plano subjetivo, mas sendo já adulto e, por ter vivido durante esse período, o cineasta poderia ter-nos dado um filme onde domina esses acontecimentos. Não basta apenas uma calorosa fotografia de Michele D’Attanasio para reconstituir o verão do filme.

Festa do Cinema Italiano

No final da projeção de “Padrenostro” sentimos que faltou mais do que simplesmente o plano nostálgico da infância. Faltou entender a obsessão e insegurança quer de Valerio como de Alfonso, faltou perceber como este é um filme sobre a infância, mas também sobre uma memória coletiva de um país que também ele tem que se aperceber o que se passa, e que precisa de crescer. O realizador talvez queira mostrar que o Valerio do filme não é apenas ele, Claudio, mas poderia ser todas as crianças italianas de terrorismo. Seja como for, tanto “Magari” como “Padrenostro” são filmes que valem a pena assistir pela forma como retratam a infância e buscam nesse momento uma resposta ao que significa ser humano.

A 14ª Festa do Cinema Italiano continua em Lisboa até ao próximo dia 10 de novembro. A sessão de encerramento será feita em colaboração com o Festival Olhares do Mediterrâneo, com a projeção do filme “As Irmãs Macaluso”, de Emma Dante. Também neste filme temos outra leitura sobre a infância e o quanto os acontecimentos dessa fase moldam o nosso futuro. Entretanto, conhece outros filmes a não perder na 14ª Festa do Cinema Italiano, que decorre até ao final do mês em várias cidades portuguesas.

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