Festa do Cinema Francês ’25 | Alpha – Análise
Depois de duas obras tão aclamadas quanto controversas, “Titane” e “Raw”, Julia Ducournau volta a testar os seus limites com “Alpha”, um coming of age pouco usual e um tratado complexo acerca de luto – individual e colectivo.
Julia Ducournau: a sua terceira incursão de sucesso
A 7 de outubro, com direito a sessões simultâneas na Festa do Cinema Francês de Lisboa e do Porto, estreou em Portugal, ou antes, teve primeira exibição em Portugal a longa-metragem “Alpha”, a terceira da autoria de Julia Ducournau. Este melodrama casado com ficção científica coloca-nos num mundo paralelo, perante uma epidemia que evoca a nossa SIDA, mas que apresenta um conjunto de sintomas distintos, mais chocantes e evocativos de body horror, não fosse este um trabalho de Ducournau.
Não obstante, “Alpha” é sem dúvida uma metáfora clara e até pouco discreta para a crise do HIV, projetando medos coletivos e perdas individuais. No coração da narrativa, contudo, temos as dores do processo de crescimento e da adolescência, bem como uma dinâmica familiar muito própria, tocada de perto pelo poder destrutivo do vício e forte impacto da memória e da perda na constituição do comportamento de cada um de nós.
“Alpha” está povoado de muitos fantasmas, mais ou menos literais, e apresenta-nos de forma quase onírica, pesada mas real, palpável, por vezes angustiante. A obra mais divisiva de Ducournau até hoje, não está presente em “Alpha” o valor de choque que nos ameaça devorar em “Titane” e “Raw”, mas algumas das suas sequências são visualmente tão ou mais impactantes.
Sem dúvida, esta terceira entrada na filmografia da cineasta é a mais exigente até hoje do ponto de vista emocional. Sofremos com “Alpha” como não sofremos com nenhuma das outras duas aventuras prévias da autora. E, uma vez mais, o nosso sofrimento é no feminino. Aqui temos, de novo, cinema realizado no feminino e muito pertinente para a própria experiência da mulher – do que é ser uma mulher, de como nos tornamos numa.
A narrativa familiar e apocalíptica de Alpha
A obra apresenta-nos o ponto de vista da jovem Alpha, uma adolescente de 13 anos. Alpha bebe, está prestes a envolver-se romanticamente com um colega e fez há pouco tempo uma tatuagem num sítio pouco seguro e pouco recomendável. Este ato desencadeia um conjunto de consequências inesperadas, em casa e na escola.
Para a mãe de Alpha, interpretada na perfeição pela belíssima Golshifteh Farahani (“Patterson”), este ato, tatuar o corpo e em breve ter o braço infectado, a escorrer sangue, é a ferida aberta que a faz recuar ao seu passado e mergulhar a fundo nos seus traumas. É assim que começa a estrutura do filme, mergulhado em avanços e recuos constantes na narrativa. O “presente” afirma-se dúbio, bem como a realidade, por vezes tornando a história de “Alpha” numa bastante obscura e opaca.
Embora a sua estrutura narrativa possa ser frustrante, “Alpha” é um filme belo, com uma qualidade lírica notável. Tal nota-se particularmente na sua belíssima cena final, pujante, inesquecível, e acima de tudo, é relevante dizer, capaz de “atar” na perfeição todos os complexos fios narrativos.
Por várias razões, devido a esta estrutura confusa e devido à redução no nível de terror e body horror visceral, “Alpha” foi um filme que, aquando a sua estreia na competição de Cannes, não correspondeu às expectativas da maioria dos espectadores. Por isso, é com felicidade que identificamos os seus óbvios méritos: da sua profundidade emocional às suas sequências mais silenciosas e muito bem musicadas, passando pelas suas metáforas – as menos e as mais subtis.
Um elenco sublime na Festa do Cinema Francês
E se Golshifteh Farahani impressiona, o mesmo se pode obviamente dizer dos seus dois grandes co-protagonistas. Tahar Rahim é excelente na pele do Tio Amin, uma personagem poderosa e que preenche deliciosamente o ecrã com cada ação, olhar, gesto. E claro, louvores evidentes para a muito jovem Mélissa Boros, incumbida de carregar o filme às costas.
Mélissa Boros é poderosa na pele da personagem titular, dando a “Alpha” uma complexidade que verdadeiramente se prolonga para lá dos seus anos, com uma maturidade e capacidade crítica excelente. São muitas as provações enfrentadas por esta família fictícia, que aliás se confronta com traumas, medos e perdas que dizem muito sobre o século XXI e o final do século XX, que serve de palco para a trama.
Com uma imagética poderosa e prestações fabulosas e muito emotivas, “Alpha” faz-se sentir visceral, mesmo quando o seu sentido parece ser difícil de atingir por completo.
Em Portugal, “Alpha” tem distribuição garantida pela Alambique. E, boas novas, o filme está quase a chegar às salas comerciais com data de estreia para 30 de outubro de 2025!
Alpha - Análise
Conclusão
Julia Ducournau volta a testar os seus limites com um filme poderoso. “Alpha” é um coming of age, um drama familiar, uma narrativa de terror e scifi elevada e um pesadelo coletivo belo e irreverente (embora seja um que resiste à compreensão e classificação fácil).