Titane, em análise
Julia Ducournau tornou-se na segunda mulher a ganhar a Palma de Ouro em Cannes com “Titane”, um pesadelo psicossexual que choca pelo grotesco e pela sensibilidade, pela violência em comunhão com gentilidade. A obra é também o primeiro filme de terror a ganhar o prémio máximo do Festival de Cannes. Por outras palavras, “Titane” é o evento cinematográfico do ano.
Em tempos, a realizadora francesa Julia Ducournau teve um sonho, quiçá mais pesadelo que fantasia. Nessa alucinação do sono, seu corpo grávido dava à luz partes de automóveis, uma de cada vez. O paradoxo inerente à situação é fascinante, o ato de dar vida corrompido por um nado inerentemente desprovido de vida, metal frio brotado de carne trémula. Fã do cinema de terror desde a meninice, Ducournau acabou por usar esse sonho como ponto de partida para a sua segunda longa-metragem, uma insólita criação que tem de se ver para crer.
Nosso ponto de entrada para este milagre ímpio é Alexia que conhecemos na infância, quando atormenta o pai enquanto ele tenta conduzir. Seus ruídos de maquinaria e pontapés rítmicos despertam a fúria paternal e, num abrir e fechar de olhos, a pequena psicopata é vítima de um acidente rodoviário. No hospital, o crânio é aberto e refeito, sua estrutura óssea agrafada numa espiral de carne retorcida que permanecerá até à vida adulta. Perante a mutilação, esperaríamos que a jovem Alexia passasse a ter medo de carros, mas a reação é oposta.
Saindo da convalescença clínica, ela logo abraça o veículo que lhe possibilitou a primeira de muitas transfigurações. No cosmos de “Titane”, a necessidade de mudar o corpo é instinto visceral, quase erótico, e conceder tais cismas fisionómicos é o maior gesto de amor que há. Neste paradigma bizarro, a pequena Alexia abraça o monstro de metal sobre rodas como se ele fosse seu adorado amante. Passados uns anos, ela não mudou de atitude, fazendo a vida como bailarina exótica que convulsa sensualmente por cima de carroçarias bem-amadas.
Num dos seus primeiros grandes gestos formalistas, Ducournau pontua o início da narrativa principal com um take longo e serpentino. Após as cenas curtas e ritmadas do prólogo, pequenos estalos de caos repentino, conhecemos a Alexia adulta no seu trabalho. Seguindo-a por trás, saboreamos o movimento da mão segura que retorce um espigão de metal no seu cabelo, enquanto, em redor, todo um bacanal de carnalidade mecânica tem lugar. Mulheres dançam em carros, seduzem os clientes e a audiência e jamais a montagem nos deixa pestanejar ou sequer respirar.
Chegada Alexia ao seu carro de eleição, Agathe Rousselle interpreta a coreografia da personagem com uma combinação de fúria e reverência. A máquina é amante, mas também é divindade, um titã de metal que encanta a mulher como os senhores do Olimpo em tempos encantaram os sentidos de civilizações antigas. A dança é uma libação e só nesse rito sacral é que Alexia é livre, é ela mesma. Quando a câmara abandona o palco automobilístico, o corpo da anti-heroína passa a estar tenso e alerta, dominado pela paranoia predatória de uma besta voraz que quer deixar-se dominar pela fome.
Tudo isto acontece nos primeiros minutos de “Titane”, mas revelar muito mais seria trair o espetador que poderá estar a ler o texto sem antes ter visto a fita. Acontece que este é daqueles trabalhos que deve ser visto sem expetativas narrativas, pois parte da diversão devém da provocação lúgubre com que Ducournau e companhia atacam a audiência. Mais do que tentar promover um entendimento empático entre protagonista e seus observadores, a cineasta mergulha de cabeça numa realidade irreal onde a subjetividade de Alexia distorce toda a perceção. Fica só a dica que a luxúria entre organismos e mecanismos se consuma e as consequências são terror divino.
A conceção inspira abominação e Alexia vai-se transfigurar uma e outra vez, em fuga da sua apatia homicida e em fuga de si mesma também. Ela é um ser fluido, uma identidade indefinida algures no ponto que separa o animal e a tecnologia, um ciborgue que procura saciar o vácuo no seu ser com a paixão do caçador. Quando faz amor com uma beldade curiosa, o corpo despido não é mais que um acessório preso ao piercing num mamilo. Alexia faz amor com o metal, não com a carne. Contudo, esses paradigmas serão forçados a mudar quando novas identidades se assumem, a metamorfose nunca para e Alexia nunca é Alexia. Quem é Alexia? Nem ela nem nós sabemos.
Reveses e reviravoltas inspiram novas dimensões de afeto e “Titane” torna-se numa história de mentiras que dizem a verdade, aquelas histórias falsas que se tornam reais quando as contamos a nós mesmos. São as ilusões que criamos para sobreviver e que assim fecundam novas realidades. De filha a órfã a filho perdido e agora encontrado, a nossa heroína amorfa transforma aquilo que o carro não mudou com sua inseminação magicada. Pele é apertada e criam-se novos corpos, novas verdades que não são menos válidas pela tenra juventude da sua existência. Quando um pai diz ao filho que é seu filho, o amor prevalece acima do facto crasso da biologia, também ele uma mentira quando pensamos sobre o assunto.
Perdoem a verbiagem florida, mas tentamos explorar temas essenciais sem revelar como se manifestam em “Titane”. É uma história que atravessa corpo, contando-se através da transformação e não sobre ela. Esventrando o organismo em busca do que está além da superfície pelada, Ducournau inspira uma odisseia intelectual na mente de cada espetador, uma confrontação com o próprio e sua relação com corpo e identidade. Faz tudo isso e é divertido também, cheio de humor inesperado e carinho ainda mais chocante que a carnificina. Jorrando sangue e óleo de motor, gasolina em chamas e sexo transgressivo, o filme é um beijo que queima, doce e doloroso.
Se tentássemos resumir tudo isto na forma de um parágrafo conclusivo, diríamos que “Titane” é um filme ciborgue, uma união gloriosa entre conceitos e matérias que se pensavam impossíveis de fundir. Entre o amor de um Cadillac, a máscara da masculinidade e performance de feminilidade, a proteção de um pai extremoso e o escárnio de outro pater famílias, Alexis ou Adrien vive uma aventura que terá para sempre lugar na história do cinema. Quem julgar que tudo isto é provocação feita com insensato impulso, desengane-se. Toda imagem de “Titane” brota com significado pungente, pulsando um miasma de ideias articuladas em forma de humanidade mutilada e, por isso, feita mais humana do que era.
Titane, em análise
Movie title: Titane
Date published: 23 de October de 2021
Director(s): Julia Ducournau
Actor(s): Agathe Rousselle, Vincent Lindon, Garance Marillier, Laïs Salameh, Mara Cisse, Marin Judas, Diong-Kéba Tacu, Myriem Akheddiou, Bertrand Bonello, Celine Carrère, Adèle Guigue
Genre: Drama, Terror, Ficção-Científica, 2021, 108 min
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Cláudio Alves - 95
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Maggie Silva - 85
CONCLUSÃO:
Na sua mais inesperada reviravolta, a obra afirma-se enquanto testamento humanista, uma obra-prima que eleva Julia Ducournau ao estatuto de mestre do cinema. “Titane” é o filme do ano e quiçá uma das histórias cinematográficas do século. Uma salva de palmas para este pesadelo oleoso e sangrento, cheio de maquinaria pesada e sentimentos delicados.
O MELHOR: A prestação ternurenta de Vincent Lindon, o contraste entre a força maciça de um corpo levado aos extremos da expressão masculina e a vulnerabilidade de um homem que precisa de alguém que aceite o seu amor.
O PIOR: Nada a apontar.
CA