"O Riso e a Faca", de Pedro Pinho compete na Un Certain Regard ©Terratreme

Pedro Pinho e Pedro Cabeleira levam o cinema português a novas geografias e tensões sociais | Diário do Festival de Cannes 2025 (Dia 7)

Passa quase uma semana desta edição de 2025 do Festival de Cannes, o cinema português brilhou ontem com  a apresentação de duas propostas ousadas e contrastantes: O Riso e a Faca, de Pedro Pinho (Un Certain Regard) e Entroncamento, de Pedro Cabeleira (L’Acid). São dois retratos intensos sobre identidade, marginalidade e pertença.

O cinema português continua a afirmar-se no circuito internacional com uma força rara, curiosamente mais do que internamente. Nas projeções de ontem, um sábado muito agitado aliás, dois filmes portugueses, destacaram-se por motivos distintos, mas complementares: O Riso e a Faca, de Pedro Pinho (A Fábrica de Nada), na secção Un Certain Regard (com direito a prémios competitivos), e Entroncamento, de Pedro Cabeleira (Verão Danado), no programa paralelo da associação L’ACID de realizadores.

Dois Pedros, duas geografias, um cinema em expansão

São dois olhares singulares sobre mundos à margem — um filmado na Guiné-Bissau, o outro numa das mais emblemáticas pequenas cidades do interior do País e quase hoje uma periferia urbana — que juntos traçam um retrato inquietante e urgente da nossa contemporaneidade.

Cléa Diára no filme de Pedro Pinho
Diára (Cléa Diára) é para Sérgio uma personalidade imprevisível. © Météore Films

“O Riso e a Faca”: Uma história inquietante e misteriosa

Sergio (Sérgio Coragem) viaja de carro, para uma metrópole da África Ocidental, que aos povos ficamos a saber que é Bissau, na Guiné, para trabalhar como engenheiro ambiental e para realizar um relatório sobre os impactos da construção de uma estrada entre o deserto e a floresta. 

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No início desintegrado, Sérgio vai aos poucos criando laços com dois moradores da cidade: primeiro com Gui (Jonathan Guilherme) um artista brasileiro, que se mudou para lá e depois com uma fugidia e imprevisível Diara (Cléo Diára) com quem estabelece um relacionamento íntimo, mas desequilibrado. Entretanto, Sérgio descobre que um engenheiro italiano, designado para a mesma missão que ele alguns meses antes, desapareceu misteriosamente.

O Riso e a Faca de Pedro Pinho
Em ‘O Riso e a Faca”, Diára e Sérgio estabelecem uma relação sentimental desequilibrada. © Météore Films

A estrada que conduz à perplexidade

Com 3h30 de duração, O Riso e a Faca é uma viagem densa e inesperadamente por vezes até cómica pela África Ocidental, contada através dos olhos do Sérgio, um engenheiro português que tenta encontrar o seu lugar num mundo que o rejeita subtilmente. A nova longa-metragem de Pedro Pinho aposta na polifonia, pois além de Sérgio também Diara e Guilherme, por exemplo, têm direito a cenas autónomas e que cenas; e na observação etnográfica como forma de desmantelar os clichés do cinema ocidental sobre o “Outro”. Ao invés de uma narrativa colonial de redenção, Pinho expõe o ridículo da intervenção humanitária com uma linguagem híbrida que desafia a categorização.

O Riso e a Faca
Pinho filma a Guiné-Bissau com tempo, espaço e escuta. © Météore Films

Corrupção e zonas cinzentas

O protagonista de O Riso e a Faca é encarnado por Sérgio Coragem (numa interpretação controlada e precisa), vê-se confrontado com a sua própria irrelevância, tornando-se um espelho para o espectador europeu. Pinho filma a Guiné-Bissau com tempo, espaço e escuta. Há humor (sobretudo físico), desconforto moral e uma ausência deliberada de clímax.

Em vez de respostas, o realizador propõe interrogações: “O que significa estar aqui, vindo de outro lugar?” A sua proposta, é um cinema de vigilância ética, onde o realismo social se funde completamente com o artifício da mise-en-scène. Não há catarses, há apenas zonas cinzentas, estradas por construir, rios por atravessar e corrupção no seio das elites africanas.

Entroncamento
Laura (Ana Vilaça) foge de um passado turbulento. ©Speak/Divulgação

“Entroncamento”: A noite e as suas margens

Do calor africano de O Riso e a Faca, passamos à noite húmida do Ribatejo, onde Entroncamento de Pedro Cabeleira, nos mergulha num retrato coral de vidas à deriva. Acompanhamos Laura (Ana Vilaça), uma jovem que vinda de um bairro problemático do Porto, procura nesta cidade, onde tem família mudar de vida e se vê enredada num ecossistema de pequenos tráficos, desconfiança social e ausências estruturais.

Num registo mais tradicional, mas não menos envolvente, Cabeleira aposta numa realização crua e visceral, marcada por interpretações autênticas (como a de Cléo Diára, que também é actriz neste filme), muitas vezes de não-profissionais.

Entroncamento
“Entroncamento” combina actores com não profissionais. ©OPTEC Filmes

Uma juventude à deriva

Apesar da densidade temática — criminalidade, racismo, precariedade — o filme evita o sensacionalismo, preferindo observar as rotinas e os micro-gestos de uma juventude à deriva. Se por vezes o argumento cede à dispersão e deixa personagens por desenvolver, a força das cenas individuais, repletas de humanidade, resgata o projeto. Há ecos de Cassavetes, mas também de Pedro Costa, num retrato de comunidade onde a violência surge mais como murmúrio do que como explosão.

Entroncamento
Em “Entroncamento”, Henrique Barbosa é um dos actores de etnia cigana. ©OPTEC FILMES

Um cinema entre geografias, entre urgências

A apresentação das 3 curtas metragens nacionais de Inês Nunes (Solidão dos Lagartos) e de Gabriel Abrantes (Argumentos a Favor do Amor), ambas na Competição e O Pássaro de Dentro, de Laura Anahory, na secção Cinef, estão programadas para quarta e quinta da semana que vem. O Festival de Cannes 2025 vai continuar a mostrar um cinema português em expansão geográfica e estética.

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Se Pedro Pinho (O Riso e a Faca) continua a explorar os legados coloniais com ousadia formal e complexidade moral, Pedro Cabeleira (Entroncamento) aposta na proximidade com os corpos e vozes de uma juventude esquecida, com uma sensibilidade crua e afetuosa. Ambos os filmes recusam finais redentores, preferindo a ambiguidade e o questionamento como ferramentas de resistência narrativa. Mais do que histórias fechadas, entregam-nos mapas inacabados — e, talvez por isso, tão próximos da realidade.

JVM


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