Rick and Morty 3×07, em análise
Em 22 minutos, e num episódio marginal, “The Ricklantis Mixup” construiu um mundo capaz de expor aquilo que destrói o nosso. Justin Roiland e Dan Harmon desafiaram o impossível e fizeram nascer o melhor episódio de “Rick and Morty”.
O hábito de devorarmos, engolirmos mesmo de um só trago, as séries que consumimos, tem esmorecido as fronteiras entre episódios. Quantas não terão sido as vezes em que, aptos para avaliar uma temporada como um todo e agrupar episódios como manchas, não terão sido vocês incapazes de posicionar o acontecimento X da personagem Y no episódio Z?
A cultura Netflix e a gestão que hoje cada espectador pode fazer da sua agenda de séries contribui para isto. Mas vamos falar daquilo que temos, hoje, tendência para esquecer – o episódio, individualizado.
Em 2017, “Game of Thrones” provocou-nos um nó na barriga enquanto Jaime Lannister cavalgava em direção a Daenerys. “Master of None” deu-nos, entre vários excertos de liberdade criativa, um “Amarsi Un Po” capaz de fazer o mais insensível extraterrestre apaixonar-se por Francesca. “Better Call Saul” brilhou nos episódios em que melhor destruiu a relação dos irmãos McGill, “BoJack Horseman” animou a demência e “The Lying Detective” entrou para o lote de melhores casos resolvidos por Sherlock. Dissemos adeus a “The Leftovers”, “Halt and Catch Fire” e “Orphan Black” e olá a Ed Kemper, em “Mindhunter”. E podíamos continuar.
Um dos melhores episódios do ano, senão mesmo o melhor, surgiu numa série que desenvolveu uma assinalável legião de fãs. Uma série capaz de interferir com a política de produto do McDonald’s. Vamos falar sobre “Rick and Morty”. Vamos falar sobre “The Ricklantis Mixup”, o milagre televisivo de 2017.
A criação de Justin Roiland e Dan Harmon, homenagem clara ao “Regresso ao Futuro” num divertido terror científico e cósmico, bate-se com “Black Mirror” pelo título de melhor coletânea de contos de ficção científica da atualidade. E não se deixem enganar: as aventuras de Rick Sanchez e do seu neto Morty podem ser tão ou mais profundas, filosóficas e densas quanto os episódios mais traumatizantes escritos por Charlie Brooker.
O sétimo episódio desta temporada de “Rick and Morty”, a terceira depois de uma espera de dois anos, tem, como tantos outros, 22 minutos. No entanto, em menos de meia hora apresenta-nos um mundo totalmente novo e vários subplots riquíssimos, numa cidadela inundada por diferentes Ricks e diferentes Mortys. Ou seja, uma vez que Justin Roiland faz a voz dos dois protagonistas, “The Ricklantis Mixup” são 22 minutos do autor a falar sozinho, em nome de diversas versões do avô e neto.
Um episódio como este, por mais isolado que seja (não incluindo praticamente os “verdadeiros” Rick e Morty), não podia acontecer mais cedo. Conhecer aprofundadamente o que caracteriza os nossos “Rick and Morty”, e a dinâmica entre ambos, e por conseguinte entre todos os outros, tornou possível apresentar os contos da cidadela.
Política, corrupção, capitalismo, luta de classes, segregação e minorias. “The Ricklantis Mixup” incorpora tudo isto. E serve-se de umas eleições para tal, convidando o espectador a torcer pelo underdog, o único candidato Morty numa corrida a um lugar historicamente destinado a Ricks.
Junta ao subplot campanha presidencial, um olhar sobre o sistema de ensino na cidadela. Uma escola que treina Mortys até virem a ter o seu Rick e na qual seguimos quatro miúdos a deambular à “Stand By Me”. Há ainda uma dupla de agentes Rick e Morty num mergulho ciberpunk ao submundo das ruas, e um Rick que trabalha numa fábrica, e que se farta do sistema.
Em vinte e dois minutos, um mundo no qual facilmente estaríamos três horas. Uma história com princípio, meio e fim, e que em momento algum parece apressada. Um conjunto de personagens novas, num equilíbrio impressionante e inteligente entre individualizar cada Rick e cada Morty, preservando a tradicional dominância das diferentes versões do homem que está sempre um passo à frente dos outros, mas que vê um Morty, mestre nos discursos e na manipulação, tornar-se uma sublime revelação num episódio de desfechos frustrantes e falsas aparências.
“The Ricklantis Mixup” é um sólido 10 em 10. É um alerta, consciente do atual contexto político norte-americano. É o balanço perfeito entre esperança e desânimo. Um amargo assalto ao poder e uma revolução condenada a tornar-se um loop sonhado. É genial do ponto de vista estrutural e na análise que faz à sociedade e às várias instituições sociais.
Há “The Wire”, “Black Mirror”, “Stand by Me”, “Training Day” e até pequenos inputs como Hogwarts e Willy Wonka num episódio que marca 2017 e que estabelece um patamar de qualidade ao qual será difícil Roiland e Harmon regressarem. E é no mínimo peculiar o facto de ser uma série de animação a que melhor fotografou este ano a realidade social e política. Embora os discursos “sejam para as campanhas”, este tem que ser aqui citado:
Não vejo uma divisão entre Ricks e Mortys (…) A divisão que eu vejo é entre os Ricks e Mortys que gostam da cidadela dividida, e o resto de nós. Vejo-o em todo o lado aonde vou. Vejo-o nas nossas escolas, onde eles ensinam aos Mortys que somos todos iguais, porque se sentem ameaçados por aquilo que nos faz únicos. Vejo-o nas nossas ruas: onde dão armas aos Mortys, para que estejamos ocupados a lutar entre nós em vez de combater verdadeiras injustiças. Vejo-o nas nossas fábricas: onde os Ricks trabalham por uma fração do salário dos chefes, embora sejam idênticos e tenham o mesmo QI.
O problema da cidadela não é o facto do número de Mortys sem-abrigo ter ultrapassado o número de Ricks. O problema da cidadela são os Ricks e Mortys que se alimentam da morte da cidadela. Mas eu tenho uma mensagem para eles, para os Ricks e Mortys que a mantêm viva. Uma mensagem dos Ricks e Mortys que acreditam na cidadela para aqueles que não acreditam: nós somos mais.
Mas então e se este discurso fosse… de um vilão?
RICK AND MORTY | “The Ricklantis Mixup” e o desafio do impossível
Que lugar ocupa “Rick and Morty” entre as melhores séries da atualidade? Há algum episódio superior a “The Ricklantis Mixup”?
Rick and Morty 3x07 - The Ricklantis Mixup
Name: "The Ricklantis Mixup"
Description: Enquanto Rick and Morty vão numa aventura até Atlantis, vemos a reconstrução da cidadela a partir de vários pontos de vista.
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Miguel Pontares - 95
Um resumo
O MELHOR – “The Ricklantis Mixup” faz em 22 minutos o que muitas séries não conseguem fazer ao longo de várias temporadas. É genial do ponto de vista estrutural e na análise que faz à sociedade e às várias instituições sociais. Apresenta um universo, desenvolve personagens e interliga subplots. É o melhor monólogo da carreira de Justin Roiland.
O PIOR – A duração. A brilhante fotografia sociopolítica da cidadela podia facilmente tornar-se um habitat nosso durante horas. Aquele conjunto de personagens merecia quase uma temporada inteira, e o facto de “Rick and Morty” adiar o regresso a este mundo para a temporada 4 contribuiu para uma certa desilusão nos três episódios finais.