Adeus Franco Zeffirelli

Adeus Franco Zeffirelli (1923-2019)

Franco Zeffirelli, o realizador italiano que reinventou a arte de encenar Shakespeare no grande ecrã, morreu no passado dia 15 de junho, com 96 anos.

Foi na Toscana, em 1923, que Franco Zefirelli nasceu. O filho ilegítimo de uma costureira e um comerciante de tecidos, ambos casados com outras pessoas, Gian Franco Corsi Zeffirelli ganhou o seu apelido de uma passagem de uma das óperas de Mozart. Sua mãe assim o batizou, antes de morrer quando o filho tinha apenas seis anos, deixando-o sozinho e aos cuidados de uma comunidade de ingleses a viver em Itália, as Scorpioni. Sob a tutela destas endinheiradas senhoras da terra de Sua Majestade, Zeffirelli cresceu rodeado de cultura e Arte, de História e privilégio.

Muitos anos mais tarde, em 1999, depois de ter estudado na Academia de Belas Artes e na Universidade de Florença, depois de se ter afirmado como um dos grandes mestres do cinema italiano, o órfão educado pelas Scorpioni viria a imortalizar a memória das suas mentoras e mecenas num filme chamado “Chá com Mussolini”. Afinal, com uma história destas e Leonardo Da Vinci como um antepassado longínquo, Franco Zefirelli tinha uma daquelas vidas que parece destinada a um dia acabar projetada numa tela.

Antes de tal cinebiografia e glória internacional, mesmo antes de realizar o seu primeiro filme, Zeffirelli muito trabalhou e viveu. Nos tempos de guerra, ele lutou contra os fascistas, como um membro da Resistência Italiana e como um intérprete para soldados escoceses. Nos escombros de uma Itália destruída, Zeffirelli saltou de estudos sobre arquitetura para o mundo do teatro, trabalhando em cenografias. Foi nesse universo dos palcos e telões pintados que Zeffirelli chamou a atenção a Luchino Visconti e assegurou trabalho nas filmagens de “La terra trema”.

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A FERA AMANSADA (1967)

Visconti era um homem de sangue aristocrata, convicções progressistas, educado no seio das elites culturais italianas e com um pé firmemente posto no mundo do teatro e outro no cinema. Seus gostos e seus métodos viriam a influenciar Zeffirelli para o resto da sua vida, especialmente no que diz respeito à sumptuosa mise-en-scène e estilização operática. O jovem artista também colaborou com De Sica e Rossellini, mas nenhum deles o inspirou tanto como Visconti, especialmente no que diz respeito à estética de Zeffirelli.

Depois de anos nos teatros de Nova Iorque e em algumas produções cinematográficas, Franco Zeffirelli finalmente pode transferir as suas ideias dos palcos para o cinema na plenitude, por meio de uma adaptação de uma comédia de William Shakespeare, “A Fera Amansada”. Com Elizabeth Taylor e Richard Burton no centro, esta era uma produção de prestígio e furor em Hollywood, mas Zeffirelli escolheu uma equipa técnica composta principalmente por profissionais italianos, como o lendário figurinista Danilo Donati.

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O resultado final, que não se tratou do primeiro filme do realizador, conseguiu moldar o texto misógino e o casal mais volátil dos cinemas de modo a produzir uma comédia tão inteligente como fogosa. O sucesso dessa experiência e o amor que Zeffirelli sempre tinha mostrado pela obra de Shakespeare levaram o realizador a arriscar a sorte noutra adaptação do cânone do Bardo. Desta vez, contudo, ele fugiu à norma de Hollywood e escolheu uma abordagem que tanto tinha de extravagância operática como de naturalismo cinematográfico, começando pelo casting de adolescentes com pouca experiência para interpretar “Romeu e Julieta”.

Sensual e romântico, o filme tornou-se um fenómeno e revolucionou o modo como Shakespeare podia ser feito em Hollywood. Em 1969, Franco Zeffirelli já tinha sido nomeado para um Óscar e esculpido um lugar para si na consciência pública como um dos grandes realizadores italianos do momento. Apesar disso, ele nunca virou as costas aos palcos e as décadas seguintes viriam a ser marcadas por sumptuosos projetos cinematográficos, teatrais e até televisivos, uns atrás dos outros.

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ROMEU E JULIETA (1968)

“S. Francisco de Assis”, “La Traviata”, “Otelo”, “Hamlet”, “Storia di uma capinera”, “Jane Eyre” e “Chá com Mussolini” foram algumas das obras mais visualmente grandiosas de Zeffirelli. É certo que, fora do contexto de fausto estético, o cinema deste mestre italiano nem sempre foi exemplar, mas é impossível negar o seu apelo. A sua pseudo autobiografia e homenagem às Scorpioni viria a ser a sua última longa-metragem, mas outros projetos mais pequenos se seguiriam. Tal como Visconti, Zeffirelli sempre manteve presença no teatro, especialmente no que diz respeito à produção de óperas.

Apesar de toda esta glória, a vida de Zeffirelli não foi somente a história inspiradora de um órfão humilde a escalar a parede escarpada em direção ao sucesso artístico. Apesar de ter assumido a sua homossexualidade nos anos 90, o realizador nunca foi muito celebrado pela comunidade queer, em parte pelo seu apoio de políticas conservadoras, incluindo legislação antiaborto e contra os direitos de indivíduos LGBT. Além disso, várias acusações de assédio sexual por parte de pessoas que trabalharam com o mestre cineasta muito mancharam o seu legado e reputação.

Independentemente de tais questões, Franco Zeffirelli foi um grande artista que trouxe imagens extraordinariamente belas aos palcos e aos ecrãs. Sua contribuição para a presença de Shakespeare no cinema é algo particularmente importante. Nestes dias imediatamente a seguir à perda do realizador, que morreu em Roma com 96 anos, lembremos então essa mesma beleza. Lembremos o carisma de Elizabeth Taylor aos gritos num vestido renascentista, lembremos Romeu e Julieta nos lençóis da cama nupcial, qual pintura viva, lembremos as festas opulentes ao som de Verdi e o glamour das Scorpioni.

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CHÁ COM MUSSOLINI (1999)

Franco Zeffirelli deixa para trás uma filmografia magnífica. Qual dos seus filmes é o teu predileto? Deixa a resposta nos comentários.

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