"Hunted" | © MotelX

MOTELx ’20 | Hunted, em análise

Hunted, também conhecido como “Cosmogonie”, é um conto de terror e violência sexual que tenta revirar os preceitos de um género há muito petrificado no âmbar do sexismo. Este é um dos filmes na competição para Melhor Longa-Metragem Europeia do MOTELx deste ano.

A brutalização de corpos femininos é uma infeliz constante do cinema de terror. Desde a génese do género, que mulheres têm sido as vítimas preferidas dos monstros que assombram o grande ecrã. Nem sempre isto teve conotações descaradamente sexuais, mas os anos 70 e 80 trouxeram consigo dois subgéneros onde a relação entre sexualidade e violência estão intrinsecamente conectadas. Primeiro, há aquelas muitas narrativas sobre vítimas de violação que se engendram em missões vingativas. Em segundo, temos o slasher e sua punição de promiscuidade e defesa glorificante da rapariga virgem.

Sim, o filme de terror é um pesadelo de angústias, ansiedades e preconceitos psicossexuais que, longe do prestígio do drama ou do realismo, se podem mostrar em máxima feiura perante as audiências. Apesar disso, os últimos anos têm visto uma mudança de paradigmas na indústria cinematográfica à escala mundial e também o terror sofreu consequências. Finalmente, depois de um século de mortificação feminina raramente criticada, cineastas predispuseram-se a questionar este modelo de história assustadora. Ou melhor, financiadores e espetadores mostraram-se mais recetivos que o usual. Afinal, um pouco de pesquisa mostra-nos como sempre houve cinema feminista, mesmo no terror.

hunted cosmogonie critica motelx
© MotelX

Todo este devaneio histórico serve como contexto para o novo filme do cineasta e artista plástico belga Vincente Paronnaud. “Hunted” foi escrito há vários anos, mas só na atual conjetura cultural pode seguir para a frente com seu conto de folclore ancestral a manifestar-se pelo meio de um conto de violência sexual misógina. Muito sumariamente, o filme, como o título anglófono indica, conta a história de uma caçada. Só que, ao invés de um animal selvagem, é a mulher formosa quem é perseguida pelo predador feroz.

Eve é uma profissional francesa que se encontra na Bélgica a supervisionar um projeto de construção. Devido ao seu sexo, ela enfrenta regulares microagressões no trabalho, tanto da parte dos capatazes que a ignoram ou do patrão que a acha incapaz de fazer o trabalho. Uma noite, frustrada com o emprego e farta de receber chamadas ansiosas de um namorado distante, ela decide ir tomar uns copos e deixa o telemóvel no apartamento. Num corriqueiro bar, ela encontra com um homem minimamente atraente que a seduz até ao carro. Infelizmente, a noite de Eve depressa se torna num pesadelo.

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Esse homem sem nome rapta a mulher com a ajuda de um compincha amedrontado. Inicialmente, parece que ela vai conseguir escapar, mas, depois da fuga acabar com um homicídio colateral, Eve vê-se presa no porta-bagagens e rumo a destino incerto. É aí que a sua história abominável se cruza com o folclore primordial. Na passagem pelo arvoredo, a Natureza como que se manifesta em defesa da inocente e a viatura é capotada para os confins da floresta. A caça começa então, com presa a fugir do predador e quantidades industriais de sangue falso a serem derramadas pela paisagem.

Os ingredientes para um novo clássico do terror europeu são facilmente encontrados em “Hunted”. A premissa tem potencial e os atores, especialmente Lucie Debay e Arieh Worthalter nos papéis principais, dão o corpo ao manifesto. Infelizmente, Paronnaud tem dificuldade em negociar o mito e a tortura pornográfica, entre balançar a crítica subversiva e a espetacularidade da carne mortificada. Quando os papéis se invertem e o caçador se torna em caçado, o filme ganha novo ímpeto, mas o estilo descamba em demasia do realismo para uma estilização carnavalesca que choca mais do que perturba.

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A melhor componente do filme é mesmo a sua inclusão do mito antigo, da cosmogonia natural que se infiltra pela misoginia terrena e impõe justiça no templo da floresta. A abertura de “Hunted”, onde se conta uma história de homens religiosos a serem castigados por lobos depois de um ataque canibal a uma jovem, é o ponto alto da obra. Aí, as marcas da arte plástica e desenho gráfico de Paronnaud têm plena expressão com um teatro de sombras e silhuetas, onde animação e pessoas se juntam num espetáculo de carnificina justiceira. Oxalá todo o filme estivesse à altura desse prólogo.

Hunted, em análise
hunted cosmogonie critica motelx

Movie title: Cosmogonie

Date published: 10 de September de 2020

Director(s): Vincent Paronnaud

Actor(s): Lucie Debay, Arieh Worthalter, Ciaran O'Brien, Christian Bronchart, Dianne Weller, Jean-Mathias Pondant

Genre: Ação, Thriller, Terror, 2020, 87 min

  • Cláudio Alves - 55
55

CONCLUSÃO:

“Hunted” tem potencial, mas nunca chega aos calcanhares da sua primeira cena. Depois disso, o filme só piora, mesmo que tenha alguns momentos brilhantes aqui e ali. Na sua tentativa de fazer uma subversão dos paradigmas do terror e seu amor pela violência contra mulheres, os cineastas acabaram por criar um espetáculo de sofrimento feminino. É uma transgressão que cai em tradição sem se aperceber disso, uma rebeldia reacionária e profundamente sabotada pelos piores instintos dos artistas. Mesmo assim, está bem construída e entretém.

O MELHOR: O prólogo hibridizado de animação e jogo de sombras.

O PIOR: Quando o gosto pelo sangue faz com que a crítica à misoginia vá borda da fora. O cerebral morre e o monstro da audiência sedenta de sangue sai vitoriosa no fim. É empolgante, mas irritantemente reacionário nas suas reviravoltas de enredo e tom. As alusões ao capuchinho vermelho também eram desnecessárias, tão óbvias que são.

CA

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