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One from the Heart: Reprise, de Francis Ford Coppola – Crítica da nova versão, restaurada em 4K

O clássico “One from the Heart” de Francis Ford Coppola está de regresso, agora com uma verão restaurada imperdível.

Escrevo esta crítica, ou melhor, este depoimento apaixonado sobre uma obra ímpar do cinema, na semana em que se comemora nos EUA o Dia da Independência, o feriado do 4 de Julho, dia que marca a História do país mas igualmente, para o que nos interessa aqui, o pano de fundo em que decorre a ação de “One From The Heart: Reprise” (Do Fundo do Coração: Reprise), 2023, nova versão revista, restaurada em 4K e, neste caso, não ampliada mas sim subtilmente depurada do clássico “One From The Heart” (Do Fundo do Coração), 1982, de Francis Ford Coppola.

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Este magnífico melodrama sobre os amores e desamores de um casal igual a mil outros, que ganha a vida e habita na cidade mais do que artificial onde imperam o vício do jogo e os jogos do vício, Las Vegas, estreou a sua primeira versão a 15 de Janeiro de 1982, no Radio City Music Hall de Nova Iorque depois de ser dada a conhecer uma cópia inacabada do filme, nos meandros da indústria cinematográfica, na cidade de San Francisco e no mês de Agosto de 1981.

Reinventar o Melodrama na Las Vegas Reconstruída, ou o Falso Verdadeiro…

Desde cedo que o realizador iria enfrentar alguns sobressaltos, nomeadamente no campo dos apoios dados e retirados pela Paramount, acabando aliás por estabelecer um acordo de distribuição não com aquele estúdio mas sim com a Columbia Pictures. Tudo isto porém não passaria de business as usual, nas suas por vezes amargas facetas, se não existisse uma sombra maior a pairar sobre a produção que Francis Ford Coppola desejava apresentar como a quintessência da sua arte de produzir e realizar, o seu legítimo desejo de contar e controlar ao pormenor os cordelinhos que sustentam uma história e, sobretudo, como montra espectacular do seu sonho utópico e visionário de recuperar e reinventar uma nova ordem, na prática um novo studio-system, que lhe garantisse a maior liberdade de criação num quadro industrial onde fosse capaz de se impor aos pilares da indústria, posicionando-se como um contraponto aos executivos dos estúdios que na época já não correspondiam ao conceito da chamada dream factory.

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© Zoetrope Studios

Na verdade, nem os ditos estúdios albergavam os nomes que outrora ergueram, para o bem e para o mal, para o melhor e para o pior, a marca Hollywood. De facto, neste contexto “One From The Heart” (que foi objecto de uma nova revisão e restauro em 2003) foi seguramente o mais pessoal dos seus projectos e a menina bonita dos olhos do produtor, argumentista e realizador que anos antes fundara a American Zoetrope, depois a Omni Zoetrope, e finalmente adquirira a “cidade do cinema” que baptizou de Zoetrope Studios.

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Por essa época já alcançara grandes sucessos como “The Godfather” (O Padrinho), Parte I (1972) e Parte II (1974), e faziam-se sentir ainda os efeitos de um dos mais ambiciosos projectos relacionados com a Guerra do Vietname, o desmesurado e magnífico “Apocalypse Now”, 1979. Mas, nestas coisas da paixão, quando elas se misturam com ambições não correspondidas, particularmente no mercado interno, o risco de falhar os objectivos iniciais aumenta exponencialmente. E foi assim que o insucesso comercial do filme foi um dos grandes responsáveis pela relativa interrupção de um movimento que na altura poderia dar um salto em frente e revolucionar o modo como o cinema passaria a ser produzido, adaptando para a prática e planeamento cinematográficos algo que cruzava modelos de produção do audiovisual para o pequeno ecrã (nomeadamente a parafernália de opções no domínio da computação e do vídeo), o conceito de “cinema electrónico” que, mesmo no contexto analógico, antecipava em muitos aspectos a revolução digital que hoje sabemos veio para ficar. Revolução que, alterou através da introdução de novos métodos e meios de produção, o modo como se passou a materializar a maioria dos novos horizontes da expressão fílmica.


Tecnologias novas geram novas soluções fílmicas, no fundo novas linguagens e perspectivas criativas, quer no domínio da ficção quer no do documentário e da animação (Francis Ford Coppola sabia-o e defendia esta premissa) e o resultado dessa nova conjuntura em “Do Fundo do Coração” pode ser visto agora e de novo no esplendor do restauro realizado em 4K, a partir do negativo original obtido durante a rodagem (e não a partir de um internegativo), com uma resolução de 3840 x 2160p e a proporção fotográfica (aspect ratio) original de 1:37:1. No som reencontramos mais uma vez a fabulosa banda sonora musical composta por Tom Waits, onde ele canta em parceria com aquela que parecia ser a mais improvável das escolhas, a country singer Crystal Gayle.

Duas prestações em estado de graça que surgem aqui, mais uma vez e sempre, inovadoras, e que devem ser ouvidas na amplificação de uma boa sala de cinema como aquilo que na verdade sempre quiseram ser, peças de uma dialéctica operática-imagética que integra e agrega na acção os protagonistas de um romance melodramático atravessado pela fantasia e pelo encadeamento das cores e das luzes espectrais. Em suma, neste filme o palco e o mundo, o falso e o verdadeiro, confundem-se no fascinante artificialismo de um estúdio de cinema.

Leva-me Para Casa, Não Para Bora Bora…!

Primeiro, damos a palavra ao realizador: “Sempre adorei ‘One from the Heart’, apesar da perturbação que causou nos meus sonhos para a American Zoetrope. No entanto, há magia no cinema e, enquanto preparava este filme para 4k, tornou-se evidente que podia aperfeiçoar a história. Esta nova versão é uma melhoria em muitos aspectos e estou orgulhoso do que foi alcançado com ‘One from the Heart: Reprise’”.

Depois da caução dada pelo autor a esta nova versão, mergulhemos agora nesta “Reprise” recordando o efeito da cortina que se abre ao início, memória de outras eras que nos reporta para o ritual de ver cinema em sala, mas igualmente para essa noção de viagem ao outro lado do ecrã, mais precisamente o salto para o interior do que vemos no enquadramento delimitado pelo ecrã, como se repetíssemos no plano da subjectividade o movimento de Judy Garland (no papel de Dorothy) quando atravessa o portal entre o preto e branco e a cor que a leva até ao mundo da fantasia no clássico “The Wizard of Oz” (O Feiticeiro de Oz), 1939, de Victor Fleming. Desta vez, as personagens são bem reais e, sem grandes demoras, depois de pairarmos sobre as agitadas, coloridas e luminosas ruas de Las Vegas, recolhemos até ao íntimo de um casal, o mecânico Hank (Frederic Forrest) e a funcionária de uma agência de viagens Frannie (Teri Garr).

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De certo modo, começamos por partilhar com eles os recantos da sua casa, situada nem perto nem longe do strip que deu e dá fama e proveito a uma cidade onde sobressaem o kitsch e um franco mau gosto made in USA. Mas partilhamos muito mais do que um espaço. Nos diálogos e no modo como ambos se relacionam começamos a adivinhar um amor latente mas que se quer livre para seguir outros caminhos, se as aventuras da fortuna e do destino assim o determinarem. Frannie comprou dois bilhetes de avião e quer ir com Hank para Bora Bora, a ilha do Pacífico que invade os sonhos húmidos das quimeras que dia após dia vende na sua montra aos veraneantes de passagem. Mas ele acha que há outras prioridades para o dinheiro, e na véspera do 4 de Julho, data em que anos antes se haviam conhecido e iniciado o namoro, aparece com a documentação que finalmente lhes atribui a propriedade da casa onde viviam.


Nitidamente, Francis Ford Coppola quis desde logo estabelecer uma ponte com o espectador médio americano, e não só, investindo no retrato desencantado das relações sociais, no subtil escarafunchar das diferenças culturais e, de forma inteligente, não apenas nos aspectos da sensualidade ou da pura e dura sexualidade. Frannie e Hank, assim como alguns dos seus mais próximos amigos e cúmplices (que iremos conhecer no decorrer da noite em que se inscreve a narrativa deste filme), são personagens comuns que para a maioria dos que acompanham esta ficção podiam bem ser os vizinhos da porta ao lado.

Love Is For Suckers…!

Por isso mesmo, quando se dá a ruptura entre os dois não parece muito difícil encaixar na individualidade da sua separação outras personagens que servem de co-protagonistas até as vermos desaparecer em circunstâncias completamente diferentes, como diferentes eram as suas personalidades e os seus percursos existenciais. Estou a falar por um lado da circus girl, uma insinuante, felina e belíssima Leila (Nastassja Kinski) com quem Hank irá até ao deserto ver as estrelas cadentes de néon que rivalizam com as cadentes estrelas dos bares e casinos de Las Vegas.

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Uma sequência assombrada e assombrosa onde a magia e o pulsar sexual impregnam cada fotograma com a duração certa de um sentimento de fim de ciclo, ao ponto de acreditarmos a certa altura que Leila pode evaporar-se, como ela diz, qual cuspo atirado para cima de brasas. Trata-se aqui de confrontar o sonho da subversão dos comportamentos dentro de um sonho mais vasto que finalmente ninguém controla. No final, sobressai a realidade de uma outra perda que Hank vai desesperadamente procurar recuperar.


Por outro lado, Ray (Raul Julia) irá viver uma aventura aparentemente mais linear e básica com Frannie, sobretudo a partir do momento em que ela descobre o engano e a ilusão geradas pelo latiníssimo empregado de mesa que se fez passar pelo pianista de um restaurante a dar para o chique mas gerido por um gerente a dar para o choque. Las Vegas no seu mais baixo esplendor de fancaria pegada, mas com pessoas de carne e osso que o argumento e a realização respeitam na sua essência, por mais pobres de espírito, frágeis ou até vulgares que sejam. Mas a vendedora de viagens e falsos sonhos de cartão (como as pífias paisagens que exibe na montra da sua agência) não se deixa abater pelas circunstâncias e aceita participar na fantasia e na sedução ardilosa de Ray. Por isso ela segue-o e acaba por dançar uma rumba como se não existisse amanhã.

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© Zoetrope Studios

E nada, mas mesmo nada, a impede de num efeito de espelho subverter a sua relação com Hank. Traição de uma mulher? Traição de um homem? Não. Traições, leva-as o vento, e quem disser o contrário nunca aceitará o final deste “One From The Heart” nem o improvável regresso ao lar na sequência da mais doce e simultaneamente desesperada canção de Tom Waits, não por acaso interpretada por Crystal Gayle, a balada “Take Me Home”, cuja letra reza assim:

Take me home you silly boy
Put your arms around me
Take me home you silly boy
All the world’s not round without you

I’m so sorry that I broke your heart
Please don’t leave my side
Take me home you silly boy
‘Cause I’m still in love with you

How can you close your eyes and say good night
And go to sleep without me
I can only think of you
Darlin’ don’t you dream about me

Please don’t make me someone you once knew
Can’t you hear me cry
And take me home you silly boy
‘Cause I’m still in love with you

Nem mais: frases simples e directas urdidas pelo génio de quem as escreveu e pela voz de quem as cantou, frases sonoras que ecoam lá bem do fundo do coração…!

Para os devidos efeitos, um filme adulto contaminado por um certo e algo inocente jogo de desobediências, que sobrevive num quadro de contradições onde a sinceridade acaba por vencer a adversidade e as incertezas da condição humana.

Tudo acaba com o fogo-de-artifício do Dia da Independência. E amanhã a vida continua.

One from the Heart, a Crítica
ONE FROM THE HEART Poster

Movie title: One from the Heart

Movie description: Las Vegas, 4 de Julho. Frannie e Hank comemoram cinco anos de relação, mas uma violenta discussão vai afastá-los. Na cidade dos jogadores, será que vão apostar tudo nos sonhos ou dar uma nova oportunidade ao amor? Obra-prima amaldiçoada, filme mítico de Francis Ford Coppola, estreia numa nova versão que o realizador fez e a que deu o subtítulo Reprise, num extraordinário Digital 4K.

Director(s): Francis Ford Coppola

Actor(s): Frederic Forrest, Teri Garr, Raul Julia, Nastassja Kinski, Lainie Kazan, Harry Dean Stanton

Genre: Drama, 107min, 1981

  • João Garção Borges - 100
100

Conclusão:

PRÓS: Excelente a ideia da Midas Filmes estrear “Do Fundo do Coração: Reprise” na próxima Quinta-Feira, dia 4 de Julho, pela simbologia da data, pelas razões ficcionais que indico na crítica, e ainda porque fazem falta neste início de Verão filmes assim para nos aquecer a alma.

São inúmeras as razões para valorizar esta obra. Para além do argumento e realização de Francis Ford Coppola, e naturalmente a globalidade do elenco, destaque para a Direcção de Fotografia de Vittorio Storaro, coadjuvada por Ronald V. Garcia, que pode ser considerada a reconstituição nos Zoetrope Studios de uma Las Vegas feita de luz e sombras provocadas pelas estruturas arquitectónicas mais emblemáticas de uma certa ideia de diversão e subversão de costumes. Uma Las Vegas inundada por cores vibrantes que se multiplicam numa paleta visual em permanente mutação no quadro de uma continuidade espectral que faz da cidade uma espécie de simulacro de noite sem dia e dias sem noites, para além das que se jogam nos palcos e nos bastidores do que se quer ou não quer encontrar, ou mesmo o que se deseja esconder para justificar ou confirmar a frase feita “What happens in Vegas, stays in Vegas”. Trabalho impossível de dissociar da superior Direcção Artística de Dean Tavoularis.

Escusado será repetir, mas aqui vai na mesma o elogio para a perfeita banda sonora musical concebida por Tom Waits, sem esquecer a justíssima escolha da cantora Crystal Gayle, para dar corpo e voz a um conjunto de melodias que permanecem um ponto alto da carreira de ambos. Música concebida para cinema com o propósito de ser parte fulcral da componente narrativa e não apenas um mero fundo musical.

Tudo isto e muito mais pode e deve ser dito, mas o mais importante digo-vos agora: não hesitem e vão ver “One From The Heart: Reprise”. Infelizmente, já começam a escassear os filmes sonhados por produtores e realizadores que queriam ser mais do que peças de uma gigantesca engrenagem comercial.

CONTRA: Nada…!

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