Retrospetiva Jane Campion | In the Cut – Atração Perigosa (2003)

Meg Ryan e Mark Ruffalo trazem mistério e uma eletrizante carga de erotismo violento a In the Cut, o filme mais controverso de Jane Campion.

 


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Tal como aconteceu a praticamente todos os filmes que Jane Campion completou após o sucesso de O Piano, In the Cut foi uma obra simultaneamente rejeitada pela cinefilia, pela crítica e pelo público mainstream. No entanto, há que distinguir o tipo de reação sofrida por este bizarro thriller erótico dos outros supostos “fracassos” da realizadora. Para começar, apesar de Retrato de Uma Senhora e Fumo Sagrado terem sido rapidamente descartados como fracassos, não houve grande intensidade em tais reações. In the Cut, pelo contrário, foi recebido com uma monumental quantidade de vitriole, mesmo pelos fãs da realizadora. No entanto, ao contrário dos filmes anteriores, esta peculiar obra tem sido alvo de uma grande reapreciação desde a sua estreia e, hoje em dia, nos círculos mais sofisticados da internet dos cinéfilos, existem muitas vozes que não só consideram In the Cut como um triunfo, como também o apontam como o melhor filme de Jane Campion.

Para começar a nossa análise, há que deixar algumas coisas bem claras. Primeiro, In the Cut não é melhor que O Piano. Segundo, isso não quer dizer que seja um mau filme. E finalmente, nem todas as críticas feitas ao filme aquando da sua estreia foram necessariamente injustas – apenas míopes e ignorantes. Por exemplo, se avaliarmos o filme como uma narrativa no modelo clássico de um thriller erótico, então estamos perante um inclassificável desastre cinematográfico. De um ponto de vista narrativo e mecânico, In the Cut não funciona de todo como um thriller, nem mesmo se o tentarmos ver através de um prisma calibrado para perversos estudos de personagem. Só que temos de entender também que Jane Campion nunca pôs essa opção em cima da mesa, tal como quando fez o Retrato de Uma Senhora ela nunca esteve minimamente interessada em realizar uma adaptação de prestígio pronta a ganhar uma coleçãozinha de Óscares. Criticar este filme por não ser um thriller policial com passagens eróticas à moda de Verhoeven é o mesmo que criticar Instinto Fatal por não ser um musical.

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Com essas declarações despachadas, vamos então analisar In the Cut pelo filme que realmente é e não pelo filme que poderia ter sido. Em termos narrativos, esta é a história de Frannie, uma professora universitária de Inglês que vive em Nova Iorque e que, presentemente, está a tentar escrever um livro sobre calão urbano. Um dia, depois de ter tido uma reunião profundamente pouco produtiva com um aluno que a está a ajudar com o livro, ela depara-se com uma inesperada cena na casa de banho de um bar local – uma mulher a fazer sexo oral a um misterioso homem escondido pelas sombras cuja única marca identificativa é uma tatuagem no pulso. No dia seguinte, essa mesma mulher foi encontrada morta e desmembrada e Frannie é abordada por um polícia à procura de informações relevantes. Uma atração mútua começa a florescer entre o detetive Malloy e Frannie, o que é um pouco difícil de aceitar para a audiência que, tal como a protagonista, reparou que o detetive possui a mesma exata tatuagem que o homem misterioso na casa de banho do bar – o nosso principal suspeito. De facto, Frannie assume que Malloy deverá ser o monstruoso assassino, mas isso não a impede de se encontrar com ele, ir para a cama com o polícia múltiplas vezes e de progressivamente construir com ele uma união romântica.

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Aquando da promoção original de In the Cut, a distribuidora americana do filme usou a frase “Tudo o que sabes sobre desejo está errado” e isso devia ter servido de suficiente pista para os membros da audiência. In the Cut não é um thriller erótico clássico mas sim um estudo, quase académico sobre o desejo. Ou melhor ainda, é um exercício cinematográfico sobre a ambivalente ligação entre desejo e violência, entre o erotismo do contacto íntimo e a possibilidade de aniquilação pessoal e a necessidade transgressora que tantas vezes vem associada ao desejo sexual. Tais temas e questões são raramente articulados no grande ecrã, especialmente no cinema americano, e praticamente nunca são feitas de modo tão estranho como Campion aqui propõe.

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A personagem de Frannie é uma indefinição de particular fascínio. Os seus impulsos autodestrutivos não são nenhuma novidade no cânone desta cineasta, não se diferenciando muito da caracterização de Isabel Archer proposta pela realizadora, mas nunca antes foram explorados de forma tão erótica ou alienante. Por exemplo, a opacidade psicológica de Frannie segue o modelo da protagonista típica de Campion, mas Meg Ryan nunca imbui o seu desempenho com o tipo de claridade emocional que Kate Winslet, Nicole Kidman ou Holly Hunter trouxeram anteriormente aos filmes da autora. Isso não é um defeito, mas sim um produto necessário do modo como a realizadora decidiu definir a sua protagonista única e exclusivamente através de comportamentos incompreensíveis e da construção formalista do seu filme. Por outras palavras, esta é uma protagonista definida pelo modo como o mundo a vê e pelo modo como ela própria vê o mundo.

In the Cut nunca tem a necessidade de nos definir textualmente quem Frannie é, pois todo o filme é o seu olhar e o reflexo dos desejos que ela reprime. A fotografia de Dion Beebe (no melhor trabalho da sua admirável filmografia) é rica em cores saturadas, esquemas de iluminação quase expressionista, movimentos constantes e um uso opressivo de desfoque, representando de modo visual a apreciação que Frannie faz do seu ambiente urbano e da sua própria história. Do mesmo modo, a montagem tende a incluir transições e cortes narrativamente incoerentes que, no entanto, são um perfeito reflexo de como uma pessoa poderia estar a lidar com os eventos descritos no filme. Por exemplo, depois de uma noite de horrores em que Frannie descobriu os restos mortais da sua meia-irmã, Campion corta para um detalhe tão jocosamente kitsch que não vamos descrevê-lo, com medo de roubar o prazer do choque a quem não tiver visto o filme. Até a paisagem sónica, apimentada pela música simultaneamente etérea e violenta de Hilmar Örn Hilmarsson segue esta mesma abordagem psico-formalista.

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Jane Campion não é a primeira realizadora a explorar, brincar e abusar do modo como as audiências estão sempre pré-programadas para aceitarem tudo o que veem num filme como uma verdade objetiva dentro da narrativa que lhes está a ser contada. O que ela faz que poucos cineastas estão dispostos a fazer, é diluir de tal forma a barreira diferenciadora entre subjetivo e objetivo, que a confusão do espetador é inevitável. Há quem aceite as suas propostas e veja In the Cut como uma experiência imersiva e intoxicante a nível intelectual e sensorial (sexo, erotismo e nudez não são incomuns no cinema de Campion, mas este é, sem sombra de dúvida o mais sensual de todos os seus trabalhos), mas também é compreensível que, para muitas pessoas, tais escolhas sejam abrasivas e tão alienantes que tornam impossível a sua apreciação positiva.

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Talvez nem mesmo a própria Jane Campion iria tão longe ao ponto de descrever In the Cut como um filme fácil. Frannie é afinal uma personagem complicada, os seus desejos são um poço de eróticas contradições, e a sua conflagração interna de sexo com violência torna a identificação da audiência com o seu estado mental num exercício de extrema dificuldade. Para além do mais, como já estabelecemos, In the Cut é basicamente Frannie e os seus desejos sublimados em forma de cinema. Nada disto é fácil de digerir, aceitar ou amar, mas, para alguém que se assuma como um amante do cinema, é importante explorar visões tão singulares como esta. É por isso que, em parte, tantas pessoas têm vindo a defender este bizarro thriller falhado como o melhor filme de Jane Campion. Voltamos a afirmar que não concordamos com tal celebração hiperbólica, mas consideramos In the Cut como um triunfo incomum, assim como a melhor expressão da qualidade obstinada e experimental da sua autora. Não é por acaso que Campion, inclui uma cena em que Frannie tenta motivar os seus alunos a explorar estilos de mais fragmentados e experimentais.

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Na próxima página vamos analisar Bright Star e assim concluir a nossa retrospetiva Jane Campion. Tal como este filme, os desejos sublimados de um casal de amantes são o centro do filme, mas longe da inebriante toxicidade deste thriller sanguinário teremos aí um regresso de Campion ao lirismo em cenário de época que ela começou a explorar com Um Anjo à Minha Mesa e O Piano.

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