"Au jour d'aujourd'hui" | © IndieLisboa

IndieLisboa ’21 | Au jour d’aujourd’hui, em análise

Au jour d’aujourd’hui”, também conhecido como “The Day Today”, é a primeira longa-metragem realizada por Maxence Stamatiadis. Esta experiência em ficção-científica com orçamento microscópico integra a selecção Silvestre do IndieLisboa 2021.

No mundo em que vivemos, há uma pressão enorme para o emparelhamento romântico. Talvez seja consequência de um temor instintivo da solitude, o desejo de não morrer sozinho, a vontade de partilhar a vida com outrem. Tanto a sociedade nos imprime estas ideias na cabeça, tanto o coração pede, que acabamos por nos conformar com pares imperfeitos. É mais importante ter companhia do que ter uma alma gémea. Será isso pragmatismo ou desespero? Quem sabe? Certamente, a primeira longa-metragem do cineasta franco-grego Maxence Stamtiadis não oferece respostas conclusivas.

Segmentado numa estrutura de díptico, “Au jour d’aujourd’hui” começa em 2013 e, mais tarde, salta para o futuro de 2024. No capítulo passado, observamos a vida de um casal idoso em Les Pavillons-sous-Bois. Eles são Edouard e Suzanne Mouradian, os verdadeiros avós do realizador e protagonistas de mais do que um dos seus projetos. Esta primeira secção da narrativa incide mais na perspetiva masculina, perscrutando o quotidiano tecnológico de Edouard, os seus serões a jogar “Call of Duty” e o modo como vomita seus pensamentos mais violentos para o teclado.

Au jour d'aujourd'hui critica indielisboa
© IndieLisboa

Ao invés de confessar seus pensamentos mais negros a um padre, o computador é seu confessionário, sua igreja, seu ouvinte. A partir das palavras que se iluminam no monitor, descobrimos os ressentimentos antigos, uma mente fermentada em ódios bolorentos, em raivas estagnadas. Numa mensagem especialmente atroz, ele proclama a vontade de perpetrar o genocídio. O Edouard que a câmara retrata é um homem consumido pela sede de matar. Ele sabe-o também, sendo capaz de se olhar de fora e sentir a frustração moral para com seus desejos.

Não que a forma deste “Au jour d’aujourd’hui” nos ajude a ver a interioridade das personagens. Talvez porque o projeto começou por ser um documentário observacional, há certa desconexão entre a fogosidade da palavra escrita e a pacata vivência da ação. Filmado em película granulosa e acompanhado por uma música eletrónica, a obra parece o híbrido incerto entre um home vídeo e um jogo da Nintendo, quotidianos transfigurados por uma intrusão tecnológica que não faz sentido num paradigma narrativo. É claustrofóbico e exasperante, melancólico também, um miasma difuso de domesticidade em crise.

Lê Também:   A Volta ao Mundo em 80 Filmes

É então que o 2013 esvanece para dar lugar ao ano vindouro de 2024. Edouard morreu e Suzanne encontra-se sozinha, desesperada. No aborrecimento dos seus dias silenciosos, ela inscreve-se num novo serviço que se propõe a conjurar cópias digitais de entes queridos falecidos. Usando fotos e histórias, gravações e muitas memórias, a senhora lá conjura o fantasma do marido. Só que o espectro não é mais que um esboço mal feito, uma sombra imaterial. Paradoxalmente, há mais luz nesta vivência com o espectro, contentamento que não existia no matrimónio real. Também o filme se liberta da claustrofobia passada, abrindo as portas à fantasia mais inusitada.

O novo Edouard, criado através dos feeds digitais, reproduz a ferocidade enraivecida que o homem genuíno havia escondido na prisão do computador. Num gesto de pura loucura, Suzanne encomenda um substituto físico, um homem desconhecido que se cobre com a ilusão digital do morto. Assim renasce Edouard, monstro de Frankenstein para o século XXI, um recontar pessimista de mitologias ancestrais. Suzanne é um Pigmalião trágico, mas somente a câmara parece ciente da desgraça. Ou talvez nem a câmara o pressinta. Afinal, apesar da história crescer em bizarria, “Au jour d’aujourd’hui” vai ganhando novo fôlego audiovisual à medida que avança.

Au jour d'aujourd'hui critica indielisboa
© IndieLisboa

A inclusão de efeitos especiais rudimentares, CGI primitiva, reforça a ideia de uma simulação virtual esbarrada com a banalidade do dia-a-dia. Longe de ser consumido pelos ódios de Edouard, é o romantismo de Suzanne que se impregna no celuloide e no coração do espetador. Por muito que nos façamos de assustados perante suas ações, há genuína dor no arco que o texto concede à personagem. Stamtiadis assim faz da avó uma heroína romântica que é fruto da sua mesma perdição. Não que o fim trágico alguma vez se manifeste. Ao invés, a obra termina em reticência e incógnita, uma indecisão que deixa a audiência a matutar os temas nebulosos da fita.

Por um lado, louvamos a ambiguidade que Stamatiadis consegue esmiuçar do seu cenário. Por outro, questionamos se maior precisão não teria beneficiado a obra, um mais acutilante aprofundar das ideias e domínio sobre a estética eletrónica. Dedicado ao avô do cineasta, “Au jour d’aujourd’hui” carrega consigo uma carga de luto, mas falta claridade emocional ao seu argumento. O amadorismo dos atores que fazem de si mesmos também não ajuda, erguendo uma barreira alienante entre quem é visto e quem vê. Lamúrias aparte, esta é uma louvável primeira tentativa de expandir a curta em longa. Além disso, o objetivo principal, o de enervar a audiência e a fazer questionar os parâmetros do romance moderno, foi certamente cumprido.

Au jour d'aujourd'hui, em análise
Au jour d'aujourd'hui indielisboa critica

Movie title: Au jour d'aujourd'hui

Date published: 30 de August de 2021

Director(s): Pedro Costa

Actor(s): Pedro Hestnes, Inês de Medeiros, Nuno Ferreira, Luís Miguel Cintra, Canto e Castro, Isabel de Castro, Henrique Viana, Luís Santos, Manuel João Vieira, José Eduardo, Miguel Fernandes

Genre: Drama, Mistério, Romance, 1989, 95 min

  • Cláudio Alves - 65
65

CONCLUSÃO:

“Au jour d’aujourd’hui” é um conto melancólico, um olhar sobre raivas internalizadas e a magia negra das novas tecnologias que faz da intimidade segredada um monstro público. Nascido do impulso documental, este é um curioso híbrido entre o retrato da família e a ficção-científica, o romance trágico e o experimentalismo solene.

O MELHOR: A brevidade da obra, a estranha fricção entre imagética eletrónica e uma película tão granular que parece estar no limiar da imaterialidade.

O PIOR: Entendemos o protagonismo dos avós, mas o casting de atores profissionais poderia ter ajudado a afunilar e apurar as ideias. Por vezes, na busca do realismo documental, o artista esbarra com o artifício da desarticulação amadorista.

CA

Sending
User Review
4 (2 votes)
Comments Rating 5 (1 review)

Leave a Reply

Sending