"Tabu" | © Paramount Pictures

IndieLisboa ’21 | Tabu, em análise

Na secção Director’s Cut do IndieLisboa 2021, podemos encontrar uma variedade de títulos, tanto clássicos consagrados como documentários contemporâneos. “Tabu: A Story of the South Seas”, o último filme de F.W. Murnau, é uma das obras mais antigas em exibição.

Durante os loucos anos 20, F.W. Murnau concebeu alguns dos melhores filmes já feitos. Seu sucesso na República de Weimar, assim como os ventos ominosos de mudanças políticas, levaram-no a abandonar terras germânicas em prol de Hollywood, essa terra onde os cineastas Americanos tornam sonhos em realidade. A chegada do grande Murnau ao novo continente marcou-se com uma estonteante obra-prima, o poema de contrastes entre a cidade moderna e o campo bucólico ao qual chamamos “Aurora”. A fita foi um sucesso, ganhando até alguns Óscares no ano inaugural desses prémios. Contudo, a sua estreia em 1927 correspondeu a uma mudança de paradigmas.

“O Cantor de Jazz” de Alan Crosland provou a viabilidade comercial e artística do som sincronizado, agoirando o fim dos mudos. De facto, os anos seguintes testemunhariam a ascensão dos “talkies” e crescente irrelevância do cinema silencioso. Murnau, mestre da sétima arte cuja gramática visual era antítese das narrativas regidas pelo diálogo, não vergou face a essas pressões. “City Girl” de 1930 foi filmado como um mudo. No entanto, o estúdio regravou algumas partes sem a colaboração de Murnau, concebendo um híbrido parcialmente sonoro que podia ser distribuído como versão alternativa. O ano seguinte traria o último projeto do realizador e sua mais definitiva repudiação do sonoro, um filme mudo sem intertítulos, somente um discurso epistemológico para dar forma ao drama.

tabu critica indielisboa
© Paramount Pictures

F.W. Murnau morreu em Março de 1931. Tinha 42 anos, vítima de um acidente rodoviário cujas circunstâncias escandalosas se tornaram num mito lúrido da Velha Hollywood. Coscuvilhices aparte, interessa saber que o cineasta não viveu para ver a estreia de “Tabu”, seu derradeiro trabalho. Esse filme estrearia uma semana depois da tragédia, articulando um grito final de revolta contra a revolução do sonoro. Talvez descrever este poema romântico como um grito seja demasiado violento, admitimos. Um choro funéreo seria mais apropriado, uma canção dos mares do Sul sobre a melancolia de um mundo moribundo, tão belo quanto efémero.

“Tabu” não é um filme cheio de raiva, mas um hino insuflado de paixão e temperado pela dor da tragédia. Sua história regressa aos temas de tradição e modernidade expressos em “Aurora”, mas recontextualiza toda a trama, movendo a ação para as comunidades indígenas do Pacífico. A história é tão simples ao ponto de ser arquetípica, mais próxima do conto ancestral do que de uma narrativa contemporânea. Acontece que, na Polinésia, os navios do comércio ocidental permitem o movimento entre as ilhas. Através de um desses titãs de ferro flutuante, um emissário atravessa o arquipélago com uma mensagem portentosa.

Lê Também:   A Volta ao Mundo em 80 Filmes

A virgem sagrada de uma tribo longínqua morreu, pelo que, num gesto de paz, os regentes pedem nova moça intocada aos habitantes de Bora Bora. Nomeadamente, eles destacam Reri, a filha do chefe tribal, para receber essa máxima honra religiosa. Sua virtude e sangue real estão no centro da escolha, sendo que a vontade da rapariga jamais é questionada. Contudo, Reri não quer ser tabu, uma mulher para sempre virgem, perpetuamente excluída da possibilidade do amor, do matrimónio. Matahi, o amado dela, também se sente desesperado com o fado, pelo que planeia uma fuga dos amantes. Pela calada da noite, eles escapam-se da ilha.

Numa colónia Francesa caída em desgraça, os amantes encontram novo lar, mas sua ignorância dos costumes europeus agoira um final infeliz. O conceito de dinheiro não existe entre os indígenas pelo que o casal acumula dívida sem se aperceber. Quando as forças dos colonialistas e as duas tribos iradas se abatem sobre eles, Reri e Matahi tentam fugir só para serem traídos pelos interesses mercenários dos devedores. Mais não diremos, caso o leitor queira experienciar o clássico sem spoilers. Fica só a ideia que esta história é uma tragédia e que o romance não terá conclusão risonha. Quais Romeu e Julieta do Pacífico, tanto Reri como Matahi se sacrificam um pelo outro e assim garantem a infelicidade mútua, a morte.

indielisboa tabu critica
© Paramount Pictures

O que distingue “Tabu” de muitas produções Americanas da mesma época, além da mudez, é a liberdade da câmara, a sofisticação da forma ganha através do uso de localizações reais. Retorcendo o nariz às limitações do estúdio, Muranu aliou-se ao documentarista Robert J. Flaherty e juntos foram rumo ao Taiti. O único outro cineasta profissional durante o período da rodagem foi o diretor de fotografia Floyd Crosby, sendo que não havia equipa de som e todo o elenco foi composto por atores amadores. Ao invés de muitos cineastas seus contemporâneos, Murnau foi em busca da autenticidade no casting e na representação, empregando as comunidades indígenas para interpretarem esta visão fantasiosa da sua existência.

Apesar da equipa diminuta, “Tabu” possui uma sofisticação estética assombrosa. Usando a paisagem natural para máximo efeito, o cineasta alemão fez do Pacífico uma presença tão forte que é quase personagem, um ser primordial que colide com um cosmos humano em constante transmutação. Além disso, há um contraste afiado entre a liberdade nativa e as forças coloniais, sendo que até a montagem e os enquadramentos se mostram sufocados pela influência francesa. A tradição desumana é tão inimiga dos amantes como são essas intrusões da civilização ocidental. O formalismo assim serve para indicar uma ideologia surpreendentemente anticolonialista, mesmo que essas não fossem as intenções dos artistas.

Tanto assim é que, apesar do exotismo meio alienante e do esforço etnográfico, “Tabu” trespassa os vícios preconceituosos da Velha Hollywood e se afigura como um trabalho com valores mais modernos do que pode aparentar. Também a liberdade coreográfica da câmara, o naturalismo da expressão corporal e o gosto pela materialidade do cenário real apontam para um cinema cheio de vitalidade. O paradoxo de “Tabu” é que, ao ponderar uma história sobre pessoas ditas primitivas, ao usar linguagens cinematográficas démodé e mecanismos já vistos como desatualizados em 1930, Murnau conseguiu criar uma obra intemporal. É impossível não chorar a morte prematura desse mestre da sétima arte, mas, ao mesmo tempo, celebramos que este tenha sido o seu derradeiro filme. “Tabu” é uma sublime despedida.

Tabu, em análise
tabu indielisboa critica

Movie title: Tabu: A Story of the South Seas

Date published: 28 de August de 2021

Director(s): F.W. Murnau

Actor(s): Anne Chevalier, Matahi, Hitu, Bill Bambridge, Ah Fong, Jules, Mehao

Genre: Aventura, Drama, Romance, 1931, 86 min

  • Cláudio Alves - 90
90

CONCLUSÃO:

“Tabu” é um marco cinematográfico que ganha valor pelo seu contexto histórico. Feito na transição do mudo para o sonoro, o filme revela a melancolia de um autor em fricção com o desenvolvimento presente do seu meio artístico. Além de tais aspetos, a fita representa uma interessante intersecção entre romantismo lírico e o impulso realista de um documentário etnográfico.

O MELHOR: A nota de melancolia em que a fita acaba, sem lua e sem felicidade. Depois de tantos finais esperançosos ao longo da sua filmografia, parece-nos perfeito que Murnau termine a carreira com adstringente pessimismo. Por muito que o filme seja um poema romântico, há todo um pesar que lhe abate o coração e desespera a alma. Quiçá seja a angústia dos amantes, quiçá seja a tristeza de um artista que começa a vislumbrar a obsolescência no horizonte.

O PIOR: As primeiras passagens de “Tabu”, essas danças bucólicas e cenas de pesca muscular, denotam uma certa objetificação do ator em frente à câmara. Será que a trama teria resultado melhor se as personagens fossem mais individualizadas, mais humanos que arquétipos? Não há forma definitiva de se saber, mas é uma incógnita que assombra o projeto.

CA

Sending
User Review
4 (2 votes)
Comments Rating 5 (1 review)

Leave a Reply

Sending