"Coma" | © Les Films du Bélier

IndieLisboa ’22 | Coma, em análise

O grande realizador francês Bertrand Bonello regressa ao IndieLisboa com “Coma,” obra rodada em tempo de pandemia e confinamento. O filme integra a secção Silvestre do festival.

Nos últimos três anos, a Humanidade tem estado presa a um limbo de causas virais. Sentimo-nos estagnados e agrilhoados, num movimento imparável que não leva a lado algum, quais Sísifos do século XXI. Tais realidades têm-se refletido no trabalho de inúmeros artistas que tentam trabalhar dentro dos limites desta era. Alguns tentam meditar sobre o real através de uma fantasia de normalidade, produzindo obras que ponderam angústias contemporâneas ao mesmo tempo que tentam reproduzir formas de arte pré-COVID. Outros seguem a via contrária.

Ao nos movermos para a especificidade do cinema, deparamo-nos com estas duas abordagens in extremis. Alguns filmes fazem tudo para se assemelharem às produções do passado, lutando contra as limitações da pandemia. Trata-se de uma espécie de escapismo onde a convenção do status quo é a mentira que contamos a nós mesmos, quiçá um esforço Quixótico. No entanto, há filmes que renegam essa falsidade, refletindo a experiência daqueles para quem a normalidade do passado é um milagre distante, tão inalcançável como aquela luz verde que Gatsby via.

indielisboa coma critica
© Les Films du Bélier

“Coma” de Bertrand Bonello assume-se como esse segundo tipo de fita, passando-se junto de uma adolescente confinada. Desde que estreou na Berlinale deste ano, o filme tem vindo a ser criticado pela sua claustrofobia, pelo modo como se rende a limitações que já parecem desatualizados neste novo mundo que muitos querem que seja pós-COVID. Trata-se de um exercício insular que não faz intenções de transcender essa qualidade, esfregando a cara do espetador nas ruminações anódinas do realizador e sua figura central.

Dedicado à filha do realizador, o filme segue um modelo entre o romance epistolar e a alucinação. Um prólogo e epílogo propõem o diálogo entre pai e filha feito através do grande ecrã, enquanto incursões pelo universo grotesco de um Youtube imaginário, desaparecimentos no Zoom e devaneios oníricos remetem para o campo da irrealidade. Também há melodramas protagonizados por bonecas, algumas das quais dão voz ao Twitter defunto de Donald Trump. Invenção não falta e loucura também não.

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É uma insanidade que floresce da disrupção entre o indivíduo e o mundo, quando toda a comunicação se resume a impulsos digitais e a interação humana é um pesadelo parassocial. Num paradigma tão triste quanto absurdo, parece mais fácil estabelecer conexão com uma vlogger chamada Patricia Coma do que com os próprios amigos. Certamente no sonho, é ela que aparece como guia de uma Free Zone. Lá, a angústia não existe. Lá podemos crer que as nossas escolhas e ações têm importância, têm efeito. Contudo, sabemos que é mentira pela graça reveladora de um brinquedo eletrónico.

Esse mecanismo é introduzido pela misteriosa mulher que vive nos sonhos e no ecrã, mas suas conclusões são difíceis de contradizer. Afinal, quem sente capacidade para mudar o mundo quando olhamos em redor e só vemos catástrofes? Bonello assim liga “Coma” a uma crise existencialista juvenil, aquele tipo de maladia sofrida pela mente que cresceu bombardeada pelos horrores do “doom scrolling,” imagens do desastre climático, do fascismo emergente, do absurdo tornado banalidade, do impossível possível. Existe aqui um gesto tão raro quanto genuíno.

indielisboa coma critica
© Les Films du Bélier

Referimo-nos à tentativa do cineasta de meia-idade em entender o foro cultural e psicológico da geração mais nova. Um pai que tenta ver o mundo pelos olhos da filha através de um feitiço cinematográfico. “Coma” é magia e é maldição, é um filme breve, mas que custa ver. Apesar de tudo, no fim, o estudo do suplício chega a uma conclusão esperançosa. Talvez isso seja somente o pai que tenta reconfortar a filha ou o mestre do cinema a abraçar o cinéfilo. O objetivo não interessa quando o efeito é tão peculiar enquanto conclusão de um objeto experimental.

Entende-se a razão pela qual tantos críticos e espetadores têm mostrado desapontamento para com o filme. Contudo, acusações de modéstia e pequenez sabem a injustiça. De facto, este é um dos trabalhos mais maximalistas de Bonello. Ou, se essa caracterização parecer exagerada demais, é um tratado anti-minimalista que usa a imaginação como porta para o inferno. Talvez seja porta para o paraíso. Enfim, é uma porta que dá para fugir ao limbo ao mesmo tempo que o reflete, qual espelho sem substância capaz de levar a um país das maravilhas.

Coma, em análise
indielisboa coma critica

Movie title: Coma

Date published: 28 de April de 2022

Director(s): Bertrand Bonello

Actor(s): Julia Faure, Louise Labeque, Laetitia Casta, Anaïs Demoustier, Louis Garrel, Vincent Lacoste, Gaspard Ulliel

Genre: Drama, Mistério, 2022, 82 min

  • Cláudio Alves - 75
75

CONCLUSÃO:

“Coma” é rendição e é gesto obstinado, é um choro e um abraço, sonho e pesadelo. Bertrand Bonello dedica este poema experimental à sua filha, procurando a perspetiva juvenil filtrada pela abrasividade da forma. Tanto “Coma” nos dá esperança como ilumina o medo, tentando o espetador a cortar as mãos nas lâminas de uma misturadora.

O MELHOR: A montagem é sempre o ponto alto de qualquer filme de Bertrand Bonello e “Coma” não difere.

O PIOR: No contexto do cinema de confinamento que começou a surgir logo em 2020, é possível que este filme se perca um pouco.

CA

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