"Rua dos Anjos" | © Kintop

IndieLisboa ’22 | Rua dos Anjos, em análise

Rua dos Anjos,” também conhecido como “Rising Sun Blues,” é um dos trabalhos mais fascinantes na Competição Nacional do 19º IndieLisboa. Esta longa-metragem documental marca a estreia de Renata Ferraz e Maria Roxo na realização.

No espaço liminar do estúdio, duas mulheres conversam. São elas Renata Ferraz e Maria Roxo e seu ponto de encontro são os estúdios da Escola Superior de Teatro e Cinema. Nesse espaço do ensino, cada uma irá educar a outra num jogo de imitação e auto entendimento, autodescoberta também. Estamos perante o exercício do meta cinema e um filme sobre a sua mesma criação. Assim serve “Rua dos Anjos” de diálogo entre as duas divas, assim como entre o grande ecrã e a audiência, a obra projetada e ela própria. Contudo, antes de continuarmos, seria bom aprofundar o que sabemos sobre as realizadoras.

Renata Ferraz é uma atriz brasileira que, em 2015, deu vida a uma prostitua lisboeta no filme “Estive em Lisboa e Lembrei de Você.” Apesar de prezar a autenticidade, a intérprete não terá pesquisado a fundo a vida dessas verdadeiras profissionais do sexo. Ela atuou consoante pré-noções e as demandas de um guião fictício. Dito isso, foi aí semeada uma flor de curiosidade que cresceu ao longo dos anos. Nomeadamente, Ferraz sentiu ligações entre o lavoro da prostituta e o da atriz, tanto a nível histórico como pragmático. São os dois ofícios, afinal, um trabalho baseado no faz de conta para com uma audiência.

rua dos anjos critica indielisboa
© Kintop

Maria Gonçalves Roxo concordaria com tais comparações, entendendo a venda do sexo como um jeito de performance. Ao contrário da sua colega da América Latina, Roxo terá crescido em Moçambique na plenitude do colonialismo lusitano e, na flor da vida adulta, estudou Medicina ao invés do Teatro. Inspirada por José Afonso, então Professor de Filosofia, ela foi parte de um grupo de estudantes que se manifestaram contra o regime colonial. Como castigo pela transgressão, o Estado Novo impingiu-lhes o serviço militar. Foi o começo de um capítulo negro da vida.

Terminados os anos em serviço, Roxo aprendeu a enfermagem e trabalhou no coração da Guerra Colonial. Na busca do esquecimento, começou a tomar as drogas que dava aos pacientes, anestesiando a dor da memória com morfina. Perdida a causa imperial, Maria Roxo fez parte dos retornados, chegada a um país que nunca tinha visto. Em Portugal, a dependência das drogas aprofundou-se e consumiu-lhe vida. Sem mais opções para sustentar o vício, virou-se para a prostituição e assim trabalhou durante muitas décadas. Nas palavras dela mesma, Maria Gonçalves Roxo tornou-se na melhor atriz que existe no mundo à semelhança de toda a prostituta.

Elas cruzaram-se quando Ferraz começou o projeto que se viria a tornar “Rua dos Anjos,” assim chamado em honra desse sítio da Amadora onde Maria Roxo em tempos vendeu o corpo. A atriz brasileira queria realizar um filme que fosse mais que um mero documentário, algo mais próximo de uma troca de intimidades e histórias de vida. O intuito era aproximar-se do trabalho sexual ao interpretar a realidade de outrem. Só que, ao invés de pedir dinheiro pelo sexo, Ferraz pedia a participação no filme através da imagem do rosto no momento de paixão. Esse “cliente” imaginado nunca surgiu, mas ela lá encontrou uma mulher disposta à partilha.

Então com 62 anos, Maria Roxo respondeu ao inquérito da mulher mais nova com um longo documento, quase cem páginas e contar a sua história de vida. Essa mesma informação é recontada ao longo de “Rua dos Anjos,” ora pela via de entrevistas ou diálogo menos estruturado, momentos de ensino e transformação espelhada. De facto, algumas das imagens que marcam o princípio da fita focam-se no objeto do espelho. Note-se a cena na qual Roxo descolora o cabelo da colega e as duas consideram o reflexo conjunto. Ou um outro instante, quando suas mãos se seguram por cima do vidro que é olhado por uma senhora, mas mostra a imagem da outra.

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O cenário é espartano, resumindo-se a um par de cadeiras, o ocasional tapete e colchão. Em termos espaciais, o elemento mais imponente é uma longa extensão de tecido perfurado que, de vez em quando, separa as duas mulheres. A certa altura, até serve de tela para projeção, permitindo a justaposição de duas Renatas Ferraz – a realizadora que filma e a atriz filmada. Estes adereços servem de mecanismo para a exploração cinematográfica do “eu” e do trabalho sexual. Longe de cair em julgamentos ou melodramas, trata-se de um esforço regido pela empatia. Além disso, o foco não se restringe a Roxo, havendo instâncias em que Ferraz é aquela que expõe os segredos para a câmara.

Como muitos projetos apresentados neste 19º IndieLisboa, “Rua dos Anjos” demorou anos até ser concluído. O que isso significa neste caso particular é que uma das suas corealizadoras não chegou a ver a obra acabada. Maria Gonçalves Roxo morreu em 2017, sendo o documentário dedicado à sua memória. Trata-se de uma homenagem honrosa, uma celebração de alguém cuja voz merece ser preservada em cinema. Nas suas pesquisas identitárias, “Rua dos Anjos” descobre muito, mas também deixa perguntas por fazer. Na sua máxima maturidade, mostra que é impossível compreender toda a galáxia de uma pessoa, mesmo quando tentamos entrar na sua pele em jeito de ator. Isso não é um triste limite, mas um testamento à maravilha da pessoa, à glória de Maria Roxo.

Rua dos Anjos, em análise
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Movie title: Rua dos Anjos

Date published: 7 de May de 2022

Director(s): Maria Roxo, Renata Ferraz

Actor(s): Maria Roxo, Renata Ferraz

Genre: Documentário, Drama, 2022, 83 min

  • Cláudio Alves - 85
85

CONCLUSÃO:

“Rua dos Anjos” é uma das grandes descobertas do IndieLisboa, apesar de ser também um filme pequeno por definição e propósito. Focado na justaposição de duas mulheres acostumadas à performance, o filme homenageia a vida e procura o entendimento. Desmantelando tabus pela via da brincadeira teatral, é um exercício valioso que exalta o poder inerente ao olhar da câmara e sua partilha.

O MELHOR: A franqueza das duas artistas, sua vontade de partilha e a confiança que demonstram para com a audiência.

O PIOR: Sente-se um desequilíbrio na exploração da atriz enquanto ideia, assim como uma brevidade meio disfuncional. Por outras palavras, amamos o que vemos, mas queríamos ainda mais. Que se estique o filme além dos 83 minutos. Tem suficiente material concetual para isso.

CA

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