IndieLisboa ’23 | Mal Viver, em análise

Primeira parte de um díptico estreado em competição na Berlinale, “Mal Viver” representa um dos projetos mais ambiciosos na carreira de João Canijo. Depois de ganhar um Urso de Prata, o filme integra a Competição Nacional do 20º IndieLisboa. Anabela Moreira, Rita Blanco, Madalena Almeida, Clea Almeida e Vera Barreto interpretam os principais papéis, com um elenco secundário de luxo que inclui Leonor Silveira e Beatriz Batarda. É claro que essas outras têm o seu momento para brilhar no segundo filme da parelha – “Viver Mal.”

Todo o cinema de João Canijo se forma em torno de um universo feminino, os homens sempre renegados a figuras periféricas ou meros agentes da disrupção em histórias de mulheres. Este apontamento não é queixa – quanto muito, é aplauso. Nesse sentido, “Mal Viver” aparece-nos como um ponto lógico na evolução do autor, mesmo que algumas das suas especificidades marquem a diferença dentro do contexto. Talvez até ganhe valor na comparação com obras passadas, tanto pelos ecos como pelas contradições. Há mais dos primeiros, admitimos. Afinal, estamos perante um épico de sofrimento no feminino, um pesadelo que, em certas passagens, parece transcender o melodrama na direção do terror.

Só que a escuridão não vem do além e não são fantasmas que atormentam esta casa assombrada. Os vivos são os monstros, sendo as mães as maiores monstruosidades de todas. São mães que se deixam levar pela ansiedade do papel, incapazes de amar as filhas sem as julgar, e essas mesmas filhas tornam-se mães que não conseguem sair de dentro de si e ficam presas numa depressão insular. Os crimes do coração passam-se de geração em geração, qual maladia congénita ou quiçá um espírito mau. O cenário da trama certamente nos leva a esse retorno recorrente ao pesadelo, sendo uma espécie de Overlook com travo lusitano e sem efeito sobrenatural. A realidade já é horrenda quanto baste.

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© Midas Filmes

Apela-se ao “Shining” de King e Kubrick porque tudo se passa num hotel, algures no litoral português, lá para o norte. O espaço é belo, mas as marcas do tempo sentem-se na textura derrelicta de alguma superfície exterior, como se o próprio cenário estivesse moribundo, desfalecendo-se em jeito de heroína de um melodrama oitocentista. O hotel é também prisão, sendo que nem a câmara nem as personagens conseguem escapar à sua clausura. Não que a cadeia seja controlada por força exterior ou que as portas estejam trancadas. Se as mulheres de Canijo não saem do seu inferno, é porque elas mesmas definiram os paradigmas da penitência.

Prisioneiras e guardas prisionais fundidas, elas são as arquitetas da desgraça própria. Sara é a mais velha, a matriarca dona do hotel que tudo gere com punho de ferro e um comentário ácido sempre pronto a disparar. Rita Blanco, coroada com raízes grisalhas, regressa ao cinema de Canijo como sua suprassuma rainha, desempenhando um papel mais venal que o costume. Em certa medida, poderia ser apontada como mais uma evolução da sua figura em “Noite Escura,” mas há algo de tenebroso em Sara que ultrapassa a negligência singela. A violência de uma crueldade noturna, o grito final que se faz ouvir em silêncio, o desdém familiar – um retrato inesquecível que quase dói contemplar.

A seguir, na hierarquia deste matriarcado, vem Piedade por quem ninguém tem pena. Ou, se têm, há muito o sentimento apodreceu, fermentando o ódio em seu lugar. Divorciada e desesperada, ela parece ter internalizado toda a perspetiva alheia, fechando-se num ato de paralisação emocional. Só a cadela amada tem direito a conhecer o seu amor, talvez porque é a única que o retribui sem condicionalidades adjuntas. Anabela Moreira dá vida àquela que poder-se-á dizer a verdadeira protagonista de “Mal Viver,” o sol invertido à volta do qual tudo orbita. Sua prestação faz uso de toda a característica interpretativa exibida em colaborações passadas com Canijo, aprofundando os excessos de melancolia até chegar a um apogeu sufocante.

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Em situação menos crispada, encontramos Raquel e Ângela, mais membros da família hoteleira cujas idiossincrasias contribuem para o caos regente. Pelo menos, assim é o caso de Raquel, a outra filha de Sara, cuja casualidade esconde a necessidade de companhia, de conexão, de um corpo em comunhão com o outro. Espelhada em oposição às outras, revelamos um apetite vampírico na harmonia de personagens, com Cleia Almeida subvertendo as poucas pontadas de humor que o texto lhe concede Por outro lado, Ângela é aquela que mais se aproxima da sanidade, mesmo que a interpretação de Vera Barreto faça por iluminar as rachas na fachada, o buraco negro que se esconde dentro da hoteleira.

Por fim, há Salomé, terceira geração desta família amaldiçoada, filha de Piedade e neta de Sara. É a sua presença que define a narrativa de poucos dias relatada em “Mal Viver,” estando a moça no hotel ao convite da avó, nem uma semana após o funeral do pai. Toda ela é rancor, pronta a encarar o mais pequeno comportamento da mãe enquanto ataque pessoal, decidida a castigá-la pelo abandono sentido no âmago desde tenra idade. A vida fora do alcance da câmara espelha-se na prestação de Madalena Almeida que, mesmo assim, ainda encontra instantes para complicar a leitura. Um serão ao sofá, mostra-nos a tentativa de aproximação, a filha na reticência de pedir ou não o aconchego que tanto quer.

Fazemos toda esta explicação de personagens e atrizes porque o filme é o seu elenco, com Canijo a repetir o mesmo processo colaborativo de ensaio e workshop que tem vindo a definir grande parte da carreira. Um método que, há que dizer, o mesmo documentou em “Trabalho de Atriz, Trabalho de Ator.” Ao todo, foram dois anos de preparação, construindo-se um argumento para o qual nenhuma intérprete se transformou, como apontam as notas de intenções. Ao invés, adaptaram-se à premissa, ao tema, ao discurso interno e delimites dramatúrgicos apresentados. O resultado final é um miasma de dor que poderia cair no suplício gratuito caso o formalismo cénico não modulasse a experiência.

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© Midas Filmes

Leonor Teles, a quem Canijo muito agradeceu no seu discurso em Berlim, está encarregue da fotografia e confere à fita uma austeridade tão feita para puxar o esplendor como para promover o sentido de alienação, de que somos voyeurs espiando algo secreto através de janelas e portas escancaradas. Este é provavelmente o mais belo filme que o realizador assinou desde a “Filha da Mãe” em 1990, exprimindo um rigor audiovisual em função de balde de água fria sobre as agonias cénicas. O som, porventura, será ainda mais preciso, justapondo ações simultâneas sem cair em ilegibilidade caótica. A direção na sonoplastia de Tiago Raposinho e companhia conduz a atenção do espetador qual maestro. Também é guia nesta visita ao purgatório das mães e filhas, onde a desgraça agrilhoa e todos querem fugir.

Querem elas fugir do hotel, da prisão, querem fugir de si mesmas, mas não conseguem, não podem. A aniquilação suprema é a única escapatória, impondo a estrutura de tragédia inevitável ao conto infeliz de “Mal Viver.” Em paralelo, vamos percecionando enredos complementares entre a gente hospedada no hotel, espelhos disformes dos conflitos que assombram aqueles que, quais técnicos de cena, trabalham nos bastidores do espetáculo. Essas vidas prósperas são exploradas mais a fundo em “Viver Mal,” mas aqui são rimas do poema piedoso. São forças que puxam pelo ritual de hotel e assim dão forma fixa à história de Sara, Piedade, Raquel, Ângela e Salomé – esses espíritos que a câmara examina, mas não exorciza, jamais libera.




Mal Viver, em análise
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Movie title: Mal Viver

Date published: 29 de April de 2023

Director(s): João Canijo

Actor(s): Anabela Moreira, Rita Blanco, Madalena Almeida, Cleia Almeida, Vera Barreto, Nuno Lopes, Filipa Areosa, Leonor Silveira, Rafael Morais, Lia Carvalho, Beatriz Batarda, Carolina Amaral, Leonor Vasconcelos

Genre: Drama , 2023, 127 min.

  • Cláudio Alves - 85
85

CONCLUSÃO:

“Mal Viver” é mais uma montra para algumas das melhores atrizes no cinema português, outro ponto de honra na filmografia de um autor empenhado em contar e recontar as histórias da mulher lusitana. Há um toque de invariabilidade nesta ordem cinematográfica, mas o filme eleva-se acima do cliché por meio das interpretações, do rigor formal, do realizador inspirado.

O MELHOR: As atrizes, como sempre será no cinema de João Canijo. Anabela Moreira, em particular, tem aqui um potencial candidato ao seu melhor desempenho de sempre. Muitos aplausos para as restantes mulheres, pois claro, especialmente Rita Blanco como não podia deixar de ser.

O PIOR: Não há surpresas em “Mal Viver,” sua conclusão como que pré-estabelecida desde o momento em que pomos olhos nas dinâmicas familiares. Para muitos, estes ares de tragédia serão equiparáveis ao monótono. Há limites dramáticos, quando tudo está tão fechado.

CA

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