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IndieLisboa ’23 | Viver Mal, em análise

Paralelamente a “Mal Viver,” João Canijo também rodou “Viver Mal.” A obra complementar estrou em secção Encounters da Berlinale e agora chega a Portugal. Antes da distribuição comercial, contudo, passa pelo 20º IndieLisboa, na Competição Nacional. O filme conta com a participação de Nuno Lopes, Filipa Areosa, Leonor Silveira, Rafael Morais, Lia Carvalho, Beatriz Batarda, Carolina Amaral e Leonor Vasconcelos – que elenco estrondoso, e nem mencionámos a família do primeiro título, assombrando as margens desta outra história.

“Viver Mal” é espelho de “Mal Viver,” existindo num contingente onde dificilmente faz sentido tonal sem sua outra metade. Contudo, não se pode declarar a ineficácia absoluta quando considerado em separado, pois até a estrutura remete para o fragmento desligado do contexto circundante. Se o primeiro filme analisou as vidas das hoteleiras nesta propriedade algures no litoral norte, a segunda produção, rodada em simultâneo, foca-se nos clientes pelas outras hospedados. As protagonistas de uma história tornam-se sombras da outra, renegando-se ao papel acessório que tantas vezes se impõe sobre aqueles que trabalham ao serviço dos outros.

E, pois claro, as sombras de outrora tornam-se figuras centrais em nova ordem narrativa, um ato que tanto parece seguir as normas da ordem socioeconómica como evidencia verdades preciosas sobre a condição humana. Estamos todos sós numa dimensão povoada por outros tão complexos quanto nós, cada pessoa uma galáxia intransponível, um mistério condenado à indecifração perpétua. Há maravilha nessa certeza, mas também há horror. João Canijo parece seguir uma perspetiva mais direcionada para o milagre do indivíduo, apesar de as histórias contadas servirem como pesadelo. Em “Viver Mal”, o céu são as outras pessoas e o inferno também.

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Contudo, as realidades relatadas não partem somente do ensaio e da discussão com atores. Em jeito tripartido, o filme serve como adaptação livre de três peças de August Strindberg, cada uma servindo de base para o drama dos convidados. Experienciamos cada texto em separado, não havendo cortes de trama para trama, o que proporciona a análise repetida das mesmas cenas. Um jantar e seu rescaldo nas poltronas frente à TV repete-se do primeiro filme, aparecendo triplamente nesta nova hora. O resultado convida à investigação do gesto e sua gradual variação, som e montagem redefinindo a prioridade do momento.

A fotografia de Leonor Teles, por seu lado, mostra-se ainda mais obcecada com molduras dentro de molduras, conversas espiadas através de janelas e portas, estruturas envidraçadas dando a aparência de um aquário humano. Denota-se ainda a fragmentação dos corpos em reflexo do texto estilhaçado. Muitas vezes, perscrutamos uma interação sem nada mais ver que um par de pés, como se o espetador fosse mais um convidado do hotel. Ou talvez seja parte da família mal vivida, intrometendo-se na desgraça alheia como coscuvilheiros feitos espiões domésticos.

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Encurralado entre cenas sem contexto da outra narrativa, algumas estranhamente fora de ordem, o primeiro capítulo segue o exemplo do “Brincar com Fogo” de Strindberg. Aqui, um casal luta com a realidade do compromisso, o marido relutante até ao momento em que a sente sair do matrimónio. No pânico da perda, redescobre a vontade de a querer, mas pode ser tarde demais. São só dois os atores desta terça parte da obra maior, Nuno Lopes e Filipa Areosa. Contudo, há terceira figura envolvida no conflito, um melhor amigo dele que dormiu com ela, uma traição multifacetada que escancara as portas da intimidade, da confiança em rutura.

A modernização do cenário faz-se pela ditadura das redes sociais, com Areosa dando vida a uma influencer cujo egotismo nos parece óbvio desde a primeira palavra proferida. Dito isso, ele, um fotógrafo que passa a vida fazendo curadoria da namorada estrela, partilha a mesma falha de caráter. De facto, isso é comum a várias personagens nestes enredos. No entanto, enquanto a mulher nos aparece ciente de si mesma, a autodescoberta do homem demora a surgir. Tudo escala até cena a sós no quarto de hotel, a traição do amigo amante de novo em destaque, desamparando as duas figuras para quem o ódio e a paixão variam entre serem opostos e sinónimos.

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“O Pelicano” regressa-nos à mitologia quotidiana das mães e filhas, apresentando a figura de uma matriarca de poder opressivo sobre o fruto do seu ventre. Ela é Leonor Sequeira em estado de graça, maldade forjada em filigrana que corta e faz sangrar, tão monstruosa que faz a Sara de Rita Blanco parecer santa. Promovendo o casamento da filha de modo a garantir acesso ao seu amante tornado genro, sua situação é tão hedionda que ameaça transformar toda a fita numa telenovela miserabilista. O rigor formal impede o descalabro e os atores fazem vingar o exercício. Em tom, é talvez a parte deste díptico que mais se aproxima do celebrado “Sangue do Meu Sangue,” trocadas as lamentações da classe trabalhadora pelos ricos em falência.

Por fim, “Amor de Mãe” leva as ideias basilares dos dois projetos ao extremo no limiar do absurdo, proporcionando tão caricata interação que o filme quase vira comédia do desconforto. Beatriz Batarda é mais uma mãe disfuncional, tão fincada nas suas projeções e dependências para com a filha que insiste em lhe sabotar carreira e namoro. Leonor Vasconcelos e Carolina Amaral completam o trio como a pobre progénie com aspirações de atriz e sua amante juvenil que tem pretensões de poetisa. Entre as atrizes e a dissecação cirúrgica de João Canijo, “Viver Mal” conclui num inesperado torcido tonal. Não fica claro se o tríptico sobrevive sem o precedente, ou se funciona totalmente enquanto complemento, mas há valor no risco. Uma salva de palmas é devida.




Viver Mal, em análise
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Movie title: Viver Mal

Date published: 29 de April de 2023

Director(s): João Canijo

Actor(s): Nuno Lopes, Filipa Areosa, Leonor Silveira, Rafael Morais, Lia Carvalho, Beatriz Batarda, Carolina Amaral, Leonor Vasconcelos, Anabela Moreira, Rita Blanco, Madalena Almeida, Cleia Almeida, Vera Barreto

Genre: Drama , 2023, 124 min.

  • Cláudio Alves - 70
70

CONCLUSÃO:

“Viver Mal” fica à sombra de “Mal Viver.” Seja deliberado ou não, o fado é o mesmo, mas não há forma de ignorar os triunfos perdidos entre três episódios inspirado em Strindberg. O elenco, como seria de esperar no cinema de João Canijo, é exemplar, mas também se aplaude a equipa atrás das câmaras. Fotografia, montagem e som ajudam a manter o aborrecimento fora da pintura, convidando o espetador a explorar a variabilidade plástica dos mesmos momentos repetidos ad nauseam.

O MELHOR: Leonor Silveira mete medo, Beatriz Batarda inspira um soluço algures entre a raiva e o deleite cómico, Filipa Areosa vira as costas a leituras redutivas sobre uma personagem que fez do narcisismo seu ofício – atrizes fabulosas, todas elas!

O PIOR: No caso de filmes com estrutura antológica, há sempre aquele episódio que destoa ou um desequilíbrio sentido entre as partes do todo. “Brincar com Fogo” é a ovelha negra residente, uma chamada da mãe tentativa fracassada de impor coerência textual sobre as três adaptações desviadas.

CA

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