IndieLisboa ’23 | Saint Omer, em análise

No Festival de Veneza de 2022, “Saint Omer” foi recebido com grande exaltação por parte da crítica internacional e acabou por ganhar o Leão de Prata, efetivamente o segundo lugar na competição pelo maior prémio da Bienal. O filme de Alice Diop, sua primeira longa-metragem narrativa, foi, mais tarde, selecionado para representar a França nos Óscares. Apesar de não ter chegado à nomeação, teve lugar na lista de finalistas e, agora, chega a Portugal, com antestreia na secção Silvestre do 20º IndieLisboa. Trata-se de um dos grandes filmes do ano.

Ao longo da última década, Alice Diop tem consolidado seu lugar no panteão do novo cinema francês, uma das vozes mais promissoras na sua geração de realizadores. Sua especialidade, até agora, incidia no cinema de não-ficção, conjugando questões do documentário e do ensaio, trespassando poesia pelo meio da estrutura, e muita reflexão pessoal quase em jeito de memória. Nesse paradigma, seu trabalho mais importante será “Nous,” fita multifacetada onde Diop usou uma linha de comboio que atravessa Paris para elaborar um retrato da sociedade francesa numa conjetura onde a identidade nacional se questiona, quiçá se transforma.

Tudo isto para dizer que, quando Diop anunciou sua estreia no campo da ficção, terá havido algum choque e expetativas confusas. Seriam os talentos desta cineasta, sua expressão tão formada pelo mecanismo documental, capazes de se adaptar às demandas de uma narrativa? Encarando a obra-prima de “Saint Omer,” a chave para o triunfo estará mesmo na ponte formada entre os dois modelos cinematográficos. Tal como os documentários da autora, esta obra devém de uma pesquisa pessoal, quiçá até um impulso na beira do jornalismo. De facto, a ideia nasceu do trauma do testemunho, quando a realizadora assistiu a um julgamento em 2016.

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© NOS Audiovisuais

Foi nesse verão, na localidade de Saint-Omer entre Lille e Calais, que Fabienne Kabou foi a tribunal. Quatro anos antes, a mulher de origem Senegalesa havia dado à luz em segredo, isolada no seu apartamento que ocasionalmente partilhava com o amante, trinta anos mais velho que ela. Foi a terceira gravidez de Kabou com o mesmo homem, mas a única resultante em nascimento, tendo a pequena Adélaïde nascido em Agosto. A bebé veio isolar ainda mais a estudante de filosofia e arquitetura, tendo a mãe abandonado os estudos, incluindo a escrita de uma tese sobre Wittgenstein, e perdido ligação com o mundo fora do apartamento. Nesta época, Kabou terá gasto milhares de euros em consultas a curandeiros e xamãs.

Abandonada, isolada, num poço de depressão e estado mental dificilmente compreendido em análise retrospetiva, Kabou terá chegado às suas decisões fatídicas em estado de confusão, potencialmente psicótico. A 19 de Novembro de 2013, ela viajou até à costa, até Berck-sur-Mer, tendo contado ao companheiro ausente que ia voltar ao Senegal. Pela noite, passeou na praia com Adélaïde, amamentou-a e embalou a menina até esta adormecer. Kabou voltou ao hotel sem a filha, tendo-a deixado junto ao mar, onde a bebé se afogou. De volta a Paris, foi presa e acusada de homicídio premeditado, não obstante um diagnóstico psiquiátrico de delírio paranoico.

Foi esse caso judicial que Diop seguiu de perto, tendo-se interessado na situação pelas parecenças entre si e a acusada. Na altura, a cineasta estava grávida do seu primeiro filho, confrontando-se com um prisma doloroso em que questionava sua futura maternidade e a própria relação com sua mãe. Inicialmente, não haveria planos de tornar o caso num filme e a própria Diop não podia levar câmaras para dentro do tribunal. Contudo, ficou-lhe a ideia, uma obsessão em jeito de assombro. No fim da década e apogeu de uma nova era pandémica, o interesse ressurgiu. Inspirada em Marguerite Duras, Alice Diop escreveu seu primeiro guião do género. A editora Amrita Davis e a romancista Marie NDiayer haveriam de contribuir para o texto.

Entenda-se que Diop ficcionou a sua própria experiência, seguindo os traços gerais do caso sem se prender a todos os detalhes. Verifica-se um divórcio da realidade com alteração de nome e outros gestos que tais, afastando “Saint Omer” de uma noção de true crime, exploração do horror verídico e outros acessos de mau gosto. De facto, poder-se-ia dizer que o filme se enquadra num paradigma de exercício sobre a natureza da audiência, de ouvir e tentar criar empatia com outro ser humano. Jamais se oferecem explicações definitivas e até um monólogo tardio, declamado diretamente para a câmara, é subvertido pela admissão de que é impossível explicar o inexplicável. É impossível saber toda a verdade.

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Kabou passa a ser Laurence Coly e Diop transforma-se numa professora de literatura e escritora, Rama. Seu propósito no julgamento é recolher dados e ideias para uma revisão do mito de Medeia na contemporaneidade, mas, como aconteceu à cineasta, serão as reflexões pessoais que realmente despertam o interesse entre esta observadora e a tragédia observada. Em certa medida, Coly torna-se em mais do que uma pessoa, sua história um espelho distorcido que inspira a memória traumática de Rama, a identificação terrível e o exorcismo do conflito interno. Há uma exploração filosófica inerente ao fenómeno do reconhecimento, mas também uma reflexão sociopolítica.

Esta segunda faceta evidencia-se no momento em que nos apercebemos como Rama é a única pessoa preta presente além de Coly e sua mãe. Evidenciam-se instantâneas crispações de raça e xenofobia na França moderna onde os órgãos de poder se mantêm predominante brancos. “Saint Omer” é uma refração da subjetividade de Diop durante o julgamento, mas também uma dissecação das dinâmicas em jogo no caso seguido. Há uma intelectualização do incidente à beira da insularidade, mas é aqui que se conjugam os idiomas cinematográficos com o texto. Por muito que “Saint Omer” seja sobre a artista que vê, nossos olhos e ouvidos estão focados no drama diante dela.

Grandes passagens do filme são elaboradas num esquema de planos fixos cuja austeridade estética recorda Duras e Bresson em golpada única. Aliás, há um momento de testemunho que se desdobra em takes gigantes, passando três quartos de hora ou mais num registo tão frontal que nos desperta o desconforto. A câmara virada para Coly, o filme sofre uma metamorfose através da disciplina audiovisual, um formalismo puro e duro dando-lhe a estrutura do esforço retratista. Não há misericórdia nem pela figura, pelo ator ou pelo espetador, com “Saint Omer” a forçar um confronto desnudo, sem amortecimentos ou desculpas.

Sem cair na falácia de propor um cinema objetivo, Diop apela, contudo, a uma neutralidade variável. Também se apoia no minimalismo como ferramenta reveladora. O que se revela não é conclusão, pois claro, sendo que ninguém aqui envolvido propõe uma moralidade final perante as ações da infanticida. Ao invés, Diop e a diretora de fotografia Claire Mathon encontram beleza em composição severa, trabalhando quase exclusivamente em gradações de castanho e branco, texturas apuradas e luz perfeita. Há um controlo absoluto da encenação, algo que consome personagens e espetador, como se a força do aparato judicial se manifestasse enquanto presença palpável.

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© NOS Audiovisuais

A montagem de David também prima pela precisão cirúrgica, modulando aquelas maratonas de diálogo entre Coly, advogados, juízes e restantes testemunhas sem nos deixar esquecer os olhos que tudo observam – de Rama e outras pessoas presentes na sala. Com Mathon reduzindo o enquadramento a celas individuais, a montagem reflete ainda uma ideia da humanidade enquanto pontos fundamentalmente solitários em busca da conexão – seja ela o toque, o olhar, o corte de plano para plano. Acima de tudo, Diop promove este estudo perante alguém cujo crime é tão hediondo que nos desperta sentimentos viscerais, fora do controlo racional. O teste final da empatia, é a tentativa honesta de ponderar quem cometeu o horror de matar a própria filha.

Intromissões de memória são simultânea liberação daquele transtorno do julgamento, mas também são outra permutação da asfixia de Diop e Rama. Tentamos fugir, mas somos sempre levados de volta à introspeção da mulher, talvez de nós mesmos. Afinal de uma forma ou outra, já todos fomos filhos de uma mãe, todos tocados pelo fenómeno da maternidade. Da especificidade para o universal, do milagre para o inferno, “Saint Omer” é difícil de ver, mas também nos envolve como poucos filmes, promovendo uma imersão na sua realidade e a conversa interna entre o espetador e o que se projeta no grande ecrã.

Como nota final, fica uma apreciação do trabalho das atrizes. Como Rama, Kayije Kagame está encarregue de dar forma humana à tese ambígua da cineasta, ao mesmo tempo que interpreta uma versão ficcionada de Diop. Resume-se a caracterização à reação emocional, revelando tudo sem nada revelar. Guslagie Malanda como Laurence Coly é quase o oposto diametral, passando quase todo o seu tempo em cena a responder às questões propostas, como se toda a prestação fosse um monólogo maratona quebrado por ocasional corte. Trata-se de um feito titânico, capaz de cristalizar o mistério de Medeia e a realidade de Kabou, esta e todas as mães, esta e todas as mulheres, esta experiência do imigrante africano em França e todas as gerações que já passaram pelo mesmo. Parece algo impossível, mas Malanda consegue, elevando “Saint Omer” ao nível de obra-prima moderna.




Saint Omer, em análise
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Movie title: Saint Omer

Date published: 3 de May de 2023

Director(s): Alice Diop

Actor(s): Kayije Kagame, Guslagie Malanda, Valérie Dréville, Aurélia Petit, Xavier Maly, Robert Cantarella, Salimata Kamate, Thomas de Pourquery, Adama Diallo Tamba, Mariam Diop, Dado Diop

Genre: Drama, 2022, 122 min.

  • Cláudio Alves - 100
100

CONCLUSÃO:

Em constante revisão da nossa perspetiva enquanto espetadores, Alice Diop constrói uma máquina de empatia radical em “Saint Omer.” Depois de provar ser uma documentarista brilhante, a realizadora revela-se ainda melhor criadora de cinema narrativo, com prestações estrondosas e um teor de confrontação que impõe respeito. Este drama vai-te aterrorizar e fazer pensar, vai magoar e elucidar. É um milagre moderno da sétima arte!

O MELHOR: Uma troca de olhares, o esboço de um sorriso, um sismo apocalíptico que só duas pessoas sentem na realidade do filme.

O PIOR: Nada a apontar.

CA

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