"Saving One Who Was Dead" | © Sirius Films

IndieLisboa ’22 | Saving One Who Was Dead, em análise

Encenado no espaço estéril de um hospital checo, “Saving One Who Was Dead,” originalmente chamado “Zpráva o záchraně mrtvého,” é uma meditação sobre perda. O novo filme de Václav Kadrnka faz parte da programação Silvestre do 19º IndieLisboa.

Nestes tempos de pandemia, a perda é nossa companheira constante e o luto tornou-se numa imagem comum do quotidiano. Há alguns sortudos que não perderam ninguém próximo, mas certamente conhecem alguém que sim. Por isso mesmo, arte que lida com tais temas tem-se vindo a afirmar como manifestação de um humor coletivo, mesmo global. A morte faz parte do dia-a-dia, sua sombra toldando os afazeres mais banais, as ações mais comuns. Até a ideia de estarmos em comunhão no espaço partilhado se alterou, ganhando leituras perigosas.

Assim o toque ganha mais poder. O que era tido por garantido é agora algo cobiçado e proibido. É algo que, quando ocorre, sabe a novidade, a transgressão, a gesto de vitória sobre um mundo cruel e suas tragédias de cada dia. Também o próprio conceito de um hospital se alterou, ficando mais tenebroso à medida que se tornou numa parte cada vez mais regular das nossas vidas. Labirintos clínicos onde a gente vai morrer, templos do fim e do sofrimento silencioso daqueles que asfixiam em camas que invadiram os corredores. São casas da cura e infernos também.

saving one who was dead critica indielisboa
© Sirius Films

Estas ideias reverberam pelo projeto multi-filme do cineasta checo Václac Kadrnka que, desde 2011, tem vindo a trabalhar numa trilogia sobre a ausência daqueles que amamos. A primeira fita, “Eighty Letters,” estreou nesse mesmo ano, enquanto o segundo capítulo, ”Little Crusader,” só viu a luz do dia em 2017. Essas rodagens pré-pandemia servem de prólogo temático a “Saving One Who Was Dead,” uma obra que o autor define como semiautobiográfica. Nela, uma mulher e seu filho adulto assombram os corredores de um hospital, encurralados numa espera Beckettiana.

Eles esperam que o patriarca acorde. O senhor caiu num coma depois de sofrer AVC e, todos os dias, sua família o visita na esperança de o ver acordar. Médicos e peritos aconselham o par a abandonar a esperança, mas nem ele nem ela aceitam o diagnóstico. Também não lutam contra esse veredicto. Ao invés disso, permanecem impávidos no seu silêncio e resolutos na sua missão. Cada um pega numa mão e, num quadro feito ritual, suplicam que o comatoso lhes responda. Fala-se de concentração, fala-se de amor, fala-se de afunilar toda a força de vontade naquele registo de consciência.

Lê Também:   A Volta ao Mundo em 80 Filmes

Se formos comparar “Saving One Who Was Dead” aos seus antecessores na filmografia de Kadrnka, a escassa narrativa que apresenta pode parecer um oásis de convencionalidade num deserto experimental. Contudo, não se iluda quem for ver o filme na espera de um objeto mainstream. Mesmo que apoiando a pesquisa num conflito interpessoal, o realizador encara o filme como encarou seus trabalhos anteriores. O próprio formato remete para a pintura vertical, para um desequilíbrio desconfortável da imagem projetada. Em uma, testemunhamos aqui um gesto de minimalismo severo, simplicidade seca em busca de poesia.

A abordagem espartana não impede a câmara de divagar no espaço hospitalar, percorrendo caminhos traçados em ciclos de repetição. Gradualmente, enquanto a paciência do espetador é testada, somos agraciados com a materialização de um limbo entre a vida e a morte, um purgatório cheio de almas perdidas. A certo ponto, até o tempo se parece retorcer, possibilitando a observação da mesma pessoa enquanto homem e miúdo. O ato de crescer, a mortalidade, condensa no olhar materno, enquanto o desespero filial nos espera em planos cheios de julgamento sublimado.

saving one who was dead critica indielisboa
© Sirius Films

O próprio corpo do comatoso condensa em si uma dualidade. Está morto e vivo ao mesmo tempo, aqui e ali, próximo e distante em simultâneo. Também as personalidades dos seus parentes se fragmentam neste velório sem cadáver – a mãe procurando resoluções com o ganhar do conhecimento, o filho vagueando pelo hospital como um zombie, talvez na fuga de si mesmo e das suas mesmas inseguranças cardíacas. Passividade anda de mãos dadas com a ação desesperada, um movimento que não se move como o ser vivo que não vive.

“Saving One Who Was Dead” é o castigo de Sísifo num hospital do século XXI. Mas, como tudo neste mundo, o suplício tem que ter fim. Ao longo de 90 minutos, o filme asfixia-nos com crescente claustrofobia, terminando em expressão de aceitação. Desse fim floresce a catarse, uma visão paradisíaca que rompe pelo lúgubre cenário hospitalar. Há quem veja nesse último gesto uma recompensa demasiado tardia para o tédio. Contudo, quem estiver disposto a entregar-se totalmente à visão de Kadrnka, encontrará grande devastação, grande emoção, num filme que se revela terno por debaixo das suas superfícies estoicas.

Saving One Who Was Dead, em análise
indielisboa saving one who was dead critica

Movie title: Zpráva o záchrane mrtvého

Date published: 3 de May de 2022

Director(s): Václav Kadrnka

Actor(s): Vojtech Dyk, Zuzana Mauréry, Petr Salavec

Genre: Drama, 2021, 90 min

  • Cláudio Alves - 70
70

CONCLUSÃO:

Filmado num estilo estreito até ao momento de expansão final, “Saving One Who Was Dead” é um exercício sobre espera, sobre o purgatório de aceitar o fim daqueles que mais amamos. Apesar de minimalista em execução, a obra é surpreendentemente emocional.

O MELHOR: A severidade bela que encontramos nas imagens filmadas pelo diretor de fotografia Raphaël O’Byrne. Isso e o silêncio sedoso que lentamente tapa a boca e o nariz, que nos sufoca.

O PIOR: Louvamos o rigor de Kadrnka, mas temos de questionar se este particular trabalho não resultaria melhor enquanto curta-metragem. Potencialmente, cortar o texto e da mudança de formato também seria forma de excisar algum cliché.

CA

Sending
User Review
0 (0 votes)
Comments Rating 5 (1 review)

Leave a Reply

Sending