"Slaughterhouses of Modernity" | © Filmgalerie 451

IndieLisboa ’23 | Slaughterhouses of Modernity, em análise

“Slaughterhouses of Modernity” é mais uma meditação sobre questões arquitetónicas do realizador alemão Heinz Emigholz. Seu mais recente trabalho, o filme teve estreia mundial no New York Film Festival e, agora, chega ao IndieLisboa na sua jornada pelo circuito festivaleiro. No evento lisboeta, a obra integra a secção Silvestre.

Em certa medida, o cinema de Heinz Emigholz tipifica-se pelo projeto que lhe deu renome, “Photography and Beyond” começado em 1983, onde a austeridade tudo consome num esquema visual híper depurado. Consideram-se imagens arquitetónicas, a montagem estabelecendo diálogos pictóricos sem qualquer intervenção textual. Trata-se de um jogo de contrastes, onde o espetador se presume como aquele encarregue de descortinar os significados codificados pelo cineasta nessas relações imagéticas. Ora se predicam discursos políticos ou reflexão histórica, talvez só noções de estéticas divergentes, culturas distintas.

Localização e anos de criação, ocasionalmente o nome do arquiteto, aparecem sobrepostos à filmagem, mas nada mais. Isso começou a mudar por volta de 2016 e 2017, com “Bickels [Socialism]” e “Streetscapes [Dialogue].” Nestes novos paradigmas, a conversa torna-se mais explícita, quiçá caindo na palestra. Atente-se que o formalismo puro e duro persiste, mas, desde então, há novos pontos de acessibilidade no trabalho do realizador, mais aberto à explicação. Mesmo assim, considerando toda essa evolução, denotamos o aroma de novidade no seu mais recente trabalho, como um perfume subtil a emanar da tela.

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Isso é óbvio com a abertura da lição, mas tornar-se-á bem mais intenso quando se passa a marca do meio e o próprio realizador se exibe perante o espetador num monólogo direto para a câmara com montagem fragmentada. Mas, antes de ponderarmos o mecanismo mudado, quiçá convenha entender o que motivou essa mesma mudança. “Slaughterhouses of Modernity” traduz-se como Matadouros de Modernidade, sendo que Emigholz se interessa pelos dois significados possíveis da frase. Em estilo simétrico, ambos os conceitos são representados por prólogo e epílogo de ideias invertidas.

Por um lado, temos a noção de um Modernismo culpado da chacina. No outro ponto, somos convidados a pensar num Modernismo chacinado. Por um lado, temos a impressão da ideologia germânica em refúgio na Argentina, enquanto o outro contexto expõe-nos a uma subversão na Bolívia. Contudo, como será evidente, muitas ideias se desdobram entre os dois polos comparativos, estando esta rima de matadouros em seguimento de outros trabalhos do mesmo realizador onde se pensa a arquitetura como autobiografia. É a memória do indivíduo criador, sem dúvida, mas também das forças sociais subjacentes a essa pessoa.

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Neste caso, argumenta-se a arquitetura enquanto autobiografia de regimes, com foco restrito na terra-mãe de Emigholz – a Alemanha e sua expansão além-fronteiras. Em leitura feita pelo ator Stefan Kolosko, somos convidados a ponderar quanto as forças políticas tendem a apropriar-se de ideias como o modernismo e a tradição, retorcendo-as a seu belo prazer até terem, efetivamente, sequestrado o seu significado. Desse jeito, tanto um olhar para o futuro como uma celebração do passado se tornam em movimentos gémeos da autoridade fascista.

Na Argentina, o arquiteto Francisco Salamone concebeu grandes edifícios em linhas vanguardistas como extensão da influência europeia. Vemos a comparação entre os edifícios públicos nesse estilo com obras encomendadas durante os regimes de Mussolini e a ascensão do nazismo, uma espécie de imperialismo feito pela arte pública. Certas estruturas foram reclamadas em subsequentes décadas, mas muitos dos matadouros se encontram arruinados, sem propósito, seus significados originais preservados no âmbar do degredo. Neles, ouvimos a alto e bom som uma receção amistosa à cultura colonial. Bem-vindos os europeus e que se matem os restantes.

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Os matadouros erguem-se no meio do nada, rasgando os céus quais monumentos, igrejas da carnificina – seria cómico se não fosse tão sinistro. Considerando o papel da carne na economia argentina, Emigholz propõe, através de Kolosko, a ideia de que esta monumentalidade de matadouro é uma vertente do funcionalismo levado ao absurdo. Há lógica na arquitetura grandiosa, mas também um toque de loucura – uma tentativa de criar um Requiem pela Alemanha perdida. Isso intensifica-se com a chegada a ruínas maiores ainda, uma cidade perdida quando as águas inundaram o povoado de Villa Epecuén.

Assim aparece o narrador em carne e osso, para falar da paisagem pesadelo, a húbris humana apodrecida e derrubada pela água salgada. Em tal cenário, fala-se da fuga dos alemães à justiça internacional no pós-guerra, apoiados pelo Vaticano num exílio cujas marcas arquitetónicas marcam o mapa argentino como cicatrizes. O gesto será imitado quando a imagem cortar para o outro lado do Atlântico, onde agora será o próprio realizador a articular o pesadelo em frente à câmara. No caso presente, é o Museu Humboldt agregado ao palácio de Berlim que será estudado, dissecado em toda a sua feia história, desde noções imperiais até à História que representa.

Mas não se apoquente quem pensar que toda esta pedagogia se faz sem leveza. O final, por exemplo, é quase herético na sua rebeldia contra a preservação apática. Emigholz pula novamente para a América Latina, para mirar a arquitetura jocosa com que Freddy Mamani Sylvestre subverte a influência europeia no seu continente, fazendo um pesadelo carnavalesco com base no sonho da Bauhaus. Aqui, no Altiplano andino da Bolívia, propõe-se um novo lar para o Humboldt e o realizador despede-se com um piscar de olho invisível. Este tipo de filme ensaístico não é para todos, mas os fãs de Heinz Emigholz certamente se irão deliciar com sua última provocação em jeito de galeria feita cinema.




Slaughterhouses of Modernity, em análise
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Movie title: Schlachthäuser der Moderne

Date published: 29 de April de 2023

Director(s): Heinz Emigholz

Actor(s): Heinz Emigholz, Stefan Kolosko, Kiev Stingl, Susanne Bredehöft, Arno Brandlhuber

Genre: Documentário, 2022, 80 min.

  • Cláudio Alves - 70
70

CONCLUSÃO:

Desde montes de pedras numa rua anónima na Argentina até à loucura de uma Bolívia em luta contra o legado europeu, o cineasta Heinz Emigholz considera o modo como a arquitetura modernista se pode tornar tanto no repúdio como no sustento do estado autocrático. Para um realizador que muito adora silêncio e o simples prazer de mirar estruturas, “Slaughterhouses of Modernity” representa uma problematização dos seus amores. É palestra e é ensaio, no limiar da poesia em algumas passagens singelas.

O MELHOR: Há uma natureza jocosa no final, deixando-se levar pela arquitetura irónica e rock germânico com uma veia absurdista, antissistema. Cantam-se prantos em lamento dos “the lonely white boys” e termina a fita com agradável irreverência.

O PIOR: A recusa da câmara em seguir as linhas arquitetónicas, quebrando a retitude da geometria com diagonais toscas é um ato deliberado, um surto de rebeldia dentro da disciplina deste exercício. Também se considera imagem de marca do cineasta, mas questionamos a eficácia da escolha. Por outras palavras, amávamos que a fotografia de “Slaughterhouses of Modernity” fosse mais bela.

CA

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