IndieLisboa ’23 | Garden Sandbox, em análise
“Garden Sandbox,” chamado “Niwa no sunaba” no original, é uma experiência algures entre a ficção e o documentário. Esta ruminação urbana representa a sexta longa-metragem do cineasta japonês Yukinori Kurokawa. No 20º IndieLisboa, o filme integra a secção Silvestre, tendo já passado por outros festivais internacionais antes de chegar à capital portuguesa.
O propósito da protagonista e o propósito do filme confundem-se em “Garden Sandbox,” começando com uma cena que funciona enquanto declaração de intenções. Induzida em erro depois de um mal-entendido, Sakaguchi encontra-se numa entrevista para emprego que, à partida, não quererá. Em rimas de cabeças inclinadas e uma inexpressão no precipício do absurdo, vemo-la encarar a responsabilidade de videógrafa. Assim fica encarregue de fazer um clip para promover o turismo a Tobako, cidade imaginária cujo papel se interpreta por Kawaguchi, nos arredores de Tóquio.
Aliados à perspetiva de Sakaguchi sem entrar no paradigma do plano POV, o filme acompanha-a na descoberta de uma comunidade em declínio, cheia de ruas desertas e a quietude mortiça que aflige sítios onde a comunidade se apoiou em indústrias agora sumidas. Existe tensão entre os vários elementos cénicos, mesmo que a tonalidade geral da fita seja definida pelo fluxo pachorrento. Notem-se os jogos de som subjacentes à a deambulação, batidas eletrónicas em jeito de coração palpitante que promovem um incómodo subtil antes de se renderem ao sonho de uma dança noturna, com tatuagens secretas e velas de foguete.
Em alternativa, pensemos numa das primeiras histórias que Sakaguchi ouve de um dos ‘Tobakenses.’ A fotografia de Yasutaka Watanabe tudo faz para capturar os matizes doirados do sol poente, deslizando para o horizonte como pano de fundo para uma ponte singela. Essa imagem digna de postal corta-se com as palavras de Kitagawa, cujas recordações do sítio são mais viradas para a rebaldaria. Ele recorda-se do local como o cenário de um episódio caricato em que se deixou vomitar sobre o pavimento e depois ficou a ver os pardais comendo a porcaria.
Disrupções marcam todo o engenho deste jardim em caixa-de-areia, transcendendo essa primeira tarde de descoberta por parte de Sakaguchi. Um plano prolongado subitamente quebra com o cair de um edredom sobre a moça, enquanto uma pacata sessão de costura pode ser interrompida pela entrada de novas personagens. É um puxa e empurra sonolento que convida ao envolvimento do espetador, como que duplicando o exercício da realizadora de vídeo na experiência do espetador. Tal como ela, somos levados a tentar esmiuçar algo especial nas banalidades de Tobako.
Quiçá a paisagem, por muito bela que seja, não seja o objetivo final do estudo. Certamente existe um esforço para redirecionar o olhar do espaço para o indivíduo, guiando o passeio cinematográfico pelos pontos cardeais humanos ao invés da referência geográfica. Yukinori Kurokawa interessa-se tanto pelos caminhos vazios e recantos pitorescos como pelas pessoas que os povoam e lhes dão cor, suas memórias como pinceis deixando marcas na tela branca. Fala-se de vingança e sente-se o aroma esvanecido do romance, aventuram-se as mulheres em lições de skate e comenta-se o fado triste da cidade falsa que, no entanto, é como tantas outras no Japão.
Nesse ponto, o preceito da ficção complica o jogo, remetendo para uma ordem imposta à força sobre aquilo que, na sua essência, deveria existir em contexto anti narrativo. “Garden Sandbox” é bem curto, nem ultrapassando os setenta minutos de duração, mas passa a um ritmo glacial que deverá fazer muito espetador torcer o nariz. Pedir por uma obra ainda mais solta, quiçá até abstrata e sem história alguma poderá parecer o cúmulo da loucura. Contudo, quando se esbate tanto a noção de personagem e a própria ação, não seria melhor ir um passo à frente, dissolver a convenção que agrilhoa mais do que sustenta? Quiçá o levantar da questão seja o intuito dos cineastas, voltando, mais uma vez, a essa cumplicidade entre o espetador e Sakaguchi. Voltamos a esse olhar perdido em busca de direção para um vídeo que ninguém verá.
Garden Sandbox, em análise
Movie title: Niwa no sunaba
Date published: 29 de April de 2023
Director(s): Yukinori Kurokawa
Actor(s): Marino Kawashima, Yukino Murakami, Kazuki Niiya,
Genre: Comédia, 2022, 69 min.
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Cláudio Alves - 65
CONCLUSÃO:
Insinuamo-nos numa localidade, perscrutando seus ritmos e vagarias na procura por uma direção, talvez a linha melódica para a sinfonia citadina. Contudo, o que nos chega aos ouvidos é o som indefinido de uma qualquer imaginação virtual, um fantasma sobreposto a ruas vazias. “Garden Sandbox” detalha tudo isto num jogo algures entre a narrativa e o repúdio da mesma, um postal desconstruído que se oblitera perante a nossa vista.
O MELHOR: As passagens noturnas primam pela qualidade sonhadora, transcendendo o aborrecimento normal de cada dia para chegar a algo mais além. Com uma abóbada de sonoridades eletrónicas a abater-se sobre os ouvidos e uma dança melancólica, vislumbramos o esplendor desta cidade imaginária, suas histórias, sua gente.
O PIOR: Fazer de Sakaguchi uma espécie de não-entidade, resumida ao seu papel enquanto observadora, é um mecanismo deliberado. No entanto, não resulta, sendo mais alienante que envolvente.
CA